Resumo da reportagem
- Professores de humanidades tendem a ser antipáticos a Israel e simpáticos ao Hamas, enquanto cientistas e profissionais de disciplinas exatas mostram tendência oposta.
- Levantamento em Columbia revelou que nas ciências sociais e humanas, excluindo economia, a maioria é antipática a Israel, enquanto nas ciências naturais e exatas, 96% apoiam Israel.
- C. P. Snow propôs que humanas e ciências formam culturas distintas, com pouca comunicação entre elas, influenciando perspectivas sobre conflitos como o Israel-Hamas.
“O que está acontecendo em Gaza é um genocídio?”, pergunta a manchete de segunda-feira (13) na revista americana semanal Time. “Especialistas opinam”. A reportagem cita na maior parte especialistas que respondem “sim”. Todos eles são professores de disciplinas de humanidades. Esta maioria de opinião nas humanas, antipática a Israel e simpática ao Hamas, é invertida entre cientistas e profissionais de disciplinas mais exatas, indicou um levantamento preliminar feito por Ram Fishman, professor de sustentabilidade na Universidade de Tel Aviv.
No X, Fishman contou o número de professores da Universidade Columbia, organizados por área de estudo, entre os signatários de duas cartas abertas, uma anti-Israel e outra pró-Israel. Somente nas ciências sociais e demais humanidades, com exclusão da economia, houve uma maioria de antipáticos a Israel. Além disso, na área de ciências naturais e exatas, uma maioria esmagadora de 96% ficou do lado do país atacado pelo grupo terrorista.
Qual é a especialidade dos entrevistados pela Time? Raz Segal, que diz que a atuação de Israel em Gaza é “um caso paradigmático de genocídio”, tem doutorado em história e chefia um programa de pós-graduação em Holocausto na Universidade Stockton, Nova Jersey. Sua fala ecoa o que foi dito por Craig Mokhiber, um ex-diretor de direitos humanos da ONU, em uma carta de repúdio às Nações Unidas ao sair do cargo no mês passado — a formação dele foi em direito. Ernesto Verdeja tem títulos em filosofia e ciência política e faz pesquisa, na Universidade de Notre Dame (Indiana, EUA), também em genocídio e crimes contra a humanidade, além de “teoria crítica, Escola de Frankfurt e feminismo” — ele diz que Israel está fazendo uma “campanha genocida”. Já Victoria Sanford compara a sina dos palestinos ao genocídio dos maias na Guatemala, tema que ela estuda como antropóloga na Universidade da Cidade de Nova York.
Dos sete citados pela Time, somente dois expressam dúvida ou negam que Israel esteja fazendo um genocídio: Ben Kiernan, que estuda o genocídio do Camboja, e David Simon, diretor de estudos de genocídio, ambos da Universidade Yale.
Outras cartas abertas sobre a guerra Israel-Hamas corroboram os achados de Fishman. Uma carta pró-Israel da Universidade da Pensilvânia teve 232 assinaturas de professores de ciências naturais e exatas, e 76 de humanas. Entre os 76 signatários das humanidades, contudo, mais de 60% estão naquelas áreas de humanas em que Fishman detectou uma maioria pró-Israel em Columbia: administração, economia e direito.
Entre artistas, circula uma maioria de cartas anti-Israel, como as que pedem por um cessar fogo antes do resgate dos reféns. Uma delas foi publicada na revista New York Review of Books em 14 de outubro, assinada pelos participantes do Festival de Literatura da Palestina. Entre os 88 signatários está Ta-Nehisi Coates, escritor e jornalista badalado no identitarismo de raça nos Estados Unidos, que escreve para a revista The Atlantic.
Humanas e ciências naturais formam duas culturas diferentes, propôs C. P. Snow
Uma referência obrigatória quando se trata do conflito entre áreas diferentes da academia é Charles Percy Snow, inglês que atuou nas duas grandes áreas: era tanto um romancista “por vocação” quanto um especialista em físico-química “por treinamento”. Em 1959, Snow deu uma palestra em Cambridge mais tarde transformada no livro “As duas culturas e a revolução científica”.
Quando deu a palestra, ele acumulava três décadas de experiência “com cientistas não só por curiosidade, mas como parte do meu trabalho” e “entre escritores” com os quais deu forma aos romances que queria escrever. Sua alternância entre os dois mundos ocupava às vezes o curso de um mesmo dia, e ele fez amigos próximos dos dois lados.
Snow diz que observou que os dois grupos são “comparáveis em inteligência” e que “pararam quase completamente de se comunicar”. Como resultado, as duas culturas desenvolveram climas “intelectuais, morais e psicológicos” com quase nada em comum entre si: ao passar de uma para outra, “alguém poderia estar cruzando um oceano”.
“Eu acredito que a vida intelectual de toda a sociedade ocidental está cada vez mais sendo partida em dois grupos polarizados”, adverte Snow. Ele observa que os cientistas foram expulsos da categoria “intelectual”, mesmo sendo esta a natureza principal de seu trabalho. Por sua vez, os artistas com frequência tiveram arroubos de autoimportância, declarando-se a vanguarda cultural e dispensando outras abordagens no conhecimento.
A parte menos familiar para um leitor moderno é que Snow relata que cientistas eminentes da época culpavam artistas e escritores do começo do século XX pelos movimentos culturais que culminaram no nazismo. Hoje, esses movimentos românticos são esquecidos, e a cultura nazista é retratada (geralmente por intelectuais de humanas) como altamente científica e técnica, insinuando culpa da cultura científica pelo Holocausto. Porém, como contou o linguista russo-americano Max Weinreich no livro “Os acadêmicos de Hitler” (1946) após analisar milhares de livros, panfletos, revistas e documentos alemães, “houve participação dos acadêmicos alemães em cada uma das fases do crime”. Weinreich propõe que “todos os ramos das ciências sociais e das humanidades” participaram antes dos engenheiros na empreitada nazista, até os últimos chegarem para construir os campos de concentração.
Snow critica os cientistas por lerem pouca literatura, mas diz que a cultura científica é de debate vigoroso e alto rigor intelectual. “Não é que não estejam interessados na vida psicológica ou moral ou social. Certamente estão interessados na social, mais que a maioria de nós. Na vida moral, são em geral o grupo com o a maior sanidade entre intelectuais que nós temos”, diz o inglês, devolvendo os cientistas à categoria de intelectuais. “Há um componente moral no cerne da própria ciência”.
Quanto aos que aplicam suas mentes nas humanidades, Snow comenta que eles também empobrecem a si mesmos pelo pouco interesse na outra cultura, mas o fazem de uma forma mais vaidosa: “como se a ordem natural não existisse. (...) Como se o edifício científico do mundo físico não fosse, em sua profundidade intelectual, complexidade e articulação, o mais belo e maravilhoso trabalho coletivo da mente do homem.”
É importante notar que a cultura de humanas que Snow menciona, em seu país e época, era mais conservadora e mais respeitadora da cultura tradicional, dos grandes clássicos. Isso mudou, como ilustra um programa de treinamento “antirracista” que foi oferecido em quase 100 instituições de ensino superior no ano passado. O programa acusou a própria língua inglesa de endossar a supremacia branca e alegou que o “cancelamento” tem benefícios, além de fazer ataques a Winston Churchill (primeiro-ministro que venceu o nazismo), algo impensável nos tempos de C. P. Snow.
“Só há uma saída” para a divisão das duas culturas, alerta Snow: “repensar a nossa educação”.
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