No início de fevereiro, autoridades de Hong Kong expuseram à imprensa internacional uma carga apreendida de nove toneladas de escamas de pangolim, extraídas de um número estimado de 14 mil animais, caçados e mortos. O pangolim, um mamífero que vive na Ásia e na África, alimenta-se de formigas e cupins e está ameaçado de extinção: não só sua carne é apreciada na culinária da China e do Vietnã, como suas escamas são muito valorizadas, pelo uso que têm em produtos associados à medicina tradicional chinesa (MTC).
Segundo a Convenção sobre Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas (CITES, em inglês), o pangolim é o animal silvestre mais traficado do mundo. Ainda segundo a CITES, as quatro espécies de pangolim antes comuns na Ásia sofreram declínio populacional de 80% a 99% nas últimas cinco décadas, movimento que se acentuou fortemente em anos mais recentes, coincidindo com o boom econômico chinês.
Virtualmente extinto na Ásia, o animal agora é caçado na África. Em 2018, autoridades de Hong Kong realizaram apreensões de escamas de pangolim que totalizaram 17 toneladas, o dobro do apreendido no ano anterior. As escamas são vendidas no mercado de produtos de medicina tradicional da China ao preço de US$ 750 (cerca de R$ 3 mil) o quilo.
Rinoceronte
Mais conhecido do que o pangolim, o rinoceronte também corre risco de extinção, em boa parte, por causa das supostas propriedades medicinais de seu chifre, que curandeiros asiáticos recomendam, por exemplo, como antitérmico e remédio para a impotência sexual – a escama do pangolim também é considerada afrodisíaca.
A questão da potência sexual muitas vezes confunde medicina e gastronomia na cultura tradicional chinesa: há mais de uma década, o restaurante Guo Li Zhuang de Pequim serve pratos baseados nos pênis e testículos de diversas espécies de animais para homens em busca de rejuvenescimento viril.
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Além desses usos tradicionais – sem nenhum respaldo em evidências científicas – o rinoceronte também sofre por conta de crendices mais recentes. Nas década passada, rumores de que um político vietnamita havia sido curado de câncer graças a chifres de rinoceronte causaram uma explosão na demanda, e hoje o mercado dessa parte do animal movimenta gangues internacionais, tropas mercenárias e corrupção na Ásia e na África, como aponta o livro “Killing for Profit” (“Matando por Lucro”, em tradução literal), de Julian Rademeyer.
A organização britânica Save the Rhino aponta que o uso do chifre na MTC, somado à crescente valorização da peça como símbolo de status e reserva de valor – especuladores vêm acumulando chifres à espera de uma alta futura de preços – representa um importante fator no processo acelerado de extinção do animal.
Em 2018, o último macho da espécie africana rinoceronte branco do norte teve de ser sacrificado. Já o último rinoceronte do Vietnã foi encontrado morto em 2011. O animal tinha levado um tiro na perna, e seu chifre havia sido chifre removido.
Embora o consumo na medicina tradicional ainda seja apontado como a principal causa da demanda primária pelos chifres, um artigo publicado em 2016 no periódico Biological Conservation aponta que o tráfico de chifres de rinoceronte motivado pelo mercado de artes e antiguidades é, muito provavelmente, subestimado.
Fungos
O fungo Cordyceps sinensis, que infesta o corpo de certas lagartas tibetanas, é outro produto natural extremamente valorizado na medicina tradicional da Ásia. Em 2018, o grama de Cordyceps já valia muito mais que o equivalente em ouro.
Como outros produtos tradicionais, o fungo é descrito como uma verdadeira panaceia (com supostos benefícios, sem comprovação científica adequada, para rins, fígado, sistema imunológico) e, claro, afrodisíaco (a mídia europeia às vezes se refere a ele como “Viagra do Himalaia”).
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A coleta do Cordyceps requer a escavação do solo para a remoção das lagartas que o alimentam, e o processo se intensificou de tal forma que biomas da região do Himalaia, como o Parque Nacional Jigme Dorji, no Butão, estão sendo ameaçados pela extração predatória. Relatório publicado por uma organização butanesa em 2012 apontava que “a coleta de Cordyceps em algumas das últimas paisagens intocadas do Himalaia traz mudanças negativas ao ecossistema”.
A exploração predatória e os novos prospectores atraídos pelo aumento de demanda ameaçam, ainda, a subsistência de populações que, historicamente, têm na coleta do fungo a principal fonte de renda.
Tradicional?
Em 2003, estudo publicado no periódico Complementary Therapies in Medicine já alertava que “muitos animais têm sido caçados para satisfazer as demandas crescentes do comércio de MTC (…) Caça ilegal intensa, incentivada pelo negócio da medicina oriental, aparece como um dos quatro fatores ameaçando a sobrevivência de populações saudáveis de tigres na natureza”. Além de tigres e rinocerontes, o artigo cita ainda tubarões e cavalos-marinhos.
Essa demanda por produtos associados à MTC vem sendo impulsionada pelo crescimento econômico chinês, e também pela agressiva promoção da MTC pelo próprio governo, embora oficialmente os produtos de origem animal não sejam explicitamente incentivados em publicações oficiais.
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O alerta para o perigo ambiental de certas tradições médicas asiáticas chegou ao grande público em 2005, com a publicação do livro “Tiger Bone & Rhino Horn” (“Osso de Tigre & Chifre de Rinoceronte”, em tradução literal), de Richard Ellis. Críticos do trabalho de Ellis apontaram que a MTC “de verdade” – tal como sancionada e codificada pelas autoridades do país – usa muito poucos produtos de origem animal, apoiando-se, principalmente, em ervas. Os vendedores de tratamentos baseados em partes de animais são seriam, portanto, praticantes legítimos, mas charlatões sem vínculo real com a “boa” MTC.
De fato, documento sobre os planos para promoção da MTC publicado pelo Conselho de Estado da China, em 2016, menciona medicamentos baseados em ervas e plantas diversas vezes, mas não materiais de origem animal. A exportação de produtos medicinais chineses em 2015 é estimada em mais de US$ 3 bilhões, mas apenas fontes vegetais são citadas de modo explícito.
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Do ponto de vista da demanda do público e da ameaça a diferentes espécies, no entanto, a distinção pode ser meramente acadêmica. Em 2017, um repórter de The Economist visitou um vibrante mercado de produtos medicinais no interior da China onde havia “sapos secos, lagartixas e pênis de cervos (…) E havia caixas do fungo de lagarta tibetana, ou ‘Viagra do Himalaia’”.
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