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O presidente Lula concedeu nesta quarta-feira (12) uma medalha de Mérito Científico para o infectologista Marcus Vinícius Guimarães de Lacerda, que atua na Fiocruz Amazônia. Lacerda chefiou um estudo no começo de 2020 envolvendo a administração de cloroquina a doses mais altas que as recomendadas na bula para pacientes de Covid-19 em Manaus, levando a óbito de 22 pacientes. O total era de menos de 100 pacientes, e estavam todos internados, em mau estado. Grande parte deles era de obesos.
A Gazeta do Povo falou com Lacerda na época. Ele disse em entrevista que as mortes eram mais atribuíveis à própria Covid, pois “as pessoas que vão para a UTI com Covid estão gravíssimas, elas morrem mesmo. Eu estou trabalhando com uma doença que mata”. Ele também reclamou de quem atribuiu a causa de óbito à dose alta, declarando que “quem lê o artigo sabe que não foi absolutamente nada disso”, e disse que foram chineses que criaram a dosagem que ele adaptou para seus pacientes, “mais gordos”, de 600 miligramas de 12 em 12 horas.
Lacerda declarou que usou como base uma recomendação chinesa que tratava da dose segura para a hidroxicloroquina (HCQ), que é considerada menos tóxica que a cloroquina (CQ). A Academia Americana de Oftalmologia diz em seu site que as melhores estimativas disponíveis até 2016 sugeriam que a CQ fica perigosa a partir de 2,3 miligramas por quilo. Ou seja, a dose máxima para uma pessoa de 100 quilos seria de 230 miligramas de cloroquina — a usada no estudo de Manaus foi mais que o dobro dessa.
Uma carta técnica de novembro de 2021 pedindo pela retratação do estudo, de autoria de seis pesquisadores brasileiros, contudo, diz que o problema era outro: os chineses de fato usaram CQ, em composto de fosfato, mas Lacerda e colegas fizeram uma conversão incorreta da dose (ignorando o composto) para ajustar às pílulas brasileiras. A dose chinesa de 500 miligramas deveria ser convertida para duas pílulas brasileiras. Os autores do estudo usaram quatro, o que dá o dobro da dose chinesa. A revista científica, contudo, não atendeu ao pedido de retratação.
O estudo de Lacerda, que envolveu mais de 70 pesquisadores, foi usado amplamente como base para a afirmação de que a droga não tinha efeito terapêutico contra Covid. Em julho de 2021, a Gazeta do Povo falou com familiares de dois dos falecidos — um músico e um indígena. Os familiares acreditam que perderam seus entes queridos por causa da superdosagem. Também relataram práticas estranhas como assinatura de autorização para estudo depois do óbito em ambos os casos, e proibição de entrada com celular e uso de seguranças para impedir aproximação da esposa em um deles. O Ministério Público do Amazonas abriu investigação sobre o estudo.
Por ocasião da condecoração de Lacerda por Lula, a Gazeta do Povo falou com Paolo Zanotto, virologista da USP que defendeu o tratamento precoce. Ele preferiu não comentar o evento. No Twitter, ele mencionou outra fonte científica que mostra que a dose de Manaus era excessiva.
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