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Em 06 de maio de 1968, estudantes  enfrentaram a polícia de choque francesa  durante uma manifestação perto da Universidade de Sorbonne, no Boulevard Saint-Michel, no Quartier Latin, em Paris | -AFP
Em 06 de maio de 1968, estudantes enfrentaram a polícia de choque francesa durante uma manifestação perto da Universidade de Sorbonne, no Boulevard Saint-Michel, no Quartier Latin, em Paris| Foto: -AFP

Foi uma batalha campal de cinco horas. Os estudantes universitários da Universidade Paris Nanterre se dirigiram para o centro da capital para protestar. O grupo foi engrossado por professores e apoiadores, que incluíam personalidades da literatura e do cinema, mas também operários e funcionários públicos. Eram mais de 20 mil pessoas que, naquele 6 de maio de 1968, seguiam em direção à Universidade Sorbonne, que estava fechada pela polícia. 

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Mais de 500 pessoas acabaram atrás das grades. Os agentes da Compagnie Républicaines de Securité (CRS), a tropa de choque francesa, dispararam balas de borracha e usaram gás lacrimogênio e cassetetes com gosto. Os manifestantes reviraram carros e, protegidos pelas carcaças de metal, usaram picaretas para arrancar paralelepípedos das ruas. 

Com as pedras, passadas de mão a mão por dezenas de pessoas em fila indiana, ergueram barricadas. Alguns pararalelepídedos foram arremessados na direção dos policiais, assim como lixeiras em chamas e coquetéis molotov. 

A luta do dia 6 se repetiu, com violência ainda maior, no dia 10. Na sequência, a 13 de maio, as ruas foram tomadas, desta vez de forma pacífica, por cidadãos comuns, chocados com a agressividade voltada contra os estudantes. No memo dia, Sorbonne foi liberada. Os estudantes a tomaram e a apelidaram de “universidade do povo”. Uma semana depois, e mais de 10 milhões de pessoas – ou dois terços da força de trabalho de toda a França – estavam em greve. Os protestos haviam deixado a capital e se espalhado pelo interior. O país ficou paralisado. O presidente Charles De Gaulle chegou a fugir do país, por algumas horas, no dia 29. “A revolta dos estudantes se tornou uma grave geral, e depois uma crise política”, resume Julian Bourg, professor do departamento de história do Boston College. 

De repente, ao fim do mês, as manifestações acabaram. As fábricas e universidades tomadas pelos operários acabaram devolvidas aos empresários e aos reitores – logo na primeira semana de junho, a maior parte dos trabalhadores já tinha voltado ao serviço. De Gaulle conclamou eleições para o legislativo e se saiu vencedor com ampla maioria. O país voltou à normalidade, de forma tão rápida e surpreendente quanto havia sido lançado no caos semanas antes. 

Cinquenta anos depois, ainda é difícil entender por que maio de 1968 aconteceu, e por que acabou de forma tão súbita. Mas o impacto das manifestações, na época, foi inegável. Qual o legado daqueles protestos? Alguma coisa sobrou, em 2018, do espírito anárquico que tomou as ruas da capital francesa?

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Luta por cotas 

As manifestações de Paris começaram 40 dias antes, na Universidade Paris Nanterre. No dia 22 de março, 150 estudantes ocuparam o local para pedir cotas para estudantes pobres. O grupo alegava que a universidade tinha a missão de corrigir parte das distorções sociais e educacionais que, na prática, impediam os jovens de baixa renda de chegar ao ensino superior. 

Os manifestantes se retiraram, mas continuaram protestando, insistentemente, até que a universidade os expulsou, no dia 2 de maio. Foi quando começaram as manifestações. Nos primeiros dias, apenas estudantes foram às ruas. Rapidamente, outros segmentos da sociedade aderiram, em especial os lintelectuais e artistas – o Festival de Cinema de Cannes, por exemplo, foi interrompido pela metade, depois que três candidatos à Palma de Ouro retiraram seus filmes da competição. 

