O Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo recebeu nesta terça-feira (14) um ato de apoio ao Hamas.
O evento reuniu, de um lado, três ativistas da Palestina — e, do outro, ninguém. Os convidados eram o presidente da Fepal (Federação Árabe Palestina do Brasil), Ualid Rabah, o professor de Direito da FGV Salem Nasser e o militante de extrema-esquerda Breno Altman, apresentado como “jornalista”.
A Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas) ajudou a organizar o ato e foi representada por Pedro Pomar, militante de esquerda e integrante da diretoria da entidade.
O evento recebeu o nome de "Propaganda de Guerra e o Genocídio na Palestina". O debate foi realizado na sede do sindicato paulista, diante de uma pequena plateia, e transmitido ao vivo pela internet.
Da linguagem neutra à defesa ao terrorismo
São quase 19h30 quando José Eduardo Souza, da diretoria do sindicato, pega o microfone: “Boa noite todos e todas, todes.” Em um evento no qual os participantes vão justificar as ações de terroristas, ele usa a linguagem neutra porque não quer ofender as pessoas não-binárias.
O ato começa com a execução do hino nacional. O hino nacional da Palestina. A honra cabe a Rafat al-Najar, matemático e professor palestino que mora no Brasil. Com todos de pé, alguém se encarrega de dar o play na parte instrumental. A tela de projeção, ao fundo da mesa do evento, mostra o Windows Media Player em funcionamento. Rafat se mantém consistentemente três tons abaixo da melodia.
José Eduardo anuncia que o cantor voltará ao fim do evento para entoar uma homenagem à Faixa de Gaza.
Pedro Pomar é o primeiro da mesa a falar. Com óculos de aros grosso, barba branca e cabelos escassos, ele parece uma versão 15 anos mais velha de Breno Altman, sentado ao lado.
Pomar diz que os jornalistas precisam deixar de apoiar o “genocídio” na Palestina. “Nós somos jornalistas, nós não fazemos propaganda. E quando a gente vê algumas coisas que acontecem na mídia, elas não são jornalismo. Elas são propaganda do sionismo, propaganda do Estado de Israel em detrimento da Palestina”, reclama. Pomar pede uma “disputa político-ideológica que é necessária fazer contra a propaganda, em defesa da Palestina”.
Terrorismo é autodefesa
Agora é a vez de Ualid Rabah. Ele afirma que faltou honestidade da imprensa ao mostrar os ataques promovidos pelo Hamas em 7 de outubro. “Os veículos de comunicação estavam prontos, já desde os primeiros minutos do 7 de outubro, para, por meio de uma propaganda de guerra avassaladora travestida de notícias, demonizar todo o povo palestino”. Para ele, o ataque de Israel a Gaza é “o primeiro genocídio comunicacional da história”.
Rabah lembra que, já no dia 7, a Fepal emitiu um documento afirmando o direito palestino à “autodefesa”. A nota não lamenta a morte de crianças ou mulheres. “A resistência palestina lançou, hoje, 07 de outubro de 2023, uma operação de autodefesa”, começa o texto. Como ato de rebeldia, a entidade presidida por Rabah escreve Israel com letras minúsculas e entre aspas — porque Israel, na visão dele, não existe.
Rabah também descreve como contou com o apoio de um editor do site esquerdista Brasil 247 para se contrapor à "narrativa contra o Hamas" — ainda no dia do ataque, e antes que Israel bombardeasse Gaza. “No sábado à noite — aqui eu quero agradecer publicamente ao Zé Reinaldo, do 247 — nós precisávamos de algum veículo e pintou… nós precisávamos naquele momento fazer uma declaração pública do que nós achávamos, do que era precisávamos fazer para mobilizar as pessoas”. Ele se refere a José Reinaldo Carvalho, um dos editores do site. O Brasil 247 costuma receber anúncios estatais e, em março deste ano, fez uma entrevista exclusiva com Luiz Inácio Lula da Silva.
Sem diálogo com sionistas
Breno Altman não é um homem de nuances. Ele acredita que os sionistas estão no controle de tudo. E que os sionistas precisam ser marginalizados.
Altman enxerga uma dominação sionista dos meios de comunicação. É preciso compreender, diz, “o papel que o sionismo desempenha na estrutura de dominação de classe — e, portanto, também nos meios de comunicação”.
Os planos de Altman são ambiciosos. “O nosso trabalho é em, termos absolutos, deslegitimar a cobertura sobre a questão palestina. É dizer claramente que tudo o que vier dos meios tradicionais de comunicação é lixo. Não essa ou aquela informação. Tudo é lixo. Tudo é informação comprada. Tudo é informação desqualificada. Tudo é propaganda de guerra. Nada presta. Esse é o único discurso possível.”
