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Um colonizador belga exibe congolês com a mão amputada: o povo local era tratado com extrema crueldade | Wikimedia Commons
Um colonizador belga exibe congolês com a mão amputada: o povo local era tratado com extrema crueldade| Foto:

Quando as potências europeias se reuniram para dividir a África entre si, no final de 1884, um pedaço no mapa não ficou nas mãos de qualquer país. No centro do continente, a região do Congo não seria deixada nem aos africanos (como ocorreu com Etiópia e Libéria, únicas regiões que permaneceram independentes) nem aos Estados colonialistas.

Em vez disso, a gigantesca área foi reconhecida pela Conferência de Berlim como uma propriedade privada: pertencia única e exclusivamente ao rei Leopoldo II, da Bélgica, e assim continuaria até o início do século 20.

Nos anos seguintes, o Estado Livre do Congo acabaria se tornando conhecido não por essa condição peculiar, mas por outra razão muito mais sombria — a extrema brutalidade com que a população local era tratada pelos asseclas de Leopoldo, naquilo que alguns historiadores chamam de “Holocausto esquecido” da África.

O Coração das Trevas

O Congo era, então, uma região envolta por mistérios e inquietações. Coberto por uma densa floresta tropical, havia sido pouco mapeado pelos europeus. No imaginário das potências, tratava-se do “coração das trevas”, denominação eternizada no título da obra de Joseph Conrad ali ambientada.

As “trevas”, no caso, eram um misto do atraso que os europeus atribuíam às populações africanas com o seu próprio desconhecimento sobre a geografia do interior do continente, uma ignorância que havia gerado dezenas de mapas incorretos – ou simplesmente incompletos – nos séculos anteriores.

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Embora as interações entre Europa e África fossem milenares, o contato entre civilizações havia sido principalmente com os povos radicados no Norte (como o Antigo Egito) ou nas regiões litorâneas (em especial durante o tráfico negreiro). Foi apenas no século 19, quando exploradores bancados pelos governos e monarcas europeus começaram a se embrenhar pelas matas e rios africanos, que as últimas zonas de dúvida foram removidas da cartografia.

Um dos exploradores mais famosos dessa época foi Henry Morton Stanley, um jornalista galês que dedicou a maior parte de sua vida a desvendar os segredos da África. Ele já havia adquirido fama por encontrar com vida, em 1871, o missionário britânico David Livingstone, desaparecido no continente seis anos antes; Stanley também tinha realizado buscas pela nascente do Nilo. Ele foi pessoalmente contratado por Leopoldo II para mapear a bacia do rio Congo e garantir para o rei o controle sobre a região.

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Ainda que as riquezas do Congo não fossem totalmente conhecidas, nenhuma potência europeia tinha dúvidas de que uma área tão vasta, no centro da África, pudesse guardar outra coisa que não um potencial econômico inimaginável.

A região era pretendida por países como Portugal e França – esta, inclusive, mandou seu próprio explorador, Pierre de Brazza, que se estabeleceu na margem norte do rio Congo e deu nome à capital da atual República do Congo, Brazzaville. Mas, nessa corrida por tomar posse do território alheio, seria Leopoldo II quem tomaria a dianteira.

Um país como propriedade privada

O rei belga foi um dos grandes incentivadores da realização da Conferência de Berlim, que redesenhou a África – em suas próprias palavras, Leopoldo II não queria arriscar perder “a chance de assegurar um pedaço desse magnífico bolo africano”, conforme cita o historiador norte-americano Adam Hochschild em seu livro ‘O Fantasma do Rei Leopoldo’, uma das principais obras sobre a exploração do Congo.

Ao encerrar seus trabalhos, em 1885, a conferência havia dinamitado a antiga ordem de poderes no interior da África e estabelecido fronteiras artificiais sob controle de cada potência — e garantiu que o Congo ficaria mesmo nas mãos do monarca.

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O controle foi intermediado pela Associação Internacional Africana (AIA), uma empresa fundada por Leopoldo que formalmente havia sido a empregadora de Stanley em sua expedição e, agora, via-se transformada no braço administrativo de um país inteiro — na prática, um gigantesco latifúndio pertencente a Leopoldo. A própria AIA eventualmente seria substituída e a colônia particular do rei passaria a ser conhecida como Estado Livre do Congo.

Ironicamente, Leopoldo II tinha um poder incomparavelmente maior na África do que em seu próprio país: enquanto na Bélgica era uma figura simbólica dentro do sistema de monarquia parlamentarista, no Congo seus poderes eram absolutos, como nos velhos tempos.

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Em pouco tempo, o rei direcionou os interesses econômicos para a exportação do látex, um produto abundante nas florestas da região, usando tropas de mercenários para coagir a população local a servir aos seus interesses. A extração de marfim e a mineração também ajudaram a encher os cofres de Leopoldo.

Impondo cotas de produtividade tão altas que raramente eram cumpridas, o Estado Livre do Congo pouco a pouco adquiriria a triste fama que o levou a ser denunciado até mesmo por outras potências colonialistas: a mutilação da população local como forma de punição por não cumprir as metas – e as condições de vida precárias a ponto de provocar uma mortandade comparável a um genocídio.

