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Resumo da reportagem
- Embriões humanos foram criados em laboratório pela primeira vez, sem necessidade de fecundação, usando células-tronco embrionárias.
- Os embrioides humanos, como são chamados, alcançaram um estágio de desenvolvimento de duas semanas, ajudando a entender o período inicial da vida humana e potencialmente avançando pesquisas sobre aborto espontâneo, infertilidade e transplante de órgãos.
- A pesquisa levanta questões éticas e legais sobre a manipulação e o desenvolvimento de embriões humanos, com especialistas alertando sobre possíveis usos indevidos em países com regulamentações menos rigorosas.
Pela primeira vez, embriões humanos foram feitos em laboratório sem a necessidade de fecundação (óvulo e espermatozoide), a partir de células-tronco que são em si embrionárias, ou seja, retiradas de embriões humanos que vieram do processo natural. Os embriões não se desenvolveram o suficiente para formar órgãos, e não há planos de implantá-los em úteros ou levar seu desenvolvimento a termo, o que seria ilegal em grande parte do mundo. A descoberta foi anunciada na quarta-feira (14), primeiro dia de uma conferência da Sociedade Internacional de Pesquisa em Células-tronco (ISSCR) que ocorre até o fim da semana em Boston, EUA.
Desde o advento da reprodução assistida (fertilização in vitro), fecundações feitas em laboratório permitiam o estudo dos embriões humanos na primeira semana, antes de serem implantados em útero. A segunda semana, contudo, permanecia uma “caixa preta”. O melhor entendimento dessa fase é o objetivo do estudo associado à novidade, que ainda não foi publicado em revista científica após revisão, mas foi disponibilizado em um banco de artigos preliminares.
O anúncio foi feito por Magdalena Zernicka-Goetz, professora de biologia, engenharia biológica e desenvolvimento de mamíferos da Universidade de Cambridge, Reino Unido, e do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech). Ela também esteve envolvida em experimentos que geraram embriões “sintéticos” de camundongos no ano passado que tinham primórdios de coração com batimentos. Desde aquela descoberta, uma corrida foi feita para reproduzir os resultados em humanos — o grupo de pesquisa chefiado pela especialista venceu, daí o novo resultado. Deixado para trás na disputa científica foi principalmente um grupo rival do Instituto Weizmann, em Israel, que participou da pesquisa dos camundongos.
Embrião humano “sintético”
“Podemos criar modelos similares a embriões humanos pela reprogramação de células [tronco embrionárias]”, disse a cientista à plateia do evento. O estágio de desenvolvimento desses “modelos” equivale a duas semanas de desenvolvimento dos embriões naturais, explicou Zernicka-Goetz.
Os cientistas chamam de modelos aqueles organismos que eles estudam a partir dos quais podem fazer generalizações sobre os fenômenos biológicos. Neste caso, o termo também significa que o objeto de estudo não é idêntico aos embriões naturais — os da pesquisa do ano passado, de roedores, paravam espontaneamente de se desenvolver. Os do novo estudo com células humanas também são chamados pelos pesquisadores de “embrioides humanos” de fase associada à pós-implantação.
“Nosso modelo é o primeiro de embrião humano em três linhagens que apresenta âmnion [membrana que delimita a bolsa que abriga o embrião], e células germinativas, que são células precursoras de óvulos e espermatozoides”, detalhou a bióloga ao jornal britânico The Guardian. “É lindo e criado completamente a partir de células-tronco embrionárias”.
O desenvolvimento fetal é delicadamente guiado por sinalização das próprias células entre si. A equipe de Zernicka-Goetz foi capaz de induzir uma auto-organização das células, que passaram a formar estruturas de embrião completo dentro de um meio de cultura nutritivo. Isso foi feito pela administração de drogas que ligam genes específicos e posicionamento em placas que facilitam a agregação celular.
Uma razão para esse tipo de pesquisa, dizem os cientistas, é entender por que tantas gestações terminam em aborto espontâneo neste delicado período inicial da vida humana — 60% dos óvulos fecundados humanos são espontaneamente abortados nas duas primeiras semanas —, além de entender melhor algumas doenças genéticas. Mas há outros planos no horizonte: se for possível desenvolver órgãos isolados, por exemplo, isso abre a possibilidade de serem órgãos clones de pacientes que precisam de transplante, eliminando o problema da rejeição, pois esses órgãos teriam o mesmo DNA dos pacientes.
A presença de células precursoras de gametas nos embriões “sintéticos” também abre novas possibilidades reprodutivas, como a cura da infertilidade. Há ainda uma grande dose de especulação nesses cenários de aplicação prática.
Vácuo legal, risco moral
Quando democracias desenvolvem novas técnicas em bioengenharia, isso acaba sendo usado em ditaduras, como ilustra o caso do biofísico chinês He Jiankui, que aplicou a nova técnica CRISPR de edição do DNA em embriões que se desenvolveram em três crianças. O cientista foi preso por três anos por um tribunal e foi libertado no ano passado.
Os embrioides sintéticos poderiam ter um destino similar. De fato, em abril deste ano, chineses implantaram embriões desse tipo, feitos a partir de células-tronco embrionárias de macacos cinomolgos, em fêmeas da mesma espécie. Esse trabalho foi liderado por Zhen Lu, cientista do Laboratório Estatal de Neurociência de Xangai. Em três das oito macacas, os embriões começaram a se desenvolver. Porém, todas as gestações terminaram espontaneamente em poucos dias. Isso confirma, ao menos, que os embrioides não são idênticos aos embriões naturais, e que as limitações para os cenários mais assustadores são, por enquanto, técnicas, não apenas éticas.
Como ainda não está claro até que ponto os embrioides são comparáveis aos embriões naturais, há um vácuo legal nos países envolvidos. Ainda não há regulamentação a respeito de limites ou consenso a respeito de quais eles deveriam ser.
“Os modelos embrionários têm a promessa, ou ameaça, de não apenas criar um modelo realista do desenvolvimento de algumas partes de órgãos humanos importantes, mas de levar a modelos realistas de todos os órgãos e tecidos humanos e, em potencial, à criação de bebês”, disse Hank Greely, professor de direito do Centro de Ética Biomédica da Universidade Stanford, à Quanta Magazine.
O limite de 14 dias para crescimento dos embriões de laboratório é um limite legal de muitos países. Após o período, os embriões devem ser destruídos. No Brasil, a área é regulada pela Lei de Biossegurança (11.105/2005). Para Amanda Costa, advogada especialista em Direito Médico e da Saúde, que atua no Rio de Janeiro, a lei estabelece “um uso de célula-tronco extremamente limitado, tendo em vista que só é permitido para fins de pesquisas e terapias, devendo cumprir requisitos” que incluem, por exemplo, que as células sejam obtidas de fertilização in vitro.
“A criação de embriões sintéticos equipara-se, a meu ver, à criação de clones, ou seja, é antiético e ilegal”, explica Costa. Quem o fizer no Brasil “pode incorrer em pena de um a três anos de detenção, mais multa”. A especialista adere à “teoria concepcionista”, que significa que “a partir do momento da fecundação do óvulo pelo espermatozoide, já há vida humana”.
Temores já foram expressos por especialistas antes. Genival Veloso, médico e advogado, diz em sua obra “Comentários ao Código de Ética Médica” (Guanabara Koogan, 2019) que “O grande risco no futuro é que a medicina se afaste de seu modelo de ciência e arte (...) e passe a manipular substancialmente a vida humana”.