No dia 9 de maio, sem alarde, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, tirou da pauta a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5581, que pede a liberação do aborto em casos de mulheres grávidas diagnosticadas com o Zika Vírus.
Prevista para ser julgada no próximo dia 23 desde dezembro do ano passado, a ação iria a plenário um dia após a retomada do julgamento sobre a equiparação da homofobia ao racismo, que teve sua discussão interrompida em fevereiro, depois de quatro sessões plenárias.
A Frente Parlamentar Evangélica (FPE) tem mantido diálogo constante com Toffoli. Em fevereiro, ela perdeu a luta para tirar de pauta a ação da homofobia. Mas, agora, com a mudança na pauta, conseguiu jogar para frente a ADI 5581. O presidente do STF tinha uma reunião com a FPE no último dia 8. A reunião foi remarcada para a próxima semana, mas o coordenador da bancada, deputado Silas Câmara (PRB-AM), confirmou que os parlamentares têm tratado do tema com Toffoli.
Enquanto ganha tempo, o Congresso trabalha com afinco para dar uma resposta aos casos vistos como “difíceis” de aborto, notadamente os envolvendo crianças com deficiência. Em 2012, o próprio STF criou uma nova exceção às punições contra o aborto, no caso de fetos com anencefalia, ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54.
A estratégia da Frente Parlamentar da Vida e da Família, na Câmara, tem sido investir em pautas positivas e de apoio às mulheres em situação de vulnerabilidade – desmentindo a tradicional acusação de que aqueles que se opõem ao aborto não se importam com a vida das mulheres. Vários projetos tentam encontrar apoio na casa, que também está patrocinando uma série de eventos pró-vida.
Já no Senado, parlamentares defensores da vida querem fechar de vez o cerco contra o aborto. Além de discutir uma PEC explicitando que a proteção à vida existe desde a concepção, os senadores têm pronto para votação um Projeto de Lei (PL) aumentando a pena de quem provoca o aborto, mas não da mulher que se submete a ele. No início deste mês, um novo projeto foi protocolado para acabar com as dúvidas: é crime aborto em caso de má formação do feto.
Como a Câmara dos Deputados está trabalhando
Em março, a Frente Parlamentar da Vida e da Família (FPVF) foi relançada tendo como objetivo resgatar projetos antigos, como o Estatuto do Nascituro, mas olhando com urgência para a ADI 5581. No longo prazo, o principal alvo no STF é a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, que pode descriminalizar o aborto em todos os casos até a 12ª semana de gestação.
Nos bastidores e na organização de eventos, a coordenação é grande com o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), cujos quadros são pró-vida, embora o governo federal ainda não tenha encampado os temas com clareza, e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), já tenha dito mais de uma vez que não pretende dar destaque a temas morais. Outro aliado político de peso da FPVP é a Frente Parlamentar Evangélica (FPE), que se opõe ao ativismo do STF em temas de costumes e tem sido a principal voz política, por exemplo, contra a equiparação da homofobia ao racismo.
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A ação que corre no STF desde 2016 argumenta a resposta do estado brasileiro à crise provocada pelo Zika Vírus é insuficiente e pede uma série de mudanças legais: a não restrição a três anos do pagamento do Benefício de Prestação Continuada (BPC) para crianças com microcefalia; a extensão desse pagamento a crianças com outros tipos de sequelas neurológicas decorrentes da infecção pelo vírus; e o estabelecimento de centros de atendimento para estimulação neurológica e diretrizes mais claras no SUS, entre outros. Todos os pedidos são incorporados pelo PL 1.787/2019, que atualmente tramita apensado a um projeto de 2015, de autoria da então deputada Mara Gabrilli (PSDB-SP).
No final de março, com o relançamento da FPVP, a primeira ação dos deputados foi protocolar o PL 1.787/2019, que tem como objetivo “ampliar os direitos de mães, pais e crianças vítimas de microcefalia e sequelas neurológicas decorrentes de doenças transmitidas pelo Aedes aegypti”. A ideia é atender a todos os pedidos da ADI 5581, exceto a liberação do aborto.
O problema é que a ação no STF, embora reconheça que “entre as questões científicas ainda sem resposta está também a taxa de risco entre mulheres grávidas infectadas pelo vírus zika: não se sabe ainda em quantos e quais casos de mulheres infectadas ocorrerá a transmissão vertical e o desenvolvimento da síndrome congênita do zika”, pede a liberação do aborto nesses casos, decorrência do “sofrimento psicológico” causado por essa incerteza. A bancada da vida vê três problemas com esse pedido.
Primeiro, o aborto em si, que não deveria ser permitido para fetos com problemas neurológicos, como não deveria ter sido permitido para os anencefálicos em 2012. Segundo, que nem todas as mulheres infectadas com o vírus da Zika vão ter filhos com sequelas neurológicas, nem o diagnóstico é tão simples. Segundo boletim epidemiológico de março deste ano, divulgado pelo Ministério da Saúde, entre 2015 e 2018, dos mais de 17 mil casos suspeitos notificados, 12,5% foram descartados e 15,3% continuavam em investigação. Dos casos com investigação concluída, 46% foram descartados e só 19,3% foram confirmados em relação à infecção na gravidez. Por fim, permitir o aborto com base no sofrimento psicológico da gestante pode abrir as portas para sua prática indiscriminada.
