Há bastante informação sobre hereditariedade que é de conhecimento mais ou menos geral hoje. Assim como a gestação é cercada de cuidados por razões um tanto óbvias para todo mundo. Em qualquer conversa de portão fala-se sem mistério sobre doenças e predisposições familiares ligadas aos genes. E ninguém se surpreende que bebês de mães que passaram fome nascerão abaixo do peso e estarão propensos a problemas nos primeiros anos.
É um tanto recente, no entanto, a descoberta de que os dois temas estão relacionados: estes bebês não apenas estão mais sujeitos a doenças pelo resto de suas vidas como também poderão transmitir estes efeitos para a próxima geração. E isso é um fato aterrador.
Trata-se de uma forma não genética de hereditariedade capaz de afetar a saúde das pessoas, fartamente documentada por meio da geração da “fome holandesa” – período em que a Holanda foi submetida a um embargo de alimentos que coincidiu com um inverno rigoroso no país durante a Segunda Guerra Mundial.
A palavra epigenética se refere a alterações persistentes do DNA que não envolvem mudanças na sequência em si. A área estuda como são feitas e desfeitas essas ligações químicas de longa duração reguladoras dos genes.
Este trágico experimento natural é um dos casos citados pelo neurobiólogo norte-americano Richard C. Francis em “Epigenética: como a ciência está revolucionando o que sabemos sobre hereditariedade”, lançado no Brasil pela Zahar.
É um campo de estudos novo e potencialmente revolucionário, segundo o autor, que envolve mudanças de perspectiva fundamentais no entendimento da genética.
Arrisco um resumo da ideia: os cientistas estão investigando como o ambiente transforma nossos genes em longo prazo, sem mudar a sequência do DNA. É o que está por trás de diferenças radicais entre gêmeos idênticos e da perpetuação dos efeitos da fome holandesa sobre gente que não a viveu.
O que está em questão são ligações químicas de longa duração que regulam o comportamento dos genes. Os genes não estão no comando, conforme ditava a genética do passado. Para usar uma analogia de computadores citada pelo próprio autor: eles não são o “software” que controla o “hardware”, que seria o resto dos componentes da célula. Os genes também fazem parte do nosso hardware, como qualquer outro componente bioquímico.
Para dar uma ideia da importância desta mudança de ponto de vista do estudo dos genes, Francis a compara a ampliar o olhar da “unidimensionalidade para a tridimensionalidade”. Os desdobramentos desta perspectiva podem revolucionar o tratamento do câncer, por exemplo.
Mamãe rata
Um estudo mostrou que ratos que não eram lambidos o suficiente pelas mães tendiam a se transformar em adultos estressados. A falta de afeto e estímulo das lambidas gerou alterações epigenética em genes relacionados com o estresse. As fêmeas também sofreram mudanças ligadas ao gene receptor de estrogênio, o que as tornou menos inclinadas a lamber suas próprias crias, perpetuando um círculo vicioso. Há provas da existência de efeito semelhante em seres humanos que sofreram abusos na infância.
Se conseguiu chegar até aqui, você já deve ter percebido que o livro, embora seja dirigido ao público em geral, não tem vocação de distração leve e divertida para curiosos por ciência. Francis dá explicações detalhadas e generosas, em linguagem simples – embora raramente imprima tons pessoais ou seu senso de humor apenas discreto no livro. Mas, se você não tem um entendimento básico de genética e biologia, em alguns momentos poderá reviver fantasmas do ensino médio.
Aos mais interessados, Francis funcionará como um mediador qualificado e a par do que há de mais moderno em uma área nova, descartando noções que continuam sendo difundidas depois de já abandonadas pelos cientistas. Apontará possíveis conquistas futuras para o tratamento de males como o câncer e a obesidade. E possivelmente reforçará alguma paranoia em quem já tem medo das garrafinhas d’água e desconfia dos herbicidas e fungicidas que anda consumindo – sim, eles têm toxinas com efeitos sobre processos epigenéticos. Mas Francis vai saber te explicar melhor.
Aplicações da epigenética
Câncer
As formas epigenéticas de intervenções no câncer poderão diminuir os danos às células saudáveis. O que caracteriza a doença não é uma mutação específica, mas uma alteração epigenética chamada desmetilação – que, diferentemente das mutações, é reversível.
Estresse
Cientistas mostraram que uma substância chamada produzida pelo organismo da futura mãe durante trauma ou estresse atinge o feto o torna mais suscetível a doenças relacionadas ao estresse permanentemente. O entendimento dos processos epigenéticos no desenvolvimento fetal ajudarão no tratamento e na prevenção de patologias como a depressão, a ansiedade e a esquizofrenia.
Obesidade e diabetes
E a epigenética nutricional – que já é aplicada no uso do ácido fólico como para a nutrição fetal – permitirá aos cientistas, no futuro, fazer uma “programação fetal” da obesidade, do diabetes e outras condições por meio de medidas nutricionais cronometradas e dirigidas, além de criar dietas para indivíduos suscetíveis ou já acometidos por esses males.