Nesse tempo de pandemia de coronavírus, o desconcerto de políticos e cientistas sobre quais seriam as melhores medidas para se tomar, sobretudo do ponto de vista sanitário, ficou evidente: devemos ou não achatar a curva do contágio? Só nos locais mais afetados ou no país inteiro? Quando seria seguro reabrir? Talvez seja melhor voltar à normalidade e esperar que a população consiga a tal imunidade de rebanho? Ou então isolamos só o grupo de risco?
Perguntas como essas surgiram de toda a parte e até agora ninguém sabe exatamente quais decisões serão as mais acertadas. Contudo, essa confusão, por mais que desoriente, é até certo ponto normal. Leva algum tempo para compreendermos um fenômeno novo, como um novo tipo de vírus: a ciência tem seus limites.
Não é isso o que pareceu em relação à crise do coronavírus. Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro da saúde, por exemplo, repetia quase como um mantra ao ser perguntado sobre o distanciamento social ou sobre protocolos de tratamento para a Covid-19: “ciência, ciência, ciência”. Chegando a afirmar que Bolsonaro teria “exonerado a ciência” ao tirá-lo do cargo, como se o presidente tivesse abolido alguma regra matemática que o ex-ministro seguia fielmente. Essa crença exagerada na ciência é, grosso modo, o que se chama de cientificismo.
Esse termo foi cunhado na França na segunda metade do século XIX e indica a concepção e a atitude intelectual particular daqueles que consideram válido apenas o conhecimento das ciências físicas e experimentais como capaz de resolver todos os problemas e de satisfazer todas as necessidades humanas. Portanto, ele desvaloriza qualquer outra forma de conhecimento (incluindo a filosofia) que não aceite os métodos próprios dessas ciências.
Mas as hipóteses nos campos das ciências humanas não podem atender ao rigoroso critério científico de validação que procura refutar uma teoria; porque eles dependem da observação e da descrição. Em outras palavras, não se pode reproduzir em laboratório as pesquisas com o comportamento humano, da mesma forma com que podemos fazer com um mineral, por exemplo. E quando isso foi tentado, as consequências foram terríveis, como veremos mais adiante.
Mas antes uma pequena recapitulação histórica, seguindo Thomas Burnett, da National Academy of Sciences, num artigo para o site Biologos.
Segundo ele, as bases para cientificismo foram postas pela filosofia de Galileu Galilei, Francis Bacon e René Descartes, quando estes encabeçaram um movimento intelectual que proclamava um novo fundamento para o conhecimento, que envolvia o cuidadoso escrutínio da natureza, lançando as bases para o método científico. Porém, para abrir espaço para seus novos métodos, empregaram palavras fortes. Descartes, em seu Discurso sobre o método, chegou a afirmar que aqueles que aprendessem como o mundo físico funcionava poderiam se tornar “senhores e possuidores da natureza”. À medida que as descobertas científicas foram fazendo sucesso, começou a se esboçar o cientificismo.
Essa ideia perpassou os iluministas da Revolução Francesa, que acreditavam que a ciência poderia ser um substituto para religião, e encontrou sua fundamentação no positivismo de Auguste Comte, que preconizava, entre outras coisas, que os únicos dados válidos são adquiridos por meio dos sentidos. Nada transcendente e nada metafísico poderia ter qualquer pretensão de validade.
Assim, através do contínuo progresso da compreensão humana, a religião desapareceria, a filosofia e as humanidades seriam transformadas em uma base naturalista, e todo o conhecimento humano acabaria se tornando um produto da ciência.
A atitude (ou visão de mundo) de considerar válido apenas o conhecimento científico, como vimos, não é em si mesma científica, mas filosófica e histórica. Invalidando a própria ideia de que somente o conhecimento científico é válido.
Mas a própria ideia de aplicar os métodos das ciências naturais às ciências humanas pode ter consequências nefastas.
O professor ciências biológicas da Universidade da Carolina do Sul, Austin Hughes, e autor de mais de 300 publicações científicas revisadas pelos pares, aponta que o cientificismo está fortemente associado à pseudociência da eugenia.
Os proponentes do cientificismo e da eugenia romperam a linha divisória entre ciência e questões morais/filosóficas, ao declarar que a ciência é o único meio de responder a essas perguntas.
Os defensores do cientismo argumentam que nossos padrões de moralidade resultam da seleção natural de características que foram úteis para a sobrevivência de nossos ancestrais. Eles tendem portanto para um relativismo moral. Contudo, essa afirmação não pode ser provada ou negada por nenhum método científico.
Os eugenistas, por exemplo, pretensamente utilizam uma base darwinista para argumentar que devemos interromper a reprodução dos “inaptos”. Mas se os “inaptos” estão tendo sucesso em “propagar seus genes” é porque do ponto de vista darwiniano eles são um sucesso não um fracasso. Por que seria “científico” impedi-los?
A eugenia é uma pseudociência no pleno sentido da palavra. Mas o prestígio que ela tem (e ainda permanece residual e veladamente em alguns lobbies, como o abortista) não seria possível sem essa confusão entre a ciência — um método para se obter conhecimento (sob vários aspectos, limitado) — e o cientificismo — uma escola filosófica.
O cientificismo continua difuso na sociedade, por conta do próprio prestígio da ciência. Como se pode acompanhar durante esse período de pandemia. Hoje também é comum ouvir alegações de que não há nada que possa ser conhecido fora do escopo da ciência. Mas isso seria semelhante a um pescador de sucesso dizendo que tudo o que ele não pode pegar em suas redes não existe, para usar uma expressão encontrada em Oracles of Science: Celebrity Scientists Versus God and Religion [Oráculos da Ciência: Cientistas Famosos versus Deus e Religião] de Karl Giberson e Mariano Artigas.
Portanto, quando cientistas como Neil deGrasse Tyson, Stephen Hawking e Richard Dawkins, que podem ser considerados quase como pop-stars da ciência, fazem declarações como “Não há possibilidade de um Deus em nosso universo” eles estão extrapolando o próprio método científico e misturando filosofia e ciência.
Essa postura muitas vezes acaba prejudicando a ciência verdadeira, ao confundir uma coisa com outra, já que o cientificismo se apropriou indevidamente das especulações teóricas das ciências sociais e as declarou “baseadas na ciência”. Essa confusão, por utilizar do próprio prestígio das ciências, leva a muitas decisões políticas catastróficas, como a história do século XX provou em profusão.
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