Volta e meia uma discussão aparece nas redes sociais e na imprensa: qual a raça dos povos da Antiguidade? Fulano era branco de olhos azuis? Sicrano era negro? E o líder de tal povo x, que na verdade era um legítimo y?
Esses debates são tão infrutíferos quanto impossíveis de serem comprovados na prática, mas merecem ser discutidos – até porque vêm sendo utilizados cada vez mais como parte de uma campanha, consciente ou não, para tatuar o multiculturalismo dos dias de hoje por cima de uma realidade que, por mais dolorosa e cruel que seja, integrou o processo histórico e moldou o contexto atual. O racismo existiu e existe. Mas colocar atores orientais e negros no Walhalla num filme sobre Thor não fará com que o mundo seja um lugar melhor.
Embora as discussões a respeito disso sejam relativamente recentes, a questão já é bem antiga. Desde os primeiros épicos bíblicos da história do cinema nos deparamos com profetas judeus de olhos azuis e faraós anglo-saxões. Quantos Jesus loiros foram filmados por Hollywood? Charlton Heston, talvez o rosto mais estereotípico de toda uma era do cinema americano, até hoje é lembrado pelo Moisés que interpretou em Dez Mandamentos, de Cecil B. de Mille. Mesmo papel que, recentemente, foi do inglês Christian Bale no Exodus. E não nos esqueçamos do Noé do australiano Russell Crowe – o mesmo que interpreta um general romano nascido na Espanha que cai em desgraça e é obrigado a virar gladiador, no célebre épico de Ridley Scott.
Todos sabem que os povos do Oriente Médio eram – como ainda são – majoritariamente semitas. Ainda que essa designação esteja longe de descrever um tom de pele, olho ou tipo físico específicos, a própria miscigenação histórica ocorrida ao longo de milênios na região gerou um caldeirão racial. Dificilmente os personagens históricos que povoam os textos que nos chegaram daquela época tinham alguma semelhança com atores de Hollywood do século XX. Já dá para imaginar Leonardo DiCaprio interpretando Gilgamesh.
A obsessão pela negritude
Se esses questionamentos são justificáveis, e até mesmo esperados, existe o outro lado do espectro: uma militância que insiste em dizer que os antigos egípcios eram negros. Mais especificamente que Cleópatra era negra. A discussão quase sempre se baseia em autores obscuros e procura se afastar das evidências mais visíveis – como a múmia ruiva (ou loira?) de Ramsés ou as pinturas nas tumbas egípcias que mostram claramente a diferença que os egípcios faziam questão de mostrar entre tom de pele deles e o de seus vizinhos núbios, esses, sim, negros africanos.
Algumas respostas a esse tipo de controvérsia conseguem ser ainda piores do que a dúvida que as originou. Tentativas de associar os antigos egípcios aos modernos, por exemplo, desprezam (ou simplesmente ignoram) todo o fluxo populacional ocorrido na região, incluindo a colossal influência da população semita – mais especificamente, árabe – no componente étnico-racial do Egito antigo.
Um estudo recente feito pela Universidade de Tübingen e o Instituto Max Planck para a Ciência da História Humana decodificou o genoma dos antigos egípcios e descobriu que os “parentes genéticos” mais próximos daquelas populações foram os povos que habitaram o Oriente Médio e o leste do Mediterrâneo durante o Neolítico e a Idade do Bronze. A pesquisa descobriu ainda que os egípcios modernos têm muito mais afinidade genética com os povos africanos subsaarianos do que os antigos egípcios tinham.
Descrever os antigos egípcios como “brancos” ou “negros” é algo que não tem o menor cabimento. Assim como as pinturas dos templos e sepulturas mostravam diferenças raciais entre os egípcios e núbios, elas mostravam diferenças entre os egípcios e outras populações do Oriente Médio e do Mediterrâneo na época, incluindo os chamados “Povos do Mar” – que muitos suspeitam se tratar de invasores vindos de algum lugar da Europa com um tom de pele claramente mais claro – com o perdão do trocadilho – que os egípcios.
