Uma nova peça foi encaixada no quebra-cabeças das possíveis origens laboratoriais da pandemia de Covid-19. Documentos obtidos na semana passada (18) pela organização sem fins lucrativos U.S. Right to Know (algo como “Direito de saber EUA”) revelam que um projeto de engenharia genética em vírus aparentados ao da Covid-19, para o qual virologistas haviam pedido verba da inteligência americana em 2018, era para ser realizado no Instituto de Virologia de Wuhan (IVW, na China) em nível de segurança laboratorial que seria inaceitável nos Estados Unidos. Isso contraria o que esses cientistas tinham dito antes.
O “projeto Defuse” (algo como “projeto Neutralização”) solicitava à Darpa, agência estatal americana de fomento de pesquisa em defesa, o valor de 14 milhões de dólares para que o IVW buscasse novos coronavírus de morcegos em cavernas e manipulasse o seu material genético para que fossem capazes de infectar células pulmonares humanas em laboratório. A proposta, de autoria de cientistas americanos e chineses, incluía um plano de inserir na proteína de superfície do vírus uma estrutura molecular que está presente no SARS-CoV-2 e sem a qual o vírus dificilmente teria alcançado nível pandêmico.
Um dos documentos é um rascunho do projeto com comentários assinados com “PD” e “BRS”. E-mails mostram que essas são as iniciais de Peter Daszak, zoólogo britânico presidente da ONG EcoHealth Alliance — intermediária de verbas entre agências de fomento dos EUA e os chineses —, e Ralph S. Baric, virologista da Universidade da Carolina do Norte e um dos pioneiros em fazer coronavírus “Frankenstein”, com mistura de material genético de diferentes linhagens.
A proposta mandada à Darpa diz que Baric faria o trabalho mais perigoso de engenharia genética. Mas no rascunho, Daszak comenta que não propõe “que todo esse trabalho será conduzido necessariamente pelo Ralph, mas quero enfatizar o lado americano desta proposta para que a Darpa fique confortável com a nossa equipe”. O comentário é direcionado explicitamente para Ralph Baric e para a chefe do IVW, Shi Zhengli. O britânico também diz que “assim que conseguirmos a verba, podemos alocar quem faz qual trabalho exato, e acredito que muitos desses ensaios podem ser feitos em Wuhan também”.
Em mais uma aparente confissão de insinceridade, Daszak disse em outro documento que buscava “minimizar” a participação chinesa para não alarmar a agência estatal. “Pretendo usar os currículos meu e do Ralph”, escreveu ele. “Linfa/Zhengli, sei que seus currículos também são muito impressionantes, mas estou tentando minimizar o foco não-americano desta proposta para que a Darpa não enxergue algo negativo nisso”. Linfa Wang é um cientista de origem chinesa e diretor do Programa de Doenças Infecciosas Emergentes em uma Faculdade de Medicina fundada em parceria entre a Universidade Duke (Carolina do Norte) e a Universidade Nacional de Singapura.
Os padrões internacionais de biossegurança de laboratório têm quatro níveis, do mais baixo (BSL-1) ao mais alto (BSL-4). O Instituto de Virologia de Wuhan estava manipulando coronavírus em nível BSL-2, que apenas exige coifas ventiladas, máscaras cirúrgicas e jalecos. Vírus transmissíveis pelo ar como SARS-CoV-2 exigem o nível mínimo BSL-3. O rascunho propunha o nível 2 como “muito econômico”, com uma edição posterior para o nível 3. Um comentário assinado por Ralph Baric explica a edição: “Nos Estados Unidos, esses coronavírus recombinantes são estudados em BSL-3, não BSL-2, o que é de importância especial para aqueles que são capazes de se ligar e se replicar em células humanas”. “Na China”, ele continua, “pode-se cultivar esses vírus sob BSL-2. Pesquisadores americanos provavelmente vão perder a cabeça” se o nível de segurança proposto fosse este. “Recombinante” é o termo técnico para material genético alterado com diferentes origens.
“Isso é um escândalo”, disse à U.S. Right to Know Justin Kinney, biólogo quantitativo no Laboratório de Cold Spring Harbor, instituição famosa na área da biologia molecular. “Essas revelações são importantes porque esses experimentos específicos poderiam, de forma plausível, ter levado à engenharia genética e escape acidental do SARS-CoV-2”. Procurados, Daszak e Baric não quiseram se manifestar.
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