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Twitter: hospício virtual
Twitter: hospício virtual| Foto: Pixabay

O Twitter é um mundo à parte. É o único espaço cheio de gente em que você pode botar a cabeça rápido para espiar e descobrir que aconteceu alguma coisa importantíssima sobre a qual já há um consenso formado. O genocídio de manauaras é a bola da vez, e o seu perpetrador é o de sempre: Bolsonaro.

Um apresentador de TV, em geral moderado, tuíta que os manauaras estão executados por milicianos que lhes botam sacos na cabeça. Um professor de federal antipetista tuíta, em latim, que devemos orar para Bolsonaro, o filho do diabo nascido no Brasil, ser punido. Um jornalista antipetista experiente tuíta que, por causa do presidente e do ministro da saúde, o Brasil é a pior vergonha do universo. (Nesta, cliquei no botão “deixar de seguir”, porque sou uma brasileira orgulhosa e fico ofendida com esse tipo de coisa. Xingue o governo, mas não xingue meu país.)

O leitor poderia dizer que o Twitter é um hospício, mas eu comecei logo apontando perfis de telejornalista, acadêmico e jornalista. É do Twitter pra imprensa analógica, e da imprensa analógica pro leitor passivo, que não vai buscar informação por conta própria. Esse leitor entra em pânico e briga com todo mundo que discordar dele, de maneira que o resultado é a prisão numa câmara de eco.

Enquanto isso, há os leitores ativos, que vão atrás de informação através da internet, e um tipo despolitizado bastante comum, que prefere conversar com os amigos sobre política em vez de ficar caçando notícias. Estes dois grupos interagem bastante, e o resultado disso são as redes de WhatsApp. O Twitter deglutiu a imprensa analógica, e agora esta também é câmara de eco.

Nós, brasileiros, estamos nos ajeitando direitinho aos novos tempos, mas o suicídio da imprensa analógica trouxe um dano que ainda não reparamos: perdeu-se o ponto de encontro comum a todos os brasileiros, a ferramenta de união nacional em torno de uma questão essencial.

A demonologia antibolsonarista 

Escrevo no dia 15. Quando botei a cabecinha dentro do Twitter ontem (dia 14) para dar uma espiada, vi um monte de gente desesperada porque Bolsonaro cometeu genocídio em Manaus. Com algumas espiadelas mais, entendi que o nexo causal evidente para todas aquelas pessoas era o seguinte: em Manaus (e em Búzios também) houve protestos contra o fechamento do comércio; os protestos foram todos feitos por indivíduos sem livre arbítrio, todos teleguiados por Bolsonaro; por isso, todo mundo teve covid em Manaus (e em Búzios?); e por isso o oxigênio acabou e está todo mundo morrendo. Bolsonaro causou os protestos, os protestos causaram falta de oxigênio, e daí morte.

Esse raciocínio é fundamentado não em empiria, senão na demonologia antibolsonarista. Eu ia dizer teologia, porque é algo que demanda fé e está imune a provar-se falso, mas fiquei com demonologia porque, afinal de contas, Bolsonaro é o filho do demônio, é a besta do Apocalipse. (E pensar que há dez anos a encarnação laica do diabo, no imaginário ocidental, era Hitler…)

Para explicar as coisas conforme à demonologia antibolsonarista, pegue uma coisa ruim qualquer (preferencialmente com números), subentenda que ela é uma das piores coisas que já aconteceram na história da humanidade, e diga que a causa é Bolsonaro. Para isso, pressuponha que há bolsonaristas por toda parte, disfarçados ou não, e que bolsonaristas são entes teleguiados por Bolsonaro. Se Bolsonaro mandasse todo mundo ficar em casa sem trabalhar, pedindo comida pelo iFood, os bolsonaristas obedeceriam. Se Bolsonaro dissesse que Laurinha é trans, vai tomar bloqueadores hormonais e agora se chama Epaminondas, todos os bolsonaristas deixariam de ser transfóbicos e virariam ativistas trans.

