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A província da Colúmbia Britânica, no oeste do Canadá, onde fica Vancouver, descriminalizou no fim do mês passado a posse de pequenas quantidades (até 2,5g) de heroína, fentanil (outro opioide), cocaína, ecstasy e metanfetaminas para adultos, conhecidas em conjunto como “drogas pesadas”. A maconha já estava descriminalizada no país todo desde 2018. O resto do país observa esse experimento social atentamente para julgar se deve reproduzir a política. Mas talvez não seja necessário esperar, pois há exemplos anteriores de flexibilização desse tipo e seus resultados.
Em 2014, os eleitores da Califórnia votaram a favor da Proposição 47, que descriminalizou o porte de até três gramas das drogas pesadas, removendo prisão não só para o porte, mas também para o furto de produtos de valor menor que US$ 950 (R$ 4.918). Em junho de 2020, a cidade californiana de São Francisco aprovou que ONGs oferecessem locais em que pessoas pudessem injetar heroína e outras drogas pesadas com segurança. A cidade agora sofre com a proliferação de acampamentos de viciados, dejetos humanos nas calçadas, entre outros problemas.
Entre 2008 e 2019, a Califórnia perdeu cerca de 18 mil empresas, incluindo a Toyota e a HP, por um ambiente de negócios ruim comparado ao de outros estados americanos como Texas e Flórida. Nos Estados Unidos, a Califórnia tem os maiores impostos de renda, impostos sobre gasolina e sobre produtos e serviços. Ela também gasta mais que outros estados em ajuda aos sem-teto — São Francisco gasta cerca de US$ 1,1 bilhão anualmente (R$ 5,7 bilhões) —, mas isso gera resultados piores, não melhores. Os gastos incluem apartamentos para essas pessoas. Poderia parecer óbvio que dar lugar para morar resolveria o problema dos moradores de rua. Mas não resolve, porque os motivos pelos quais muitos deles estão na rua não são solucionados com um teto grátis: doenças mentais e vício em drogas.
“Assim como nenhum policial acredita que é bom para a segurança do bairro acabar com a delegacia, nenhum psiquiatra são acredita que estimular e subsidiar pessoas com esquizofrenia, depressão e transtornos de ansiedade a usar fentanil e metanfetamina é boa medicina”, comenta o ativista Michael Shellenberger em seu livro “San Fransicko” [o título faz um trocadilho em inglês com o nome da cidade e a palavra ‘sick’, doente], de 2021. “Ainda assim, é isso o que São Francisco, Seattle e Los Angeles estão fazendo, efetivamente”.
A campanha pela descriminalização de drogas, seja da maconha em particular ou todas as drogas pesadas, como as mencionadas na nova política da Colúmbia Britânica, acontece há décadas e tem cientistas que estudam o tema entre seus defensores.
Carl Hart, estrela da descriminalização
Se há uma face na campanha da descriminalização, uma boa candidata, ao menos no mundo anglófono, é a do neurocientista americano Carl Hart, professor da Universidade Columbia, que já depôs como especialista ao Congresso americano para a Comissão de Supervisão e Reforma do Governo. Com palestras públicas e livros publicados, ele promete “mudar tudo o que você sabe sobre drogas”. Em seu autobiográfico “Um Preço Muito Alto” (Zahar, 2014), ele descreve uma cena de quando palestrou para “hipsters brancos envelhecidos” de Nova York.
Carl comenta que havia apresentado uma “montanha de dados científicos” para questionar os “supostos efeitos danosos das ‘drogas pesadas’ no funcionamento do cérebro”. A proibição e a legalização “estão em polos opostos de um continuum de política de drogas”, acrescenta. “Há múltiplas opções entre elas”, como a multa, imitando o que se faz na maior parte das infrações de trânsito, sem encarceramento dos usuários. Assim, drogas podem ser ao mesmo tempo ilegais, mas descriminalizadas — tratadas na esfera cível, não na criminal.
O cientista menciona no livro a experiência de Portugal, que descriminalizou todas as drogas em 2001. Por lá, pessoas pegas com drogas podem receber multa e ser encaminhadas para a Comissão de Dissuasão da Toxicodependência (IDT), onde o caso será tratado por três profissionais: advogado, psicólogo e servidor social, que avaliarão se há ou não um problema de vício, ou se somente a multa já é um fator dissuasor suficiente. “O número de mortes causadas por drogas caiu, assim como taxas gerais de uso de drogas, especialmente entre os jovens de 15 a 24 anos”, comenta Carl Hart sobre a política portuguesa.
Em 2021, ele publicou outro livro, ainda mais polêmico: “Drogas Para Adultos” (Zahar). Dessa vez, Carl confessou que usa heroína, um opioide. “Escrevi este livro para apresentar uma imagem mais realista do usuário típico de drogas: um profissional responsável que por acaso usa drogas em sua busca por felicidade”, diz uma nota na introdução. “Além disso, queria lembrar ao público que nenhum governo benevolente deve proibir adultos autônomos de alterar a sua consciência, contanto que isso não afete os direitos dos outros”. Enquanto, no livro anterior, ele diz que a posição contrária à descriminalização se valeu de “má interpretação ampla das evidências científicas e relatos anedóticos”, neste ele diz que usa “anedotas pessoais e pesquisa científica” para “dissipar mitos sobre as drogas e ilustrar os muitos benefícios em potencial do uso responsável”.
