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Ainda na escola, Clemens August von Galen já tinha fama de ser um garoto desafiador. Tinha personalidade forte e questionava professores e superiores a respeito de afirmações que não pareciam se sustentar. Assim ele permaneceria até o fim da vida, aos 68 anos.
Acontece que ele viveu na Alemanha, entre 1878 e 1946. O que significa que precisou sustentar seus ideais e suas crenças ao longo de um período especialmente tumultuado, marcado por duas guerras mundiais e por uma ditadura de 12 anos que controlou o país que ele tanto amava. Von Galen, que desde jovem optou por seguir o caminho do sacerdócio e chegaria a se tornar cardeal, não recuou.
Mesmo nos momentos mais perigosos, se manteve um contestador do governo local. Em seus sermões e textos, denunciou o racismo, o antissemitismo e as campanhas de aniquilação de doentes mentais e pessoas com deficiências. Manteve-se um líder respeitado e tão admirado que o próprio regime nazista não conseguiu contestar abertamente. Deixou seu nome na história como um dos principais líderes católicos que, num momento de extrema tensão, não se curvaram.
Personalidade inquieta
Von Galen nasceu em 18 de março de 1878, no castelo de Dinklage, na região de Oldenburg, nos arredores de Münster, uma cidade fundada no ano de 793, localizada no noroeste da Alemanha, atualmente com cerca de 320 mil habitantes.
“Clemens August vinha de uma família ligada tanto à Igreja como à vida pública. O pai interessava-se pelas questões públicas e a mãe cultivava a união familiar. E estas realidades ofereceram a Clemens August e aos seus irmãos uma segurança e uma base para a vida, o que fez com que mais tarde ele se superasse a si mesmo e a tradição do ambiente em que tinha nascido”, relatou o cardeal José Saraiva Martins, durante a cerimônia de beatificação do cardeal, em 2005.
Além disso, apontou, “a vida da família von Galen era tradicionalmente orientada no sentido da responsabilidade pública em relação a todos, na Igreja e na sociedade. À mesa da família no castelo de Dinklage, além de um colóquio familiar e da recitação do rosário, falava-se também de política, a propósito da qual oferecia constantemente ocasião a atividade do pai, que era deputado do Reichstag em Berlim”.
Aristocrática, a família enviou o jovem para Vorarlberg, na Áustria, a fim de estudar na escola jesuíta Stella Matutina, onde se falava exclusivamente em latim. Seguiu sua formação, passando pela Universidade Católica de Freiburg, fundada por dominicanos, e pela Faculdade Teológica de Innsbruck, outra instituição jesuíta. Chegou a ser recebido em audiência privada pelo papa Leão XIII, em 1899.
Em 1904, aos 26 anos, foi ordenado sacerdote. Atuou como capelão da catedral de Münster e secretário de seu tio, o bispo auxiliar Maximiliam Gereon von Galen. Depois seguiu para Berlim, onde viveu entre 1906 e 1929 até ser nomeado pároco da igreja de São Lamberto, em Münster, cidade onde seria nomeado bispo em 1933.
A Alemanha onde Von Galen viveu e atuou era um país em convulsão, especialmente a partir da Primeira Guerra Mundial — em 1917, como pároco, chegou a visitar a linha de frente na França. Ao conflito, que se estendeu de 1914 a 1918, sucedeu-se um período de profunda crise econômica e política, durante a qual ele trabalhou para criar cozinhas comunitárias, sociedades de ajuda e campanhas de vestuário para lidar com problemas imediatos de fome e pobreza.
Defensor da monarquia, temia o impacto, para a fé católica no país, do início da República de Weimar, que posteriormente culminou na ascensão do nazismo — Adolf Hitler se tornou chanceler em janeiro de 1933 e no ano seguinte seria declarado Führer und Reichskanzler (“Líder e Chanceler do Reich”).
A partir daquele momento, tornava-se perigoso fazer manifestações públicas contrárias ao regime. Ainda assim, Von Galen não se calou. Ao contrário: usou de sua posição como líder para delatar abertamente as práticas violentas do governo de Hitler, em especial a perseguição à religião e, num segundo momento, a implementação da eutanásia em massa.
