O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin apelou à ciência, na última semana, para suspender trechos de decretos do governo federal, de modo a restringir o acesso a armas de fogo e munição. As liminares concedidas aos partidos PSB e PT em três ações de inconstitucionalidade vetam o “mero” interesse pessoal como razão suficiente para aquisição de armas e munição, reforçando a exigência de provar necessidade para a segurança pública, defesa nacional ou pessoal, por exemplo na profissão de guarda-costas. Para justificar a interferência, Fachin alegou “extrema e excepcional urgência” diante de um suposto “risco de violência política” durante a campanha presidencial, garantindo que “as melhores práticas científicas atestam que o aumento do número de pessoas possuidoras de armas de fogo tende a diminuir, e jamais aumentar a segurança dos cidadãos”.
O juiz se embasou no relatório do Atlas da Violência de 2019, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), que alega que “há consenso na literatura científica internacional sobre os efeitos perniciosos da difusão de armas de fogo na sociedade”. O estudo cita dez revisões e metanálises (estudos que reavaliam e buscam um padrão em outros estudos) publicadas entre 2012 e 2017 e aponta que nove delas concluíram que a quantidade de armas “tem efeito positivo [ou seja, de aumento] sobre os homicídios, sobre a violência letal e sobre alguns outros tipos de crime”.
Evocar a ciência para justificar esse tipo de decisão carrega uma série de riscos, que vão desde as objeções envolvendo a natureza do “consenso” na pesquisa científica até um problema ainda mais profundo: a substituição da democracia por uma “cientocracia”. Confira alguns pontos sobre a controvérsia de valer-se da ciência para discutir desarmamento:
Desarmar é consenso científico?
Um dos livros mais citados a respeito da eficácia do controle do porte de armas de fogo é “Mais Armas, Menos Crime: Entendendo o Crime e as Leis de Controle de Armas” [tradução livre para “More Guns, Less Crime: Understanding Crime and Gun Control Laws”], do economista americano John R. Lott Jr. O livro tem mais de mil citações em outras publicações no Google Acadêmico e passou por três versões da editora da Universidade de Chicago até o ano de 2010. Na terceira edição, que marcou os dez anos da primeira, Lott acumulou resultados de 39 estados americanos cobrindo o período histórico de 1977 até 2005.
“Até aqui”, diz o autor no livro, “dezenas de acadêmicos publicaram estudos a respeito de leis de direito ao porte usando dados nacionais. Esses estudos ou confirmaram a associação benéfica entre a posse de arma e [a diminuição do] crime, ou no mínimo não encontraram indicação de que a posse aumenta o crime”. Lott reconhece que os resultados podem variar a depender dos métodos, mas aponta que, ao menos até 2010, nenhum estudo indicava que leis que relaxavam o porte de arma tivessem o efeito de aumentar o crime.
De fato, no período de vigência dos decretos no Brasil, no mínimo os resultados em segurança pública não são consoantes com a opinião do ministro Fachin: segundo o projeto Monitor de Violência, firmado pelo site de notícias G1 com o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os assassinatos no país caíram 5% no primeiro semestre deste ano.
Consenso importa em ciência?
Consenso não é unanimidade. As nove em dez revisões citadas pelo IPEA dão uma impressão de consenso científico, ou seja, uma maioria de opinião. Mas o que importa é se essa opinião majoritária se traduz em conhecimento (baseado em evidências e previsibilidade) ou provém de outras causas, como vieses e crenças pessoais.
Uma maioria de opinião entre cientistas poderia, por exemplo, meramente refletir uma persuasão política majoritária acidental, um compartilhamento de cultura ou de outras crenças não-científicas. Na ciência, esse tipo de consenso costuma representar um empecilho ao avanço da pesquisa, não um resultado dele.