“A repressão do governo foi muito impopular. Com a exceção da ocupação nazista, a polícia francesa nunca havia invadido universidades francesas em todo o século 20”, lembra George Katsiaficas, professor de sociologia do Instituto de Tecnologia Wentworth. “No dia 8 de maio, uma pesquisa de opinião identificou que 80% dos parisienses eram solidários aos estudantes”. 

Não foi um acontecimento isolado. O ambiente universitário estava em polvorosa. Em janeiro, na Polônia, mais de mil estudantes tomaram suas universidades e acabaram presos. Em março, a Universidade de Roma foi ocupada por estudantes, durante 12 dias – a Universidade de Madri, na Espanha, também seria ocupada, no meio da ditadura de Francisco Franco. Na Tchecoslováquia, em agosto, tropas da União Soviética invadiram o país para barrar as reformas iniciadas em janeiro. Os soldados encontraram um movimento de resistência pacífica, com placas de ruas trocadas para confundir as tropas. No México, entre julho e outubro, centenas de jovens foram mortos pela polícia em Tlatelolco. O Brasil não ficou de fora. 

Foi um ano agitado. Em 28 de março, durante um protesto de estudantes secundaristas, o garoto Edson Luís de Lima Souto, de 17 anos, foi morto pela Polícia Militar. Mais de 50 mil pessoas velaram o corpo e transformaram o enterro numa manifestação política. Em abril, em Contagem (MG), os metalúrgicos paralisaram 1,2 mil pessoas e realizaram a primeira grande greve desde o início do regime militar, quatro anos antes. Já em 26 de junho, foi realizada no Rio a Passeata dos Cem Mil, que protestaram contra a ditadura. Em outubro, o Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), realizado em Ibiúna apesar da proibição oficial, terminou com dezenas de estudantes presos. O governo acabaria por engrossar a ditadura e a censura com o Ato Institucional 5, na sexta-feira 13 de dezembro. 

Capitalista enforcado 

Havia, portanto, um espírito de mudança no ar. A geração que havia nascido depois da Segunda Guerra queria mudar as coisas, e rápido. Os cartazes de Paris deixam tudo isso muito claro. Os textos eram aprovados em assembleias de estudantes, que tomaram a Escola de Belas Artes e a rebatizaram de Ateliê Popular, e deram forma ao espírito contestador dos jovens da época – muitos eram adeptos de diferentes variações do marxismo, o que explica slogans como “A sociedade de consumo deve sofrer uma morte violenta”. No dia 24 de maio, por exemplo, a Bolsa de Valores de Paris, um símbolo capitalista, foi incendiada. 

Outros manifestantes se diziam anarquistas, ou surrealistas, ou dadaístas. Entre as frases lidas nas ruas da cidade estavam pérolas como: “a ação não deve ser uma reação, mas uma criação”; “a arte está morta, liberemos nossa vida cotidiana”; “abaixo dos paralelepípedos está a praia”; “proibido não colar cartazes”; “o estado é cada um de nós”; “a humanidade só será feliz quando o último capitalista for enforcado com as tripas do último esquerdista”. 

Daniel Con-Bendit, um dos mais famosos líderes da época, também cunhou uma frase de grande impacto na época: “Quanto mais eu faço amor, mais tenho vontade de fazer a revolução. Quanto mais faço a revolução, mais tenho vontade de fazer amor”. Ele ficou famoso quando uma foto sua ganhou o mundo: o garoto ruivo, usando terno cinza e camisa amarela, sorridente, encarando um policial de maneira desafiadora. Expulso da França, ele se instalaria na Alemanha, onde se tornaria líder do Partido Verde e deputado do Parlamento Europeu. 

Legado expressivo 

Os jovens, portanto, em geral participaram de ambientes universitários e queriam mudanças, sem vínculos diretos com partidos e grupos políticos tradicionais. O próprio De Gaulle, apesar da vitória, só durou mais um ano no poder. Os jovens conseguiram, portanto, provocar mudanças, ainda que não no ritmo que pretendiam. Qual o legado deles, cinco décadas depois? 

Em primeiro lugar, os manifestantes de 1968 se recusaram a aceitar a liderança de partidos políticos – e essa capacidade de mobilização popular, sem o lastro de instituições tradicionais, permaneceu no imaginário ocidental por tanto tempo que ações parecidas se repetiram no mundo todo desde então. Basta lembrar dos protestos brasileiros de 2013, que começaram como manifestações contra o aumento da passagem em Porto Alegre e em São Paulo e depois tomaram conta de mais de cem cidades. 