Críticas públicas
Ainda em 1933, o bispo já clamava pela resistência das escolas católicas, pressionadas pela determinação do governo em assumir para si todo o sistema educacional. Conclamava as famílias a seguir exigindo que a religião fizesse parte da formação das crianças — e a não aceitar a determinação do superintendente escolar nazista da região, que havia orientado que as instituições de ensino discutissem em sala de aula o suposto “poder desmoralizante” do povo de Israel.
Em 1936, suas falas contra a retirada dos crucifixos das escolas inspiraram demonstrações públicas contra a medida. No ano seguinte, ele participou da redação da encíclica antinazista "Mit brennender Sorge" (“Com ardente preocupação”), publicada em alemão pelo Papa Pio XI e difundida em segredo por todo o país. “Uma saudação particularmente afetuosa aos pais católicos. Os seus direitos e deveres na educação dos filhos que Deus lhes deu estão, na hora presente, no ponto central de uma luta como mais grave e fatal não pode ser imaginada”, afirmava o texto, que buscava oferecer alento para os fiéis perseguidos.
A argumentação prosseguia: “A Igreja de Cristo não pode começar a gemer e chorar só quando os altares são espoliados e mãos sacrílegas ateiam as chamas aos santuários. Quando se procura profanar o tabernáculo da alma da criança, santificada pelo batismo, com uma educação anticristã, quando é arrancada deste templo vivo de Deus a lâmpada da fé e é substituída pelo fogo fátuo de um sucedâneo de fé que nada tem de comum com a fé da cruz — então a profanação espiritual está próxima e é dever de todo o crente separar claramente a sua responsabilidade daquela da parte adversa e conservar sua consciência livre de toda colaboração pecaminosa nesta nefasta destruição”.
Além disso, ainda em 1934, o bispo começou a atacar — e até mesmo a ridicularizar — a ideologia racial do regime. Chegou a afirmar que a lealdade inquestionável ao nazismo equivalia à escravidão.
Denúncia da eutanásia
A ditadura nazista não deixou passar tantas demonstrações críticas, ainda que nunca tenha tido a coragem de ameaçar uma figura tão popular, de uma região tão importante, culturalmente inclusive. Em 1934, por exemplo, dois oficiais da SS, a polícia do estado, visitaram Clemens von Galen a fim de exercer pressão sobre o bispo.
Um deles era Jürgen Stroop. Ele comentaria: “O bispo Clemens von Galen era um grande cavalheiro, um verdadeiro aristocrata, um príncipe renascentista da Igreja. Ele nos recebeu educadamente, mas com reserva”.
Diante de um líder influente da SS, que posteriormente se tornaria general, o religioso apontou, com ironia, para o catolicismo devoto da mãe de Stroop. E disse, com todas as letras, que jamais apoiaria quaisquer doutrinas que defendessem a eutanásia ou a esterilização forçada de pessoas com deficiência.
Na medida em que os campos de concentração e as experiências médicas com seres humanos avançavam nos territórios dominados pela Alemanha durante a Segunda Guerra, começando pela Polônia em 1939, a eutanásia se tornou um dos principais focos de comentários do religioso.
Sabe-se hoje que mais de 270 mil pessoas com demência, deficiências cognitivas, doenças mentais, epilepsia, deficiências físicas e crianças com Síndrome de Down foram assassinadas nesta época. Caso vencesse o conflito global, a Alemanha nazista certamente seria capaz de multiplicar esse número. O legado de mortes ainda hoje é relembrado, com pesar, em uma série de museus espalhados pela Europa.
Foi nesse contexto que, no verão de 1941, em três domingos consecutivos entre julho e agosto, quando o plano de extermínio já era de conhecimento geral no país, ele proferiu três pregações que se tornariam históricas.
“Nelas, chamou a atenção para o fechamento forçado dos conventos e o aprisionamento dos religiosos”, rememoraria o cardeal Martins em 2005. “Pronunciou-se com vigor contra a deportação e a destruição daquelas vidas humanas das quais o regime afirmava que não eram dignas de serem vividas, isto é, os portadores de deficiências mentais. As inflamadas palavras do Bispo atingiram profundamente a máquina de morte do nacional-socialismo”.
