Agora é oficial: desde o final de março, após finalmente ativar o chamado Artigo 50 do Tratado de Lisboa, o Reino Unido está em contagem regressiva para deixar a União Europeia (UE). Quando a primeira-ministra britânica, Theresa May, fez uso do mecanismo legal que permite a saída de um país do bloco europeu, ela não apenas estava respondendo aos resultados do referendo do “Brexit”, realizado no ano passado. Era, também, a mais recente manifestação de um discurso político muito mais antigo, com suas raízes na época em que o Império Britânico vivia seu auge: a ideia de que os britânicos são “excepcionais”, diferentes do resto continente, ajuda a compreender as turbulentas relações entre o Reino Unido e a UE nas últimas quatro décadas.
Excepcionalismo
O suposto “excepcionalismo” britânico vem de longe, de uma época em que o país ocupava uma posição de predomínio político, econômico, cultural e militar similares aos que os Estados Unidos mantêm hoje. No século XIX, quando a Revolução Industrial havia levado a Grã-Bretanha a um desenvolvimento econômico jamais visto, Londres também dominava territórios em todos os cantos do planeta. Por volta de 1920, cerca de um quarto do mundo era governado desde o Parlamento em Westminster: da Austrália ao Canadá, passando por Índia, África do Sul, Egito e muitos outros países que mais tarde conquistariam a independência, a extensão territorial faria jus ao ditado segundo o qual “o sol nunca se põe no Império Britânico”.
As Guerras Mundiais e os movimentos de libertação nacional afetariam esse domínio: nas décadas seguintes, o Reino Unido ficaria cada vez mais resumido às ilhas britânicas e o protagonismo no Ocidente passaria às mãos americanas. Mas o declínio do antigo império não acabou com o sentimento de excepcionalidade, sentido no dia a dia e praticado na política externa britânica.
Domínio secular
É claro que ver a si mesmo como uma nação “excepcional” não é uma exclusividade britânica. Peter Levine, professor de Cidadania e Assuntos Públicos na Universidade Tufts, nos Estados Unidos, lembra que muitas nações apontam aspectos “únicos” para se justificarem como diferentes: “eu acredito que quase todos os países têm alguma justificativa para se imaginar como únicos”.
Mas se um país como a Suíça, por exemplo, pode se imaginar excepcional por sua histórica neutralidade, sua influência sobre o desenvolvimento de outras nações é praticamente inexistente. No caso britânico, ao contrário, o domínio se estendeu por séculos: “os britânicos podem ter um argumento mais objetivo do que muitos outros. Eles foram muito poderosos por um longo tempo. Nem toda nação teve (e perdeu) um império global. Quando se é poderoso, é mais fácil se ver como excepcional”, afirma Levine.
Os britânicos tem um argumento mais objetivo do que os outros. Eles foram muito poderosos por um longo tempo. Nem toda nação teve (e perdeu) um império global. Quando se é poderoso, é mais fácil se ver como excepcional
Segundo o professor, o desenvolvimento distinto do Reino Unido oferece argumentos difíceis de encontrar em outras nações: o antigo império foi o primeiro lugar do mundo a se industrializar e, também, dono de um poder territorial que nem mesmo os Estados Unidos atingiriam após assumirem o protagonismo no século XX. “A constituição britânica é única, e alguns estrangeiros importantes, como Montesquieu, chegaram a considerá-la superior a todos os outros sistemas”, diz Levine.
Com o passar do tempo, outros fatos foram se somando à lista de tópicos que os nacionalistas britânicos utilizam para justificar sua alegada diferença: na Segunda Guerra Mundial, a ilha foi a única potência europeia envolvida no conflito a não ser ocupada pelos alemães, a despeito dos constantes bombardeios nazistas sobre Londres.
Isolamento
Mesmo quando o Império Britânico entrou em declínio e perdeu a maioria das suas ex-colônias ao longo do século XX, o sentimento de excepcionalidade não desapareceu. As distinções entre a Grã-Bretanha e o restante do continente europeu seguiram sendo percebidas em vários aspectos do dia a dia e, embora o país tenha feito várias concessões aos vizinhos ao longo dos 44 anos desde que entrou no bloco europeu, ainda insistiu no isolamento em outros pontos.
Na vida cotidiana, por exemplo, o país ainda usa milhas para medir distâncias, mesmo que esteja desde 1965 prometendo mudar para o sistema métrico como forma de se equiparar aos demais europeus. No esporte, o futebol britânico passou décadas se recusando a ser testado por estrangeiros, abrindo mão de participar da Copa do Mundo, uma invenção francesa, por duas décadas: a Inglaterra só disputou o torneio pela primeira vez em 1950 (quando foi derrotada pelo time quase amador dos EUA, em Belo Horizonte).
Na política, a relação com a UE sempre foi cheia de privilégios: desde a entrada do Reino Unido em 1973, o país frequentemente reclamou das condições comerciais, ameaçou a saída várias vezes e jamais cedeu ao uso do euro como moeda comum, permanecendo com a histórica libra esterlina.