Na próxima segunda-feira (20), seguindo a trilha do Senado, que já fez um evento para discutir o tema, as Comissões de Seguridade Social e da Família (CSSF), de Defesa dos Direitos Humanos e das Pessoas com Deficiência (CDDHPD) e dos Direitos Humanos e Minorias (CDHM), com apoio do MMFDH e da FPVF, hospedarão um seminário sobre os cuidados às famílias e crianças com problemas neurológicos decorrentes de infecção com Zika Vírus.
Além do tema, está entre as prioridades da PFVP conseguir votar o relatório do deputado Diego Garcia (Pode-PR), presidente da frente, ao PL 478/2007, o Estatuto do Nascituro, que garante uma série de direitos aos seres humanos não nascidos, inclusive ao atendimento prioritário no SUS. O projeto também garante o pagamento de pensão pelo Estado, ou pelo pai identificado, para mulheres grávidas em decorrência de violência sexual que escolham não abortar. Ponto mais polêmico do projeto, a garantia não conta com o apoio da ministra Damares Alves.
No início do ano, Garcia apresentou o PL 147/2019, considerado o passo seguinte ao Estatuto do Nascituro. A ideia é fortalecer a assistência social na primeira infância (até os cinco anos de idade), integrando e orientando a rede de saúde pública. O projeto prevê também a possibilidade de os centros pró-vida, que acolhem mulheres grávidas em situação de vulnerabilidade, serem integrados à rede de saúde como auxiliares. O texto prevê ainda a oferta de alojamento temporário para mulheres grávidas em situação de dificuldade.
No final de abril, Garcia protocolou ainda o PL 2.513/2019, que tem como objetivo “regulamentar a licença-paternidade e fortalecer a proteção às famílias em caso de nascimento ou adoção de criança com deficiência”. O projeto dobra o período de licença-maternidade e licença-paternidade – regulamentada pelo projeto em 10 dias –, em caso e adoção ou nascimento de filhos com deficiência, e dobra o valor do salário-maternidade nesses casos.
Tanto o PL 2.513/2019 quanto o 1.787/2019 aguardam designação de relatores.
Como o Senado está trabalhando
Enquanto a FPVF para tentar criar uma rede de proteção às mulheres grávidas, crianças e famílias em situação de vulnerabilidade, o Senado não está parado, aproveitando que a Câmara está dispendendo todas as energias nas pautas econômicas e nas “caneladas” com o governo.
O projeto mais em evidência na casa é a PEC 29/2015, chamada PEC da Vida, que explicita na Constituição o direito à vida desde a concepção. A tramitação da PEC na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) é fruto de um acordo, puxado pelo senador Eduardo Girão (Pode-PE), líder do bloco PSDB/PSL/Pode, para garantir que as atuais hipóteses de exceção à punição do aborto não fossem revogadas. O movimento pró-vida, porém, está dividido sobre a inclusão.
Opinião da Gazeta: PEC da Vida e a oportunidade de resgatar o sentido da lei
No parecer que apresentou à CCJ, a senadora Selma Arruda incluiu as exceções que constam no Código Penal – estupro e risco de vida para a mãe –, mas não os fetos anencefálicos, exceção fruto de decisão do STF em 2012. O senador Alessandro Vieira (CD-SE) apresentou emenda para incluir essa hipótese. Com a falta de consenso, o projeto foi retirado de pauta por ora.
Também é de Selma Arruda, na mesma CCJ, o relatório favorável ao PL 556/2019, de autoria de Girão, que endurece a pena de quem provoca abortos, mas não das mulheres que se submetem ao procedimento. O crime de provocar aborto sem o consentimento da gestante passaria a ser punido com pena de reclusão de seis a 12 anos. Atualmente, a pena é de três a 10 anos. Já provocar aborto com o consentimento da gestante passaria a ser passível de punição entre cinco e 10 anos. Hoje, a punição fica entre um e quatro anos.
O PL também modifica o artigo do Código Penal que prevê o aumento de um terço da pena se houver lesão corporal à mulher em decorrência do aborto e a duplica se a gestante morrer. De acordo com o novo texto, a pena poderia ser aumentada de um sexto a um terço se o provocador do aborto for o próprio pai da criança.
Mais recentemente, no início do mês, o senador Flávio Arns (Rede-PR) apresentou um PL para explicitar que é crime o aborto provocado que seja motivado pela má formação fetal. O projeto inclui o artigo 128-A no Código Penal: “punir-se-á o aborto provocado que seja motivado pela má formação fetal do nascituro”.
Segundo o autor, a ideia é reverter a tendência inaugurada pelo STF em 2012 e buscada por ações como a ADI 5581. “[E]coa a falsa informação de que cabe ao judiciário legislar acerca do aborto motivado pela má formação fetal, como se quanto a isto o Legislativo já não se houvesse pronunciado tacitamente e em definitivo”, escreve.
“É inaceitável a possibilidade de que a eugenia, prática de estados totalitários do século passado, avance em supostas brechas, neste caso inexistentes, da Lei brasileira. No caso das gestantes contaminadas pelo vírus Zica, por exemplo, apenas um percentual delas poderá vir a dar à luz crianças com microcefalia e, ainda assim, em gradações variadas, o que em hipótese alguma pode excluir a essas crianças do direito à vida, seja qual for a severidade das limitações que venham a apresentar”, argumenta Arns.
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