Quando conseguiu ultrapassar a fronteira entre a Coreia do Norte e a China, Yeonmi Park, então com 13 anos, pesava apenas 30 quilos e ainda enfrentava uma séria infecção intestinal. Na noite em que conseguiu fugir do regime norte-coreano, em 31 de março de 2007, ela estava acompanhada da mãe e de um atravessador, um traficante de pessoas. Ela aguentou firme as 24 horas de caminhada, embora sem forças e sob um frio de 40 graus negativos, porque só tinha dois objetivos: encontrar a irmã na China e matar a fome.
“Eu não fugi da Coreia do Norte em busca de liberdade. Eu nem sabia o que era isso. A fome tornara-se insuportável; eu queria arriscar minha vida pela promessa de uma tigela de arroz.”, conta Yeonmi, hoje com 23 anos.
Este é apenas um trecho de diversos horrores narrados no livro "Para Poder viver", que narra não só a fuga de Yeonmi da Coreia do Norte, mas também toda a sua infância vivida sob o regime de Kim Jong-Un em Hyesan, uma cidade às margens do rio Yalu, que separa o país da China. Há relatos de abusos, tortura, controle total do Estado e de fome, muita fome.
Assim como Yeonmi, que hoje vive em Nova York e é ativista dos direitos humanos, outros fugitivos também contaram suas experiências em livros publicados no Brasil, assim como jornalistas e até mesmo um psiquiatra que ousaram visitar o país mais fechado do mundo, que vive sob um regime profundamente repressor e, ao retornarem, decidiram contar o que viram.
“Para poder viver” é um dos poucos livros disponíveis no Brasil que falam do regime norte-coreano que ascendeu em 1948 com Kim Il-Sung, o “presidente eterno, e que hoje está nas mãos do neto Kim Jong-Un. Trata-se de um dos países mais isolados e vigiados de todo o planeta, o que explica a dificuldade em se obter material confiável sobre o tema.
“Acho que faltam livros em português sobre a Coreia do Norte porque o país é fechado mesmo, e também por causa da distância. Mesmo em inglês não são muitos os livros, tirando os que falam sobre a Guerra da Coreia — que, oficialmente, ainda não acabou”, diz o historiador e diplomata Gustavo Marques. “Tem também o fato de que quase tudo que se escreve sobre a Coreia do Norte, por causa da natureza do regime, é meio que suspeito. O regime publica periodicamente revistas e folhetos em inglês, mas é tudo propaganda”, acrescenta.
Para poder viver
Autora: Yeonmi Park
Editora: Companhia das Letras
Por que é importante ler: O livro de Yeonmi Park não é apenas sobre a fuga da Coreia do Norte, que levou alguns anos até se concretizar, quando passou pela China, atravessou a Mongolia e chegou à Coreia do Sul. A obra também descreve a vida sob o regime do ditador Kim Jong-Il, com relatos de tortura, morte, censura e fome, além de críticas ao sistema de saúde e educação norte-coreano, que costuma ser propagandeado pelos defensores do regime em todo o mundo.
Uma semana antes da fuga, a adolescente foi parar em um hospital por conta de uma suposta apendicite. Submetida a uma cirurgia, os médicos descobriram, após cortá-la, que o problema era uma infecção intestinal. Mesmo assim, removeram o apêndice e a costuraram. Ao acordar do efeito dos medicamentos, Yeonmi estava em um catre no chão. Como a família não tinha dinheiro para oferecer de propina, as enfermeiras não realizavam nenhum tipo de atendimento à menina. Restava à mãe limpar o curativo, levá-la ao banheiro e providenciar a comida.
“O hospital era mal equipado e imundo. Para usar o banheiro, eu tinha de me levantar e atravessar um pátio aberto até a casinha, do lado de fora. No início, eu estava fraca demais para ficar de pé. Mas quando já estava bem o bastante para ir ao banheiro, descobri que o hospital usava o pátio para guardar os mortos. Durante todo o tempo que estive lá, vários corpos foram empilhados como se fossem madeira entre minha enfermaria e o lado de fora. Ainda mais medonhos eram os ratos que se banqueteavam com eles dia e noite. Foi a cena mais terrível que já vi. A primeira coisa que os ratos comem são os olhos, porque são as partes mais macias do corpo.”
