Um dado amiúde repetido pelos sindicalistas das universidades é que o setor público é responsável pela quase totalidade da pesquisa. É um dado verdadeiro, mas não inteiro. Afinal, nossas universidades fazem pesquisa por lei. Que pesquisa sai desses decretos, são outros quinhentos: tem desde pioneirismo na zika até autoetnografia em banheirão.
Segundo o artigo 207 da Constituição Federal, “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.”
Este princípio é muito repetido pelos sindicalistas, e é a causa principal de as universidades públicas concentrarem a pesquisa. Dos três elementos que o constituem, o leitor talvez só não saiba o que é extensão. É a atuação direta da universidade na sociedade, como a oferta de cuidados médicos em hospitais universitários ou a presença de estagiários das licenciaturas nas escolas públicas.
Tudo ao mesmo tempo agora
Por força da Constituição, o poder público não pode criar uma universidade com parte dos cursos voltadas à formação de mão de obra qualificada, e parte voltada à pesquisa. Isso é bem contraintuitivo.
Imaginemos uma universidade no sertão do Cariri: é um espaço privilegiado para estudar o bioma e técnicas inovadoras de agricultura em condições adversas. Além disso, é uma região povoada, que tem escolas, e portanto tem demanda de professores.
Os cursos que formam professores escolares são as licenciaturas, compostos por disciplinas da matéria a ser ensinada (português, matemática etc.) e disciplinas de Educação (a guilda dos freireanos).
Por que não, então, criar licenciaturas desatreladas de pesquisa, apenas para formar quadros para as salas de aula, e pós-graduações em biologia e agronomia? A Constituição não deixa, porque pesquisa e ensino são indissociáveis.
Façamos de conta que Paulo Freire não existe, e que temos no Brasil maravilhosos centros de pesquisa em Pedagogia a aprimorar incansavelmente os materiais e métodos de ensino das mais variadas disciplinas. Façamos de conta agora que um desses centros fique em Minas Gerais, outro no Rio Grande do Sul e outro em Roraima. Que os professores de ciências da natureza prefiram os métodos de Minas Gerais, e os de espanhol prefiram a inovadora metodologia desenvolvida pelos professores roraimenses que lidaram com crianças refugiadas.
Ainda assim, a universidade do Cariri teria que financiar também um departamento de professores-pesquisadores para pesquisar educação, pelo mero fato de ter licenciaturas. Afinal, é preciso que toda universidade com licenciaturas tenha pesquisa em pedagogia. As universidades não podem se especializar; têm que fazer tudo ao mesmo tempo agora.
O exemplo da educação é bom. As federais não têm, todas, os mesmos cursos; mas todas têm licenciaturas. Se toda licenciatura tem, obrigatoriamente, disciplinas de pedagogia, então em todas as 69 universidades federais do Brasil, desde a UFAC até a Unila, existe a obrigação constitucional de pesquisa em educação. E tome-lhe dinheiro pros sequazes de Paulo Freire.
Como o resultado das pesquisas são artigos, é fácil entregar qualquer coisa que repita as crenças já tidas por corretas. Aí o povo faz um monte de paráfrase, e a pesquisa é isso. Universidade particular faz menos pesquisa porque não é obrigada, e porque tem de se entender com as agências estatais de fomento, que costumam preferir as públicas.
Como gerir o próprio dinheiro?
Diz a Constituição, no artigo citado, que as universidades têm autonomia de gestão financeira e patrimonial. Mas impõe também, no artigo imediatamente anterior, a “gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais”.
As universidades públicas não podem cobrar mensalidades para arrecadar fundos. Imagine-se o quanto uma USP e uma UERJ não perdem, sendo proibidas de cobrar mensalidade até de quem tem todas as condições de pagar. A UERJ, outrora prestigiosa, teve de contar com o dinheiro administrado por atuais presidiários, e deve ficar às traças sem poder fazer os psolistas do Leblon que estudam lá tirarem o escorpião do bolso.