Isso sem falar que Cleópatra era descendente de Ptolomeu, general grego que assumiu o governo do Egito depois da morte de Alexandre, o Grande, e vinha de uma família que rapidamente adotou o costume egípcio de casar irmãos com irmãs e que foi a primeira dessa família a se dignar a aprender a falar o idioma do país que governava.
Padrão invertido
Se antes o padrão era utilizar o estereótipo do branco loiro anglo-saxão para interpretar personagens de qualquer povo e período histórico, hoje a tendência é o contrário. Tem-se visto cada vez mais a utilização de atores negros em filmes que retratam a Antiguidade, passando por cima de qualquer realismo em termos históricos e talvez com um leve aceno à necessidade imposta pelo multiculturalismo.
A National Geographic lançou uma série de documentários em forma de ficção chamada Barbarians Rising (lançada no Brasil como A Rebelião dos Bárbaros). No episódio dedicado a Aníbal, o célebre general cartaginês que cruzou os Alpes com um exército gigantesco que incluía elefantes de guerra e quase deixou a poderosa Roma de joelhos, o papel principal foi interpretado pelo ator inglês Nicholas Pinnock, descendente de jamaicanos. Apesar de estar na África, Cartago foi uma colônia fundada e povoada por colonos fenícios, um povo semita, com relações genéticas extremamente próximas aos árabes e judeus, algo que inclusive se reflete na sua língua.
Algo semelhante ocorreu na série Tróia: A Queda de Uma Cidade, lançada em 2018 pela Netflix. Na obra, que retrata a célebre história brilhantemente narrada por Homero em sua Ilíada, o herói grego Aquiles é interpretado pelo ator britânico David Gyasi, descendente de imigrantes de Gana. Os autores da série, no entanto, têm uma explicação na ponta da língua: “Quando se entra no mundo da mitologia, temos imediatamente uma liberdade maravilhosa. (...) Ninguém sabe se a versão de Homero, escrita 500 anos depois [da Guerra de Troia], foi fiel a algo específico, ou se foi uma coisa totalmente mitológica. (...) Foi simplesmente uma decisão de elenco. Decidimos optar por qualquer um que chegasse e tivesse em si o espírito dos personagens.” Claro que escalar um anglo-saxão com uma longa cabeleira loira como Brad Pitt para o papel, como foi feito no épico de 2004 dirigido por Wolfgang Petersen, também é algo risível.
Blackface
Durante muito tempo, papéis de personagens negros no cinema ou teatro foram interpretados por atores brancos com a cara pintada de carvão ou piche – o infame blackface. O racismo entranhado na sociedade americana não admitia que um ator negro pudesse subir num palco ou diante de uma câmera e interpretar alguém de sua própria raça. Esses dias, felizmente, já são algo distante. Mas colocar um loiro para interpretar um papel que obviamente deveria ser de um ator judeu ou árabe, parece ter sido algo perfeitamente aceitável ao longo da história do cinema.
Para o espectador médio, que não exige qualquer tipo de rigor histórico e está disposto a engolir todo tipo de imprecisões factuais, esse assunto não tem qualquer relevância. Para o amante da história, contudo, ver a chance de assistir a episódios tão importantes da trajetória humana retratados de maneira tão displicente é frustrante. Mas nestes tempos em que até um drama como 1917, que se passa nas trincheiras da Primeira Guerra, é recriminado pela “falta de diversidade” em seu elenco, talvez não haja muito a ser feito.
Por outro lado, preferimos assistir a documentários ou a filmes de ficção levemente inspirados em fatos reais? Será que o uso de um elenco totalmente fundamentado em pessoas de origens étnicas semelhantes às dos personagens que estão sendo retratados faria com que um filme melhorasse automaticamente?
O perigo de usar o cinema como meio de impor o multiculturalismo é esse: o artifício acaba servindo apenas para expiar a culpa dos artistas e militantes, enquanto na vida real tudo continua como sempre foi.