Com o “Brexit”, as ameaças enfim se tornaram reais – para o bem e para o mal, os britânicos voltarão a andar por conta própria. Uma das questões levantadas pelos defensores da saída do Reino Unido é que, dentro da UE, os países não teriam autoridade suficiente sobre si mesmos. Esse pensamento não chegava a ameaçar a estabilidade do bloco durante as décadas de fartura econômica: com fronteiras mais abertas e regulamentações comuns, a Comunidade Europeia pareceu por muito tempo um exemplo de prosperidade e cooperação para o resto do mundo.
Ameaça à soberania
No entanto, sentindo-se impotentes diante da crise financeira iniciada em 2008 e da subsequente crise migratória originada nos países do Oriente Médio, movimentos conservadores voltaram a reivindicar com força o direito a estabelecer suas próprias leis internas na última década. Na Grã-Bretanha, onde a resistência à UE já vinha de mais tempo, o argumento nacionalista encontrou ainda mais eco. De acordo com os defensores do “Brexit”, ao se associar dentro de uma comunidade supranacional que dita regras comuns, o direito à autodeterminação estaria em risco constante.
“É nesse sentido que a Grã-Bretanha sempre esteve em desacordo com a flutuação política natural da União Europeia”, argumenta Joseph Loconte, professor de História no King’s College, em Nova York. “A UE materializa uma cultura política que acaba minando o compromisso histórico da Grã-Bretanha com a autodeterminação, a separação dos poderes e a soberania dos Estados democráticos. Não deveria ser surpresa que muitos britânicos acabaram vendo a União Europeia como uma ameaça às suas liberdades individuais enquanto cidadãos britânicos”, sustenta Loconte.
Não deveria ser surpresa que muitos britânicos acabaram vendo a União Europeia como uma ameaça às suas liberdades individuais enquanto cidadãos britânicos
Nem todos os cidadãos agrupados sob a bandeira do Reino Unido concordam com as reservas em relação à UE. No referendo do “Brexit”, tanto a Escócia quanto a Irlanda do Norte votaram majoritariamente a favor da permanência no bloco, mas foram superados pelos ingleses, muito mais populosos.
Assim como a UE, o próprio Reino Unido é uma organização política que engloba mais de uma nação – e escoceses e norte-irlandeses voltam a discutir suas próprias independências, sentindo-se prejudicados pela nova situação em que o país se encontra após o referendo do ano passado. A Escócia, inclusive, havia rejeitado a independência em um plebiscito realizado em 2014, mas agora promete realizar uma nova consulta popular, sob o argumento de que a decisão tomada três anos atrás levava em consideração a permanência na União Europeia.
Acordo comercial
Alguns analistas entendem que a histórica diferença entre os britânicos – ou, pelo menos, os ingleses – e o restante da Europa tem relação com a maneira como seu governo tem encarado a UE ao longo dos anos. Andrew Glencross, professor do Departamento de Política e Relações Internacionais da Universidade Aston, na Inglaterra, observa que a posição habitual do Reino Unido é de ver o bloco europeu como um mero “acordo comercial”, e não como uma comunidade.
“É impossível pensar que o establishment britânico vai algum dia se ver como parte de uma história política europeia em comum. O que tornou o ‘Brexit’ uma possibilidade em primeiro lugar foi a ideia de que [a União Europeia] era apenas um acordo de negócios, o que deixava implícito que um acordo melhor poderia ser feito estando fora do clube”, diz Glencross.
O que tornou o ‘Brexit’ uma possibilidade em primeiro lugar foi a ideia de que [a União Europeia] era apenas um acordo de negócios, o que deixava implícito que um acordo melhor poderia ser feito estando fora do clube
Autor do livro Why the UK Voted for Brexit (“Por que o Reino Unido votou pelo Brexit”, em tradução livre), Glencross acredita que um desfecho nas relações com o restante da Europa ainda está muito distante. “Vai haver uma longa ressaca do ‘Brexit’ no sentido de que os detalhes para formar um novo acordo comercial entre o Reino Unido e a UE ainda será um tópico sensível por muitos anos”, sustenta o especialista.
Cerca de 75% dos jovens abaixo de 24 anos votou a favor da permanência na UE, o que também poderá influenciar uma reaproximação nos próximos anos.
E, ao menos no que diz respeito às conversas com o bloco continental, talvez os britânicos passem a se ver como um pouco menos excepcionais, tendo de entrar em negociações similares à de outros países europeus que hoje não fazem parte da UE: “os governos futuros debaterão se devem ficar com o acordo que vai se formar após o ‘Brexit’ ou voltar a negociar um novo. Assim, vai haver um interminável debate sobre as relações com a União Europeia, da mesma forma que hoje essa discussão existe, por exemplo, com a Turquia ou a Suíça”, conclui Glencross.