Minha mãe não podia acreditar que o hospital deixava os corpos lá expostos. “Por que vocês não levam essas pessoas embora e as queimam?”, ela reclamou quando uma enfermeira passou por ali. A enfermeira deu de ombros. “O governo não vem recolher esses corpos enquanto não houver pelo menos sete. E agora só há cinco”, disse ela indo embora.
E a educação gratuita? Não é bem assim, diz o livro de Yeonmi. Alunos devem pagar pelo uniforme, pelo material escolar e pelas refeições. Como o pai da adolescente foi preso por contrabando de produtos chineses, a família ficou sem dinheiro e Yeonmi teve que abandonar a escola, assim como a irmã. O pai ficou 16 anos preso. Nesse período, foram tantas privações, abusos e fome, que surgiu o plano de fuga para a China, através de contatos com redes de contrabandistas.
Viva o Grande Líder!
Autor: Marcelo Abreu
Editora: Record
Por que é importante ler: O jornalista relata sua viagem à Pyongyang e descreve o culto à personalidade dos ditadores e todo o trabalho da propaganda governamental para alimentar essa adoração.
O jornalista brasileiro Marcelo Abreu publicou um dos primeiros livros sobre o regime norte-coreano, fruto de uma viagem que fez ao país fazendo-se passar por um membro de organização humanitária. Marcelo Abreu descreve o culto à personalidade dos ditadores desde Kim Il-Sung até o neto Kim, além de destacar tristes curiosidades sobre a vida do povo norte-coreano, que vive às escuras pela completa escassez de energia elétrica desde os anos 80. A imagem de Kim Il Sung, por exemplo, está em todos os lugares o tempo todo: em monumentos, placas, comércio, restaurantes, hotéis, nas residências, para qualquer lugar que se olhe.
"O interessante está no fato de ter sido o primeiro brasileiro a falar sobre isso e o processo de lavagem cerebral fica bem claro", explica Gustavo Marques.
Nada a invejar
Autor: Barbara Demick
Editora: Companhia das Letras
Por que é importante ler: Para o historiador Rodrigo Villela, autor do blog Ler para viver, este é o melhor livro sobre a Coreia do Norte até o momento. “O interessante deste livro é que a autora lida com diferentes classes sociais, nos mostrando as várias maneiras com que o regime norte-coreano interfere na vida das pessoas. O ponto em comum entre os entrevistados pela escritora está no fato de que todos se tornaram refugiados”, diz Vilella. “É errado pensar que todos os dissidentes que saem daquele país são altamente politizados e, por se desiludir com o governo, resolveram tentar a sorte em outro lugar”
Para elaborar o livro, a jornalista norte-americana entrevistou diversos dissidentes norte-coreanos, contou com documentos e fotos, e também viajou para o país como membro de agência de ajuda comunitária. Entre as peculiaridades do regime – que foi considerado modelo de desenvolvimento econômico no início dos anos 60 e entrou em colapso a partir dos anos 80 com o problema do fornecimento de energia elétrica – Demick cita a rígida divisão da sociedade em classes sociais. No total, são 42 grupos, entre a elite (formada pela família dos ditadores, políticos, militares e heróis de guerra) e as personas non grata, que lutaram contra a Coreia do Norte na guerra que dividiu a península.
Além disso, o livro mostra como o regime norte-coreano controla todas as formas de comunicação: rádio, TV, livros, jornais, revistas, internet e todas as formas de contato com o mundo externo.
Fuga do Campo 14
Autor: Blaine Harden
Editora: Intrínseca
Por que é importante ler: Este também é um um dos títulos mais famosos sobre o tema. “Neste livro podemos entender como esse mesmo sistema lida com seus presos políticos. Temos torturas, traições, humilhações públicas etc. Tudo isso exposto para o leitor”, diz o historiador Rodrigo Villela.
O livro conta a jornada de Shin Dong-hyuk, norte-coreano que conseguiu fugir do chamado Campo 14, um dos piores campos de trabalho existentes na Coreia do Norte, e cuja existência é negada pelos defensores do regime. Nascido neste local, ele passou 23 anos tendo a realidade do campo de trabalho como sua visão de mundo.