O horror

Pai observa o pé e a mão da filha, removidos por agentes da Force PubliqueWikimedia Commons

“As cestas com mãos decepadas aos pés dos comandantes europeus se tornaram o símbolo do Estado Livre do Congo”, escreve o americano Peter Forbath em ‘The River Congo’, um clássico sobre a exploração da região. “A coleta de mãos virou um fim em si mesmo. Soldados da Force Publique (o “exército” local, a soldo de Leopoldo II) traziam as mãos às estações em vez da borracha”.

Para compensar a baixa produção, as tropas passaram a usar mãos como moeda de troca – decepá-las era a forma de punir os trabalhadores que não conseguiam cumprir as metas e, ao mesmo tempo, mostrar que os soldados estavam fazendo a sua parte em pressionar para que as cotas fossem cumpridas.

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Em tese, as mãos deveriam ser uma comprovação de que os “descumpridores” haviam sido mortos. E, de fato, estima-se que até 15 milhões de pessoas tenham morrido durante o domínio de Leopoldo II, fosse pela repressão ou pelas péssimas condições de vida às quais a população era submetida, com proliferação de doenças e desnutrição.

Embora nem todos os historiadores especializados no Congo concordem com o uso do termo genocídio para se referir à mortandade – Adam Hochschild, por exemplo, entende que o termo não pode ser aplicado “no sentido estrito”, pois não teria havido intenção deliberada de exterminar a população –, os números são comparáveis àqueles vistos mais tarde sob os regimes de Hitler ou Stalin.

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Mas houve, também, muitos sobreviventes: as imagens de congoleses com um dos membros decepados começaram a circular na Europa, provocando grande indignação — mesmo para os padrões da exploração colonialista, que foi invariavelmente violenta, o que ocorria sob os olhos de Leopoldo era considerado além dos limites aceitáveis para quem se anunciava em “missão civilizatória”.

O rei, no entanto, garantia não ter conhecimento dos fatos — e estar tão chocado quanto seus críticos europeus. Desde o início, ele garantia que sua visão era humanitária, não econômica, buscando apenas civilizar os povos remotos da África: “abrir a civilização na única parte do nosso mundo em que ela ainda não penetrou, perfurar a escuridão na qual populações inteiras estão involucradas é, ouso dizer, uma cruzada digna desta era de progresso”, declarou ainda na época da Conferência de Berlim.

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Mas a disputa de versões ficou cada vez mais difícil de ser vencida pelo aristocrata belga – e entrou em uma espiral insustentável após a execução de um europeu na região do Congo. O irlandês Charles Stokes, cidadão britânico, foi preso por comércio ilegal e enforcado por agentes belgas, sem o devido processo judicial, em 1895.

O episódio jogou a opinião pública e o poderio político e econômico do Reino Unido contra Leopoldo II.

Diferentes relatórios e denúncias foram elaborados descrevendo em detalhes o que acontecia no Congo, e obras de ficção passaram a incluir as atrocidades em seus enredos.

Legado

Em resposta ao caso Stokes, ativistas e políticos britânicos formaram a Associação pela Reforma do Congo (CRA, na sigla em inglês), com o objetivo de denunciar os abusos cometidos por Leopoldo II e seus asseclas. Diferentes escritores britânicos e norte-americanos, como Joseph Conrad, Arthur Conan Doyle e Mark Twain, juntaram-se à causa e passaram a difundir em seus trabalhos a triste realidade congolesa.

A pressão internacional fez com que o governo belga se mobilizasse para tirar o Estado Livre do Congo das mãos de seu monarca, uma transferência que seria concluída em 1908, apenas um ano antes da morte de Leopoldo II.

Nascia então o chamado Congo Belga, agora formalmente uma colônia do Estado, que só se tornaria independente na década de 60 – hoje, a maior parte de seu território compõe a República Democrática do Congo, ex-Zaire (a República do Congo, vizinha, formou-se a partir do território do antigo Congo Francês, ao redor de Brazzaville).

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A transição não foi barata: apesar das denúncias, Leopoldo só cedeu o controle após uma indenização de 215 milhões de francos belgas, equivalente a mais de 2 bilhões de dólares atuais — o rei enriqueceu, mas seu legado na África foi de pobreza e revolta.

Ainda hoje, o PIB da República Democrática do Congo não chega a 70 bilhões de dólares por ano — per capita, são menos de 800 dólares anuais por habitante.

O país aparece na 176ª posição do ranking de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) das Nações Unidas, entre 189 avaliados.

Já a Bélgica de Leopoldo, que herdou o território e pôde explorá-lo por mais meio século, atualmente ocupa o 17º lugar.

Protestos

Na esteira dos protestos iniciados após a morte de George Floyd pela polícia de Minneapolis, nos EUA, as diversas estátuas do Rei Leopoldo II espalhadas pela Bélgica entraram na mira dos manifestantes. Petições para a retirada, protestos e ataques foram realizados. Depois de ser incendiada, a estátua localizada em Antuérpia foi retirada da praça em que ficava e será transferida para um museu.

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