Como todo mundo que não concorde com você sem hesitar nem fazer perguntas é um bolsonarista, praticamente toda ação de gente comum na sociedade pode ser imputada a Bolsonaro. O preço do mamão orgânico subiu? O mamão orgânico é o alimento básico das mulheres negras lésbicas quilombolas, que compõem 98,2% da população brasileira, que agora vão morrer de inanição causada por esse criminoso genocida. Vai todo mundo morrer! Chamem a ONU! Se Bolsonaro já tivesse iniciado a campanha de vacinação e se os bolsonaristas não tivessem ido às ruas, a pandemia estaria sob controle e o preço do mamão orgânico não teria subido.

Pronto: agora você já pode ser contratado como analista político e ir para a televisão.

E o Covidão? 

Um efeito colateral da demonologia antibolsonarista é a ideia de que vivemos num regime como o do Estado Novo, onde os Estados têm interventores indicados pelo Presidente, submissos a ele, em vez de governadores eleitos.

Durante os governos Lula, boa parte da imprensa analógica (só havia imprensa analógica, e não existia WhatsApp) batia incansavelmente na tecla da corrupção. O Mensalão não saía de pauta, e depois o Petrolão, e por fim a Lava Jato. Agora, tivemos o Covidão, uma operação feita para pegar os governantes estaduais e municipais que desviaram os recursos liberados pelo governo federal para o combate à pandemia. Um desses governos era o do Amazonas.

Em todos os estados da federação há gente nas ruas, gente fazendo festa, gente trabalhando. Mas só em Manaus falta oxigênio. Será tão implausível assim dizer que o problema é da gestão de recurso pelos governos do Amazonas e de Manaus?

De resto, uma coisa que incomoda na demonologia antibolsonarista – e na mania da covid de modo geral – é que o SUS sempre, sempre e sempre esteve ligado a corrupção, e essa corrupção sempre causou mortes. Tenho certeza de que, se não houvesse covid, ou se o presidente fosse outro, a falta de oxigênio em hospitais de Manaus não causaria comoção no Brasil. Neste momento faltam coisas em hospitais Brasil afora, gente morre em corredor de hospital Brasil afora, mas isso só é digno de atenção se servir para reforçar a fé dos adeptos da demonologia antibolsonarista.

Críticas úteis 

No manicômio de ontem, apareceu até Maduro dizendo que ia dar oxigênio para Manaus. Quem quiser que acredite que a Venezuela tem oxigênio de sobra, ou que Maduro tem mais amor à sua população do que à ideia de fazer propaganda no estrangeiro. Ideia estapafúrdia, evidentemente, pois só as Sabrinas (não as da banca de revista, a da UnB) vão dar trela a uma lorota dessa.

Por outro lado, hoje já apareceu notícia de que o governador do Amazonas teria passado a bola da logística de cilindros para o governo federal, e que a empresa fornecedora de oxigênio teria alertado o governo federal. Há ainda notícia de que o governo do Amazonas teria pedido ajuda ao governo do Rio de Janeiro (seu colega de Covidão) através de e-mails que nunca foram lidos, porque foram enviados para o endereço errado. A BandNews tuitou hoje que o governo federal suspendeu um subsídio na importação de cilindros de oxigênio, concedido no início da pandemia.

Em cima disso, temos como construir críticas úteis. Será que o governo federal tem a culpa imputada pelo governo do Amazonas e pela empresa de oxigênio? Será que foi oportuno esse fim de subsídio? Pode-se cobrar uma logística melhor, uma intervenção federal na saúde de Manaus, uma prorrogação a um subsídio. Estas são críticas úteis, e esse tipo de crítica é necessário em qualquer nível de governo. Mas ficar chorando no Twitter, clamando pelo suicídio de Bolsonaro, é ridículo. Desde quando é bonito ser chorão?

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