“Os guardas, porém, não se importavam que Shin e os amigos comessem ratos, rãs, cobras e insetos. Eles eram esporadicamente abundantes na vastidão do complexo, onde se usavam poucos pesticidas, recorria-se a excrementos humanos como fertilizante e não se fornecia água para a limpeza de latrinas ou banhos. A ingestão de ratos não enchia apenas estômagos vazios; era essencial para a sobrevivência. Sua carne ajudava a evitar a pelagra, doença por vezes fatal que grassava no campo, em especial no inverno. Prisioneiros com pelagra, resultado de uma carência de proteína e niacina em suas dietas, experimentavam fraqueza, lesões da pele, diarreia e demência. A doença era uma causa frequente de morte.”
Um dia, ainda criança, Shin percebe que sua mãe e irmãos estão tramando uma fuga do Campo 14. Achando que estava cumprindo seu dever e sendo um bom menino, tratou de denunciar à família às autoridades. Foram todos presos e considerados traidores da pátria. Schin foi torturado por dias e, no final, assistiu à execução de seus pais e irmão.
“Quando os guardas arrastaram sua mãe para a forca, Shin viu que ela parecia inchada. Eles a obrigaram a subir num caixote de madeira, amordaçaram-na, amarraram-lhe os braços atrás das costas e apertaram-lhe um laço em volta do pescoço. Não cobriram seus olhos inchados.
Quando os guardas empurraram o caixote, ela se sacudiu de um lado para outro, desesperadamente. Enquanto observava a luta da mãe, Shin pensava que ela merecia morrer.
O irmão de Shin parecia macilento e frágil quando os guardas o amarraram ao poste de madeira. Eles dispararm três vezes os seus fuzis. Balas arrebentaram a corda que atava a testa do prisioneiro ao poste. Foi uma morte sangrenta, com miolos espalhados, um espetáculo que nauseou e amedrontou Shin. Mas ele pensava que o irmão também merecia aquilo.”
“Até que, em certo momento, Shin começa a saber da existência de um outro ‘planeta’, um lugar com liberdades individuais, onde é possível ir e vir sem ser fiscalizado, dar sua opinião sobre as coisas”, explica Villela. Obcecado por essa idéia, ele começa a planejar sua fuga.
“O autor não visa, unicamente, apresentar a vida precária no campo de trabalho forçado sob a perspectiva de um dos presos, mas demonstrar como as miseráveis condições de vida naquela região afetam toda uma sociedade. Mesmo cercada por potências globais - China, Japão e Coreia do Sul -, o pequeno país segue isolado (ou quase) do mundo", avalia o historiador.
Um psiquiatra na Coreia do Norte
Autor: Nelson Asnis
Editora: Buqui
Por que é importante ler: O psiquiatra Nelson Asnis teve uma idéia diferente quando visitou Pyongyang, capital da Coreia do Norte, como turista. Não apenas narrar o que via, ele quis estudar a mente dos norte-coreanos. Este é o livro mais recente sobre o assunto, lançado em agosto deste ano pela editora Buqui. Professor de psicologia da PUCRS, ele foi um entre cinco brasileiros que viajam, em média, ao ano, para lá.
“Em Pyongyang experimentei reações emocionais muito curiosas. À semelhança de uma Síndrome de Estocolmo misturada com genuína compaixão, sinto pena e um carinho muito grande por aquelas pessoas que a todo momento revelam sua profunda admiração e gratidão pelos pais da pátria. O mais impressionante é que, lavagem cerebral ou não, tudo se mostra muito sincero”
O fato é que os norte-coreanos são profundamente traumatizados por causa do período de dominação japonesa, explica o psiquiatra. “Eles se defendem como podem, recorrendo a um líder forte. Eles sentem profundo desamparo, e é muito comum, em situações assim, pessoas recorrerem a figuras míticas nem sempre sinceras. Vi um grupo de pessoas que acreditam neste modelo, acham que este é o caminho, assim como em Cuba. Eles vivem em um presídio, mas têm orgulho de sua pátria”, diz Asnis. “Sou sensível a um povo profundamente machucado.”
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