As crenças políticas são muito importantes neste caso, pois, como teoriza o psicólogo social Jonathan Haidt, as grandes visões políticas que chamamos de esquerda e direita diferem entre si pela ênfase que dão a “alicerces morais” inatos. A esquerda evita danos e oferece cuidado a grupos selecionados. A direita também se embasa neste alicerce, mas não só nele, distribuindo suas preocupações para outros alicerces como o respeito à lealdade e às hierarquias tradicionais. Por essa teoria, são previsíveis os vieses dessas duas grandes persuasões políticas quanto à posse de armas. Já se for levada em conta a orientação ideológica dos cientistas, também fica previsível qual será o “consenso científico”.
Antes das eleições presidenciais americanas de 2020, a revista Nature ouviu 900 cientistas que leem a publicação, e 86% deles afirmavam apoiar o democrata Joe Biden. Outra pesquisa feita pelo Pew Research Center em 2009 apontou que 66% dos cientistas se consideravam progressistas ou muito progressistas. Em 2018, a Associação Nacional de Acadêmicos dos Estados Unidos investigou a distribuição de afiliados ao partido Democrata (mais progressista) ou ao Republicano (mais conservador) entre mais de cinco mil professores das 51 mais prestigiosas universidades americanas. A sociologia tinha 44 professores democratas para cada republicano. As geociências tinham 27, a biologia 21, a psicologia 17, a física seis e a química cinco democratas por republicano. A mais equilibrada das áreas acadêmicas era a engenharia, com 1,6 professor democrata para cada professor republicano.
A ênfase em consenso científico, que atingiu o ápice durante a pandemia, merece ser temperada com o desafio clássico feito por Einstein. Em 1931, foi publicada uma coleção de críticas à teoria da relatividade com o título Cem Autores Contra Einstein. O físico famosamente respondeu que, se ele estivesse errado, um só bastaria. Outro grande cientista que se opôs à ideia do respeito a consensos foi Galileu. Seu contemporâneo, o padre jesuíta e astrônomo Orazio Grassi, defendia o “consenso” dos antigos sábios da Babilônia de que um ovo cozinharia se girado na ponta de uma corda. Galileu ironizou que, já que o experimento não funcionava, a única explicação para o fracasso na replicação do resultado era que seus contemporâneos não eram babilônios.
Enquanto consensos não são a alma da ciência, essa também não está necessariamente na voz de pesquisadores dissonantes minoritários. Para a filósofa Susan Haack, britânica que leciona na Universidade de Miami, a pesquisa científica não se resolve pelo número de pessoas que defendem uma ideia, mas se assemelha às investigações do nosso cotidiano. “Todos nós, na mais ordinária das investigações cotidianas, encontramo-nos reavaliando a verdade provável dessa ou daquela alegação conforme novas evidências aparecem; os cientistas devem revisar suas avaliações repetidamente conforme membros da comunidade fazem novos experimentos, conduzem novos testes, desenvolvem novos instrumentos etc.”, diz a filósofa no livro “Defendendo a Ciência: Dentro do Razoável” [tradução livre para “Defending Science — Within Reason”, de 2007].
Não é uma mera questão de ciência
A postura de tutela de acadêmicos e autoridades como Fachin já foi rejeitada pelos cidadãos brasileiros no referendo de 23 de outubro de 2005, quando 64% votaram pela continuidade da comercialização de armas e munição no país. Há, portanto, uma tensão entre apelar para as más consequências da livre circulação das armas de fogo — para restringi-la ou impedi-la — e o princípio de respeitar a vontade da entidade política da qual a Constituição diz que todo o poder emana: o povo. Trata-se de uma tensão de natureza ética, moral e filosófica, cujos elementos científicos são só parte da equação, não sua resolução completa.
Assim como muitos comentaristas da pandemia erraram ao dar falsa certeza da ineficácia dos medicamentos do tratamento precoce — um debate longe de estar encerrado —, muitos desarmamentistas dão a falsa impressão de que o apelo às más consequências encerra a questão da permissibilidade das armas e munições como propriedade de indivíduos comuns em uma sociedade. Um subgrupo de desarmamentistas deseja atropelar as vontades e liberdades de muitos indivíduos no afã de fazer algo “para seu próprio bem”. Esses indivíduos foram consultados a respeito de o Estado tomar essa posição paternalista de remover riscos pela via da maior restrição da liberdade de posse de armas. A maioria disse não.
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