Na ditadura militar, textos em jornais eram famosamente substituídos por receitas culinárias. Na época, praticava-se a censura prévia, com os conteúdos sendo submetidos a controle estatal antes da publicação; os trechos rejeitados eram submetidos ao expediente por opção das publicações, como forma de protesto silencioso.
No Brasil de 2023, o ministro Alexandre de Moraes repudia semelhante expediente: suas decisões frequentemente discorrem sobre o quanto é inaceitável a censura prévia. Todavia, esta aparente deferência à liberdade de expressão é vazia, porque não representa qualquer renúncia de atuação por parte do ministro. Afinal, em qualquer caso, o Judiciário jamais faria mesmo censura prévia, uma vez que este tipo de atividade foge às suas atribuições. Trata-se de tarefa própria do Executivo.
Em vez disto, a condenação que o ministro faz à censura prévia serve apenas de antessala retórica para, imediatamente em seguida, contrastá-la com o controle posterior, que ele, assim, legitima como compatível com uma democracia. Numa feliz coincidência, o controle posterior tem por característica ser uma ferramenta posta, em democracias, nas mãos de juízes, como o próprio ministro Alexandre de Moraes.
É verdade que, em si mesma, a existência de controle judicial posterior é compatível com as democracias, como afirma o ministro. Mas seria um salto lógico ilícito a partir daí inferir que qualquer controle posterior seja compatível com a democracia.
Isto foi demonstrado em decisão desta quarta-feira (10), proferida pelo ministro Alexandre de Moraes, decisão esta que chocou até os mais contumazes apologistas dos Inquéritos do Fim do Mundo do STF.
Ao que se depreende da decisão, o ministro tomou conhecimento de um fato através de jornal — que o Telegram tinha mandado mensagem a seus usuários falando contra o PL 2630/20, ou PL das Fake News, e pedindo que os usuários fizessem campanha junto a seus parlamentares a rejeitar a proposta — e, simplesmente, proferiu decisão ordenando que o aplicativo retirasse a mensagem do ar no exíguo prazo de uma hora.
Em caso de descumprimento, multa de R$ 500 mil por hora e suspensão temporária das atividades do Telegram em território nacional. Para o caso de os usuários brasileiros, nesta hipótese, decidirem usar VPN (Virtual Private Network) para contornar a proibição, acessando o aplicativo como se estivessem no estrangeiro, o ministro estipulou multa de R$ 100 mil reais por hora para os cidadãos que assim fizessem. Independentemente do cumprimento das suas ordens, determinou que os representantes do Telegram no Brasil fossem ouvidos pela Polícia Federal.
Sem defesa
Não satisfeito com estas medidas, o ministro, que agiu sem ser provocado (o que é proibido por lei para um juiz criminal) e que não tinha qualquer autoridade legal em particular, entre todos os juízes brasileiros, para atuar no caso, apesar de tudo isto, julgou oportuno redigir de próprio punho uma mensagem a ser obrigatoriamente enviada pelo Telegram a todos os seus usuários, em substituição à outra, sob pena destas drásticas punições. A mensagem vale ser reproduzida na íntegra, com os trechos em caixa alta conforme o original:
“Por determinação do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, a empresa Telegram comunica: A mensagem anterior do Telegram caracterizou FLAGRANTE e ILÍCITA DESINFORMAÇÃO atentatória ao Congresso Nacional, ao Poder Judiciário, ao Estado de Direito e à Democracia Brasileira, pois, fraudulentamente, distorceu a discussão e os debates sobre a regulação dos provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada (PL 2630), na tentativa de induzir e instigar os usuários à coagir os parlamentares.”
Assim, se antes o Brasil vivia a situação em que textos eram desafiadoramente substituídos por receitas de bolo antes da publicação, no novo cenário (a se repetir o precedente criado), aparentemente, os textos “atentatórios” aos ocupantes dos poderes (para usar a palavra do ministro) serão brevemente publicados, mas, em questão de horas, deverão ser substituídos por retratações humilhantes, redigidas em linguagem hiperbólica. Nestas retratações, os envolvidos, sob pena de multas milionárias, banimento do país ou, quiçá (se forem pessoas naturais), prisão por crime de desobediência, serão coagidos pelo Estado a confessarem crimes inexistentes em público. Isto, frise-se, antes de sequer terem tido qualquer chance de se defender da acusação — embora o art. 5º, LVII da Constituição garanta que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Se o Inquérito das Fake News antes se notabilizava por (ilegalmente) abrir mão da figura da acusação — papel que foi concentrado na figura do julgador, aparentemente sem preocupação de que isso pudesse comprometer a sua isenção para julgar —, agora, possivelmente pela primeira vez, elimina também a defesa.
"Reparação"
Não se trata de exagero, como se comprova por transcrição de trecho da decisão do ministro Alexandre de Moraes: “ABSOLUTAMENTE NECESSÁRIA A IMEDIATA CESSAÇÃO DA GRAVÍSSIMA LESÃO AO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E SUA REPARAÇÃO” (caixa alta conforme o original).
Embora possa passar despercebido a ouvidos leigos, a um jurista, chama muito a atenção a presença da palavra “reparação”. Trata-se, por natureza, de provimento final, o objetivo último a ser alcançado por um processo: somente após a acusação, a defesa e todos os procedimentos próprios, o Estado está em condição de decidir sobre culpa ou inocência e impõe as sanções previstas em lei. As quais podem incluir, justamente, a reparação da vítima pelos danos. Esta reparação, em crimes contra a honra (que não incluem o inexistente crime de “desinformação”), pode inclusive consistir na publicação de uma retratação. Mas nunca antes de o acusado ter tido a chance de se defender.
Como se sabe, são muito numerosos os casos em que o juiz profere decisões contra o acusado logo no início do processo penal; todavia, estas têm natureza de medida cautelar, ou seja, seu objetivo é resguardar o desenrolar do processo em si contra condutas do acusado (por exemplo, a ocultação de provas ou a intimidação de testemunhas), ou até mesmo impedir que o acusado reitere a prática do crime. Em outras palavras, a função é a prevenção, não a “reparação” — palavra que inaugura um novo capítulo nos abusos do Inquérito das Fake News.
Mas pelo menos não temos censura prévia.
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