No primeiro livro, Carl Hart cita uma série de experimentos do psicólogo canadense Bruce Alexander feitos justamente na Colúmbia Britânica, na Universidade Simon Fraser, entre as décadas de 1970 e 1980. Os experimentos são conhecidos como “Parque dos Ratos”. Em suma, os cientistas propuseram que as condições artificiais e estressantes das gaiolas em que ratos de laboratório são criados facilitavam que eles se viciassem em drogas como a morfina. Quando os ratos tinham acesso a um parque com 200 vezes a área da gaiola, em que tinham mais interações sociais, eles reduziam os sinais de vício.
O Parque dos Ratos inspirou uma palestra e um livro do jornalista Johann Hari, que por sua vez inspirou o canal de animação e divulgação científica alemão Kurzgesagt a fazer um vídeo que atraiu quase 20 milhões de visualizações. Ambos exageravam os resultados e sugeriam que os experimentos demonstravam que o vício em drogas não é primariamente químico e biológico, mas um problema social e ambiental. O canal alemão terminou deletando o vídeo, explicando em 2019 que ele apresentava as evidências de forma inapropriada. Um aluno do próprio Bruce Alexander publicou em 1996 um artigo em que comunicava que falhou em reproduzir os resultados, que continuam controversos.
Carl Hart tem seus críticos dentro da ciência. “Ele é precipitado com a ciência para avançar sua causa”, disse ao New York Times Bertha Madras, professora de psicobiologia em Harvard e diretora do Laboratório de Neurobiologia do Vício no Hospital McLean em Belmont, Massachussetts. “Não se ignora as consequências adversas — os pais, as famílias, os cônjuges que tiveram que viver e lidar com o transtorno de uso de opioides”, acrescentou Bertha. “Vítimas no trânsito, erros no ambiente de trabalho, absenteísmo, violência alimentada por drogas, abandono da escola, crimes e assassinatos relacionados às drogas. Nunca vejo Carl tratando dessas coisas”.
Portugal e Óregon
Em seu livro, Michael Shellenberger confirma os bons resultados de Portugal, como a redução no uso de drogas pelos jovens, e “o número de pessoas em tratamento aumentou 60%”. Porém, ele alerta que os proponentes da descriminalização generalizada usam alguns argumentos ruins que ele próprio usava quando era um deles. Por exemplo, eles comparam os 93 mil mortos anuais por overdose aos 95 mil que morrem pelos efeitos do álcool por ano nos EUA. Enquanto a maioria que morre pelo alcoolismo leva décadas de uso para isso acontecer, a maioria das mortes por overdose acontecem dentro de minutos ou horas.
O exemplo histórico da proibição do álcool no começo do século XX nos Estados Unidos também é muito usado. Uma alegação comum é que aumentou a violência. Shellenberger conta que não há evidência suficiente disso, enquanto há evidência que houve uma redução de um terço nas mortes por cirrose hepática e provavelmente uma redução, também, na violência doméstica. Não se trata de defender a volta da proibição do álcool, mas ele observa que “o fato de que os Estados Unidos têm cerca de quatro vezes mais abusadores de álcool que abusadores de todas as drogas ilícitas juntas é evidência adicional que a liberalização aumenta o uso”, apesar do observado em Portugal. Além disso, o país “manteve a proibição” e não legalizou as drogas pesadas, apenas descriminalizou o uso, mas continuou mandando para a cadeia os traficantes. “E Portugal não deixa soltas as pessoas viciadas em drogas pesadas com transtornos de comportamento, como fizeram as cidades progressistas da Costa Oeste”, comenta.
Há também o exemplo do estado do Óregon, também no litoral americano no Pacífico, que descriminalizou a posse de drogas pesadas em 2020, quando os eleitores votaram a favor da Medida 110. O especialista em direito Tom Hogan, em artigo de julho de 2022 no City Journal, comenta que a política foi um “fracasso trágico”. Mortes por overdose subiram 33% no Óregon em 2021, enquanto no resto do país subiram 15%. Quanto à justificativa de que a política facilitaria a busca de tratamento para viciados, a mesma usada pelas autoridades da Colúmbia Britânica, um indicativo é que menos de 1% das pessoas que poderiam receber tratamento (um total de apenas 136) de fato o procuraram. De um total de 2.576 multas aplicadas por posse de drogas, que poderiam ser revogadas caso os multados buscassem tratamento, somente 116 pessoas ligaram para o número criado para facilitar esse processo. A maioria preferiu pagar a multa.
Uma voz ignorada no Óregon foi a do médico Paul Coelho, que atua nos Hospitais e Clínicas de Saúde Salem. Ele avisou, antes da aprovação da lei, que não era uma boa ideia “retratar indivíduos com vícios ativos como atores racionais que naturalmente buscarão e aceitarão tratamento para o seu problema. Eu asseguro a vocês, como um profissional da linha de frente, que isso simplesmente não é verdade. Infelizmente, remover a ameaça de prisão (...) resultará em uma porta giratória de abuso de drogas, recusa de tratamento, crime, situação de rua e gastos contínuos e caros para hospitalizações devido a overdose, infecções e psicose induzida por drogas”.