As políticas de trabalho também são amarradíssimas, de um jeito que faz a CLT parecer liberal. Diferentemente de uma particular, as universidades federais públicas têm no seu orçamento as aposentadorias dos inativos. E aposentaria de concurso antigo é uma coisa dispendiosíssima: quem entrou antes da reforma da previdência de 2003 recebe, como aposentadoria, o salário integral.
Ainda tem as gambiarras antigas que só os advogados previdenciários devem ser capazes de catalogar uma a uma. Cito um tipo de gambiarra da qual tive notícias, para se ter uma dimensão.
Antigamente, quando havia abundância de emprego formal para mão de obra qualificada, era comum se aposentar por tempo de serviço. Então o professor se aposentava, esperava abrir outro concurso, e passava. Ao cabo, um professor fica com duas gordas aposentadorias integrais do regime antigo, quando o salário ainda por cima era maior.
As federais recebem dinheiro do governo federal, e seu orçamento cobre desde a conta de luz até as aposentadorias. Não é a reitoria quem decide o regime das aposentadorias, nem está ao seu alcance fazer reformas previdenciárias. Isso está sob o domínio do governo federal. Não seria razoável, portanto, que o Estado desobrigasse as reitorias de arcar com os contratos que ele firmou?
Se estivessem desobrigadas, as reitorias destinariam o orçamento para salários, assistência estudantil (coisas como restaurante universitário e residência), obras, extensão e pesquisa.
Dessas coisas, a que costuma ser cortada é a pesquisa. Em geral, as pesquisas são financiadas pelas agências estatais de fomento, que criam os critérios para a distribuição do dinheiro. Ora, à exceção de São Paulo, com sua rica agência estadual (a Fapesp), os estados do Brasil ficam dependentes das agências de Brasília (a Capes e o CNPq).
Tais agências são compostas por professores-pesquisadores de universidades públicas, que amiúde usam critérios duvidosos para distribuir o dinheiro.
Não seria mais razoável mitigar os efeitos do centralismo criando-se um espaço orçamentário para cada federal tenha alguma participação no fomento da própria pesquisa? Não há, na administração das universidades, liberdade para conduzir políticas de pesquisa. Nem sequer de discutir políticas de contratação, na verdade.
Como contratar bons professores?
Friso que não há liberdade de contratação. Costumo fazer um experimento de pensamento e imaginar que Einstein ressuscitou, aprendeu português no Além, e está morrendo de vontade de dar aula na UFBA.
Recebe telefonemas de Cambridge, de Oxford, de Harvard, sendo insistentemente convidado para ir dar aulas lá, mas diz “Não, eu quero ir dar aula na UFBA”. Aonde o redivivo iria pedir o emprego? Nem há onde deixar um currículo, pois a praxe é entrar por concurso (definitivamente) ou seleção (temporariamente).
Ainda bem que a Constituição reza: “É facultado às universidades admitir professores, técnicos e cientistas estrangeiros, na forma da lei.” (art. 207, § 1º) Os nobres parlamentares fizeram uma emenda constitucional em 1996 para permitir isso. Mas o que significará “nas formas da lei”?
Aí já saímos da Constituição, e vamos para o rasuradíssimo Estatuto do Magistério Superior, de 1968. Tudo o que obrigava fazer concurso público para contratar professores foi riscado.
Essa obrigação de concurso, criada durante a vigência do AI-5, teria impedido a formação de universidades como a USP, que trouxeram as famosas missões estrangeiras para formar a primeira universidade de ponta em São Paulo.
A atual administração da UFBA gosta muito de exaltar a proeminência que a universidade teve nos anos 50, quando, recém-constituída a partir de escolas pré-existentes, a Universidade da Bahia recebeu artistas europeus fugidos da II Guerra e das ditaduras.
Entre eles, os músicos Smetak e Koellreuter (professores dos tropicalistas), a bailarina Yanka Rudzka, que participou da fundação do curso superior de dança mais antigo do Brasil, e o filósofo português Agostinho da Silva, que fundou o Centro de Estudos Afro-Orientais na UFBA, participou da fundação da UFSC e da UnB, e foi tachado de salazarista pelos comunistas por criar nesta última o Centro Brasileiro de Estudos Portugueses.