Um dia antes, Altman havia publicado um artigo contra o sionismo na página 3 da Folha de S. Paulo, a mais nobre do jornal.
Altman não dá sinais de que vai parar de falar tão cedo. Ele está irritado com as críticas de entidades pró-Israel ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Um dia antes, o petista afirmou que Israel promove terrorismo de Estado em Gaza. Para Altman, a "onda de ataques" a Lula é "de uma ilegalidade evidente" porque é coordenada por entidades financiadas pelo Estado de Israel. "Tipo a Stand With Us, onde tem esse canalhinha que a preside — como ele chama? André Lajst”.
Altman pede uma ação mais agressiva contra essas organizações. “Eu espero que o governo brasileiro comece a adotar medidas práticas. Porque não é possível que a soberania do país seja violada por essa canalha. Eles têm que ser tratados como a lei manda e como eles fazem por merecer”.
Para quem tem alguma dúvida, Altman é ainda mais didático: “Não existe comunicação não-violenta contra o sionismo. O sionismo tem que ser combatido a ferro e fogo, como se faz com o fascismo. Ele pertence à mesma família”. Altman diz que os sionistas devem ser “destratados, marginalizados, isolados”.
Ele diz que a imprensa é “estruturalmente de direita”. E usa um vocabulário marxista, recheado de palavras como “patronato” e “burguesia”. Apesar das críticas aos meios de comunicação, Altman é fundador do Opera Mundi, hospedado pelo UOL — que, por sua vez, pertence ao grupo Folha. O Opera Mundi veicula anúncios da Caixa Econômica Federal.
O mistério do dia 7
O professor Salem Nasser é último convidado a falar.
Ele não gosta da imprensa. Muçulmano xiita, Nasser traz na memória o que considera uma cobertura jornalística injusta sobre a Revolução Iraniana em 1979 (esta é a a revolução que implantou uma teocracia financiadora e grupos terroristas como o Hezbollah).
Nasser também não gosta que a imprensa tire a “legitimidade” do Hamas. “Quando você resolve, como Folha de S. Paulo, chamar o Hamas de grupo terrorista, não precisa mais ler nada do que a Folha vai relatar, do que a Folha vai trazer como notícia. Ela disse quem tem razão, porque ela matou qualquer legitimidade do grupo”.
O professor tem muitas certezas. Mas, apesar do doutorado na USP e da passagem pela Sorbonne, ele ainda não consegue entender o que aconteceu em 7 de outubro. Os vídeos gravados pelos membros do Hamas, acompanhados das declarações públicas do próprio grupo terrorista, não parecem ser suficientes. “Eu não sei o que aconteceu no dia 7, então não espere de mim que eu faça uma condenação em cima de fatos que eu não conheço”, diz o professor da FGV.
Nasser volta a falar do Irã. Ele diz que a revolta popular recente contra o regime teocrático “em grande parte é ficção”. “Por que será que os direitos das mulheres no Irã são tão mais relevantes do que os direitos das mulheres em qualquer outro lugar no mundo?”, indaga ele, que não parece simpático aos direitos das mulheres nem no Irã e nem fora dele.
Das falas dos participantes do debate, emerge uma realidade contraditória. Por um lado, os sionistas são tão poderosos que controlam a imprensa, a indústria do entretenimento e boa parte do mercado financeiro. Esses mesmos sionistas estariam promovendo o genocídio do povo palestino desde 1947.
Mas, se este for o caso, Israel é responsável pelo o genocídio mais mal-sucedido da história: os ultra-poderosos sionistas estão há 76 anos buscando o extermínio dos palestinos, mas a população palestina cresce ano a ano.
Hora das perguntas
É incrível como tempo voa quando se fala dos sionistas. Uma hora e meia se passou e só agora a plateia vai poder fazer falar. Um sindicalista pede que as perguntas não ultrapassem os dois minutos. Quase ninguém respeita.
Um dos primeiros a falar é Fábio, “historiador e morador de ocupação e militante da luta popular aqui do centro". Fábio, um homem de meia-idade, usa bermuda e uma camisa regata que revela uma tatuagem de Che Guevara no braço direito (o esquerdo está engessado).
Fábio pergunta o que é possível fazer para que a esquerda “transforme a luta em defesa e solidariedade à resistência do povo palestino numa grande luta internacional no nosso país”.
Depois dele, um jornalista da TV Brasil que se queixa de como alguns de seus colegas duvidam da pureza de intenções dos palestinos.