“Não matarás”
Ele declarou, na terceira de suas pregações: “Nos últimos meses, tem sido relatado que, por instruções de Berlim, pacientes que sofrem há muito tempo de doenças aparentemente incuráveis foram retirados à força de casas e clínicas. Posteriormente, seus familiares são informados de que o paciente faleceu, que o corpo foi cremado e que as cinzas podem ser reclamadas. Não há dúvida de que estes numerosos casos de morte inesperada não são naturais, mas muitas vezes causados deliberadamente, e resultam da crença de que é lícito tirar uma vida que é indigna de ser vivida”.
Ele prosseguiu, diante dos fiéis: “Uma vez que se admita o direito de matar pessoas improdutivas... Então nenhum de nós pode ter certeza de sua vida. Ficaremos à mercê de qualquer comissão que consiga colocar um homem na lista dos improdutivos. Não haverá proteção policial, nem tribunal para vingar o assassinato e infligir punição ao assassino."
Continuou: "Quem pode confiar em qualquer médico? Ele só precisa certificar seus pacientes como improdutivos e recebe a ordem de matar. Se esta terrível doutrina for permitida e praticada, será impossível imaginar a degradação a que ela conduzirá. A suspeita e a desconfiança serão semeadas dentro da própria família. Uma maldição sobre os homens e sobre o povo alemão se quebrarmos o santo mandamento ‘Não matarás’ que nos foi dado por Deus no Monte Sinai com trovões e relâmpagos, e que Deus, nosso Criador, imprimiu na consciência humana desde o início dos tempos! Ai de nós, povo alemão, se não apenas autorizarmos esta ofensa hedionda, mas permitirmos que ela seja cometida impunemente!”
Em 1946, quando o nazismo já havia ficado para trás, Clemens von Galen refletiu sobre esse período: “O bom Deus confiou-me uma posição que me obrigava a chamar preto àquilo que era preto, e a chamar branco àquilo que era branco, como se diz na ordenação episcopal. Eu sabia que podia falar em nome de milhares de pessoas que, juntamente comigo, estavam convencidas de que somente sobre o fundamento do cristianismo o nosso povo alemão pode permanecer verdadeiramente unido e alcançar um futuro abençoado”.
Seria uma de suas últimas reflexões: o religioso seria apontado cardeal em 18 de fevereiro de 1946 e faleceria em 22 de março de 1946, com 68 anos. Foi vitimado por uma apendicite não diagnosticada a tempo. Mas ainda teve tempo de denunciar o estupro de Berlim, o episódio hediondo de 1945, quando as tropas soviéticas que tomavam conta da capital avançaram sexualmente sobre estimadas 100 mil mulheres alemãs. Quando Pio XII anunciou que Clemens von Galen seria consagrado cardeal, e por isso seria recebido pessoalmente pelo papa no Vaticano, declarou: “O bispo Von Galen logo virá a Roma. Ele é um herói”.
Exemplo de coragem
“Se há uma nota predominante na célebre figura do cardeal Clemens August von Galen, é precisamente o fato de ter praticado as virtudes do cristão e do pastor, de modo eminente e heroico, num período muito difícil para a Igreja e para a nação alemã”, declarou o cardeal José Saraiva Martins, em 2005.
“Nessa época, a Alemanha estava sob o domínio do nacional-socialismo. A Diocese de Münster pode justamente gloriar-se de ter tido como Bispo, na cátedra de São Ludgero, um pastor que se opôs intrepidamente contra a ideologia desprezadora da humanidade e contra a máquina da morte do Estado nacional-socialista, a ponto de ter merecido o apelido de Leão de Münster”.
De onde vinha a coragem de repreender publicamente os nazistas? Martins respondeu. “Deveremos considerar três grandes fatores que contribuíram para a sua forte personalidade. Eles são: a família, a fé e a política, sem, contudo, jamais perdermos de vista o fato de que a atitude do beato brotava das suas profundas virtudes cristãs. Indubitavelmente, ele só conseguiu fazer isto graças a uma espiritualidade profunda e, ao mesmo tempo, simples, claramente fundamentada sobre a eucaristia e sobre a devoção à mãe de Deus”.