Sem dúvida, era um cenário muito mais aberto e menos burocrático.
Pois muito bem: em 1968, foi obrigatório ter concurso para se tornar professor de universidade pública. As rasuras vieram por causa da lei 8.745, de 1993, que libera a contratação por tempo determinado de professores substitutos e professores visitantes, além de professores e pesquisadores visitantes estrangeiros.
Tudo isso em caso de “necessidade temporária de excepcional interesse público”, cheia de especificações detalhadas dos prazos máximos e caracterização de interesse público. Só em 2012 rasuraram a lei para colocar o “reconhecido renome em sua área profissional, atestado por deliberação do Conselho Superior da instituição contratante” como algo de excepcional interesse público. Agora, se o Conselho decidir que o interesse público é entupir os quadros de mulheres negras racialistas, nosso Einstein redivivo está lascado.
Ou seja, se Einstein ressuscitasse de malas prontas para a Bahia, tinha grandes chances de dar de cara com a porta. Teria que esperar abrir seleção, para ficar por aqui num máximo de tempo que não chega a 10 anos, ou esperar abrir concurso.
Abrindo o concurso, ainda teria que lidar com uma banca que quer dar emprego a algum aliado (ainda escrevo sobre isso), e com adoráveis militantes que vão acusá-lo de ser um homem branco cis hétero.
Que fazer com os pseudo-pesquisadores?
Os professores podem ser exonerados por serem ruins? Por ruins entendo os economistas “heterodoxos” de várias universidades públicas, notadamente a Unicamp, que juram que a política de Dilma Rousseff era excelente, e até desenharam parte dela. Ou os pseudocientistas sociais que só sabem, da história do Brasil, aquilo que resumi num Manual de História Burra. Ou os pedagogos que não se importam com conhecimentos de neurociência na alfabetização, e acham que tudo é construção social. Ou ainda os psicólogos que pararam nos anos 50, para os quais tudo o que vem depois de Skinner é novidade desconhecida.
Se sim, os constitucionalistas que batam cabeça para descobrir como. Por ora, aponto que as agências de pesquisa estatais usadas para distribuir verbas são compostas pelos próprios pesquisadores (ou pseudopesquisadores) estatais, num ululante conflito de interesses, num desenho institucional feito pra dar errado.
Quanto ao aludido estatuto do magistério de 68, a palavra “exoneração” simplesmente não consta. O máximo que um reitor pode fazer é tirar professores das faculdades, ficando com o compromisso de realocá-los em outras.
Um reitor é como que um vereador
Diante dessa situação, que pode fazer um reitor? Boa parte do orçamento vai para pagar uma folha sobre o qual ele não tem o menor controle. (Vide o caso do Paraná, onde isso chegou a incríveis 98%.) Sobra para pagar despesas de água e luz, e cuidar da assistência estudantil. Talvez, quem sabe, fazer alguma extensão e uma pesquisa.
Ao cabo, os reitores de federais ficam como se fossem vereadores de uma cidade de interior onde todo mundo é sindicalista. Primeiro, tem eleição controlada por sindicato (e isso é assunto para outro texto). Depois Vão a Brasília e pedem verba. A verba pode ser então usada para dar às pró-reitorias, as quais são loteadas por partidos, tal como ministérios e secretarias costumam ser. E os partidos distribuem as benesses à nova categoria de aspones acadêmicos.
Deixo aqui, para o leitor ter uma ideia do que é um aspone acadêmico, o site de um projeto custeado pela Pró-Reitoria de Assistência Estudantil da UFBA. Essa Pró-Reitoria em 2017 deu nove bolsas para alunos aplicarem formulário do Google (onde você podia dizer se era não binário ou gênero fluido) e ficar fazendo roda de conversa sobre gênero. Vieram os cortes, e não vi mais notícia desse projeto.
Se a Constituição impede os reitores de serem reitores, só se candidatam ao cargo os que querem ser políticos. Recrutam partidos, aspones e sindicatos, e usam a universidade para espremer os cofres públicos.
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