Em seguida, Vilma Amaro, da diretoria do Sindicato dos Jornalistas, confessa que não gosta de ver o Hamas sendo tratado como terrorista pelos jornais. Ela quer “desconstruir essa questão do Hamas ser um grupo terrorista.” Para Vilma, o problema é “a propriedade dos meios de comunicação”, concentrada nas mãos deles — sim, os sionistas.
A tradutora do Hamas
Agora quem fala é Amyra El Khalili. Ela faz parte de um grupo virtual de “jornalistas” de Gaza e do Kuwait. Amyra lembra que, semanas antes do ataque de 7 de outubro, a rede da qual ela faz parte publicou uma nota do Hamas em que o grupo ameaça atacar Israel. “Uma nota extremamente bem redigida, elegante; a nível de (sic) chefe de governo, como é a posição do Hamas em Gaza”, Amyra descreve. “Eu traduzi isso do árabe para o português, publiquei, distribuí para tudo que é canto. Ninguém se interessou”, ela diz.
Amyra aparenta estar orgulhosa de seu trabalho e, ao mesmo tempo, ressentida que ninguém tenha lhe dado atenção como porta-voz do Hamas em língua portuguesa.
Ela também lembra ter escrito um artigo sobre o tema para o Pravda, o veículo de propaganda mantido pelo governo da Rússia. O artigo começa assim: “O Hamas é resistência palestina, um movimento de libertação nacional!”
Em vez de perguntar, Amyra parece responder às dúvidas do professor Salem. “Qual é a surpresa de 7 de outubro?”, ela pergunta. “Toda a operação militar de 7 de outubro (foi) devidamente registrada: por que fizeram, como fizeram, de que jeito fizeram, como foi articulada, quais são os grupos que estão envolvidos nisso.”
Amyra é aplaudida.
Quem fala é Alexandre Linares, da diretoria do sindicato.
Ele explica que os jornalistas brasileiros seguem “um manual de redação do sionismo”. "Toda redação tem esse manual, porque ele vem não só do Ministério das Relações Exteriores de Israel, não só da inteligência de Israel, mas tem a chancela direta do Departamento de Estado dos Estados Unidos da América, que essencialmente controla os nossos meios de comunicação", afirma Linares.
Em sua página no Linkedin, Linares informa ser formado em Ciências Sociais e nunca ter trabalhado em um jornal. Ele ganha a vida como assessor de imprensa do Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo.
Sem “dois ladismos”
O microfone volta para os debatedores. O professor Nasser retoma subitamente a sua certeza sobre o que aconteceu em 7 de outubro. Foi a maior derrota militar da história israelense. “A derrota de Israel, ela não só está declarada. Ela está esperando o cessar fogo, e aí o mundo vai saber que Israel foi derrotado no dia 7.” Nasser prossegue: "Porque aí é que vai começar: as concessões a Gaza, o novo arranjo, as trocas de prisioneiros. Aí é que vai começar a derrota israelense a ficar clara".
Rabah, por sua vez, afirma que o sionismo “é equivalente ao nazismo projetado 40 anos antes do nazismo”. Ele diz que é contra o “dois ladismos” e que se recusa a participar de eventos que tentem mostrar a perspectiva dos israelenses. “Quando os sionistas sentarem com os nazistas para debater o holocausto eurojudeu — e eu escrevo holocausto com caixa baixa e digo que ele é eurojudeu porque ele aconteceu na Europa, europeus matendo judeus — aí nós sentamos com os sionistas”, sugere.
Breno Altman lamenta que, mesmo na esquerda, há quem defenda a ideia de que existem “dois demônios” no conflito entre o Hamas e o Estado israelense. Para ele, só existe um demônio: Israel.
Altman está convencido de que o 7 de outubro é simplesmente “a disputa entre um estado colonial e um povo colonizado”. Ele compara o Hamas aos homens que, ao lado de George Washington, lutaram pela independência dos Estados Unidos. Os atentados de 7 de outubro foram, na visão de Altman, “um processo pelo qual um povo colonizado, sem portas abertas para resolver a sua situação de opressão por métodos pacíficos e diplomáticos, é obrigado a resolver pelo método da insurgência".
Quase três horas depois do início do debate, Pedro Pomar anuncia que o evento está encerrado. Ele recomenda que os participantes passem os olhos por uma exposição de charges na sede do sindicato, e lembra que há “guloseimas” e café à disposição.
Nenhum sinal de que o cantor Rafat al-Najar será chamado de volta ao palco para entoar sua canção em homenagem a Gaza.
As pessoas começam a deixar suas cadeiras no auditório acanhado, com teto baixo e o piso de taco. Nada na decoração se destaca, a não ser um grande quadro com uma foto de Vladimir Herzog, um judeu cuja família deixou a então Iugoslávia para escapar da perseguição nazista.