“Depois de 1968, pelo menos outras cinco insurgências globais podem ser identificadas”, lista o professor George Katsiaficas: “as revoltas contra a União Soviética no Leste Europeu; o movimento de desarmamento dos anos 1980, que ajudou a encerrar a Guerra Fria; as manifestações na Ásia, entre 1985 e 1992, qua conseguiram derrubar oito ditaduras; o movimento antiglobalização e a Primavera Árabe”. 

Por outro lado, a falta de bandeiras claras atrapalhou. Por exemplo: em maio de 1968, na França, os sindicatos aproveitaram o momento para negociar aumentos salariais. Receberam ótimas propostas do governo, mas foram surpreendidos ao perceber que não tinham controle nenhum sobre as greves. Suas demandas eram genéricas. “O movimento rejeitava a civilização capitalista, mas nenhuma alternativa real foi apresentada nas urnas”, afirma Katsiaficas. 

“As revoltas terminaram porque Charles de Gaulle foi capaz de apelar à maioria silenciosa que estava perdendo a paciência com o caos e as inconveniências provocadas pelas greves”, diz o professor Bourg. “O sucesso dele nas eleições de junho deixou claro que as revoltas não levaram imediatamente a um novo governo. Mas aconteceram reformas reais, principalmente na educação e no ambiente de trabalho”. Quanto a De Gaulle, símbolo do que havia de mais sólido, antigo e autoritário na política, ele renunciaria em abril de 1969. Com o fim do governo de seu sucessor, Georges Pompidou, em 1974, o gaullismo tinha fim. 

Revolução cultural 

As bandeiras eram, de fato, difusas, mas os jovens alcançaram uma certa revolução nos costumes; basta lembrar que, nos anos 1960, na França, homossexualidade era crime e uma mulher casada precisava de autorização por escrito do marido para abrir uma conta bancária. Mas será que maio de 68 não transformou o caos e o relativismo moral em comportamento aceitável? 

É o que pensa, por exemplo, o ex-presidente francês Nicolas Sarkozy. Em 2007, às vésperas do aniversário de 40 anos do episódio, o então candidato à presidência declarou que maio de 1968 reforçou o individualismo e, por isso, paradoxalmente, deu margem para o crescimento do neoliberalismo. Para Sarkozy, os jovens da época acabaram com o espírito de colaboração e com qualquer senso de moralidade e de patriotismo. O candidato, que também estudou em Paris Nanterre, ainda que depois dos acontecimentos de 68, se elegeu presidente, e continuou insistindo que aqueles jovens acabaram com “a diferença entre o bem e o mal, o verdadeiro e o falso, o bonito e o feio”. 

O ex-líder estudantil Daniel Cohn-Bendit respondeu lançando um livro, em 2008, chamado Esqueça 68. Em entrevista à revista Época uma década atrás, ele afirmou: “o que se passou na França em 1968, e o que aconteceu em 1967 e 1968 em outros países, como na Alemanha e nos Estados Unidos, foi uma época formidável, um fator de modernização e liberalização de nossa sociedade”. 

Para o filósofo Slavoj Žižek, o maior efeito de maio de 1968 foi estimular uma nova mudança do capitalismo. “O sistema abandonou a estrutura centralizada, fordista, de produção, e desesenvolveu uma forma de organização baseada em rede, fundada sobre a iniciativa do empregado e a autonomia no ambiente de trabalho”. 

“Em muitos lugares do planeta, ainda hoje as diferenças entre direita e esquerda na política datam daquela época”, diz Julian Bourg. “De várias maneiras, 1968 definiu o mundo: na relação entre pais e filhos, maridos e mulheres, professores e alunos, padrões e empregados. Aquele evento ainda hoje representa a criação da uma tradição muito vívida, que se mantém nos debates de nossos tempos sobre direitos humanos, meio-ambiente, terrorismo, caos moral, igualdade de gêneros e a crítica – ou reafirmação – dos valores da religião”.

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