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Pacto Federativo

Como a criação de milhares de municípios piorou a vida dos brasileiros

Serra da Saudade: o menor município do Brasil com cerca de 800 habitantes.
Serra da Saudade: o menor município do Brasil com cerca de 800 habitantes. (Foto: Reprodução/ Youtube)

A PEC do Pacto Federativo, apresentada pelo governo Bolsonaro e protocolada pelo líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), nem começou a ser discutida no Congresso. Ainda assim, um de seus pontos mais importantes já é motivo de um debate acalorado.

Segundo o texto preparado pelo Ministério da Economia, cidades com menos de 5 mil habitantes e arrecadação própria inferior a 10% da receita total serão incorporadas pelo município vizinho. Uma mesma cidade pode incorporar até três municípios menores. Para justificar as mudanças, há dados que indicam que a fragmentação dos municípios brasileiros piorou as condições de vida da população.

Cenário atual

A indústria da criação de municípios é antiga. Em 1940, por exemplo, o Brasil tinha 1.574 municípios. Apenas 2% deles tinha menos de cinco mil habitantes. Sessenta anos mais tarde, em 2000, havia 5.507 municípios, 24,10% deles com menos de cinco mil habitantes. Atualmente, O Brasil tem 1.257 municípios com população inferior a esse patamar, principalmente no Rio Grande do Sul, Minas Gerais e São Paulo.

Nesses sessenta anos, o Brasil assistiu à criação de nada menos do que 3.996. Num intervalo de apenas 16 anos, entre 1984 e 2000, foram criados 1.405 municípios, 94,5% deles com menos de vinte mil habitantes. A maior parte dessas cidades foi criada depois da Constituição de 1988, que flexibilizou as regras de emancipação. Mais tarde, em 1996, com a aprovação da Emenda Constitucional nº 15, o governo passou a restringir a criação de cidades e a exigir um Estudo de Viabilidade Municipal.

Embora os novos municípios costumem ser criados em regiões sem muitas perspectivas de desenvolvimento, a partir da emancipação todos eles precisam de uma estrutura burocrática e administrativa: prefeitura, secretarias e Câmara Municipal com no mínimo 9 vereadores — número fixado pela Constituição.

A situação é ainda mais grave porque 20% dos 3.762 municípios que prestaram contas ao Tesouro Nacional em 2016 gastaram com o legislativo municipal mais do que arrecadaram sozinhos. Essa diferença é custeada com verbas do governo federal.

Além dos novos cargos criados, o pacto federativo firmado na Constituição de 1988 aumentou as transferências financeiras que a União e os estados devem fazer, obrigatoriamente, aos próprios municípios.

Da forma como é estruturado hoje, o Fundo de Participação dos Municípios — responsável por quase metade do orçamento de todos os municípios do país — beneficiam desproporcionalmente os que têm menos habitantes. Municípios com uma população de até cinco mil recebem muito mais do que uma cidade com população três vezes superior, por exemplo.

Índices piores e benefícios pífios

Apesar de muito dinheiro ser direcionado aos pequenos municípios, boa parte desses recursos acabam se perdendo nas máquinas públicas locais em vez de beneficiar a população da região.

Em 2016, por exemplo, apenas 6,8% do orçamento das cidades foi usado em investimentos. Enquanto isso, a despesa média com pessoal nos municípios brasileiros chegou a 52,6%.

Como diz o economista Marcos Mendes, enquanto isso ocorre, os municípios grandes perdem verbas que poderiam ser “capazes de enfrentar complexos problemas sociais que entravam o desenvolvimento econômico e social, como os congestionamentos de trânsito, a violência urbana, a proliferação de habitações em áreas de risco”.

Um estudo da Fundação Getúlio Vargas traz dados que sugerem que a fragmentação dos municípios brasileiros não beneficiou as populações locais. Os economistas Enlinson Mattos e Vladimir Ponczek analisaram os efeitos da proliferação de municípios que ocorreu no Brasil durante a década de 1990. A conclusão foi a de que ela influenciou negativamente diversos indicadores econômicos e sociais das cidades que se dividiram.

No âmbito educacional, por exemplo, houve um aumento médio de 1% na taxa de analfabetismo nos municípios que se dividiram, em comparação com aqueles  que não se dividiram. Além disso, houve uma redução de 0,2 anos na escolaridade média dos cidadãos dessas localidades.

Os indicadores dos serviços de saneamento e infraestrutura também foram piores nos municípios que se separaram. Houve uma redução de mais de um ponto percentual na provisão de coleta de lixo, esgoto e energia elétrica.

A renda per capita também caiu. Em média, o habitante do município que se separou no período analisado ficou R$ 6 mais pobre. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), por sua vez, caiu por volta de 0,007 nesses lugares.

Além disso, o levantamento aponta que os efeitos entre as cidades que se dividiram mais tarde são menores, em valores absolutos, do que entre aquelas que se dividiram no início da década de 1990. Ou seja, os problemas gerados com a divisão municipal têm efeitos que se acumulam ao longo do tempo.

Outro estudo, este feito pelos pesquisadores Ricardo Carvalho de Andrade e Raul da Mota Silveira Neto e publicado pelo Journal of Regional Science, indicou que os municípios que passaram por um processo de secessão aumentaram seus gastos per capita em 14,7%.

A explicação para isso é relativamente simples. Municípios maiores podem obter economias de escala, reduzindo o nível de gastos per capita. Assim, as divisões geram o efeito oposto: reduzir o tamanho dos governos locais causa perda de escala e, portanto, gera maiores despesas per capita.

Como se não bastasse, a redução dos indicadores socioeconômicos não é o único problema. Os mecanismos de fiscalização do trabalho dos vereadores em cidades de menor porte também ficam mais difíceis. Até 2014, por exemplo, metade das câmaras municiais dessas cidades não tinha um site que eleitores pudessem consultar para acompanhar os trabalhos dos vereadores.

Isso significa que a fragmentação de municípios brasileiros tirou recursos de cidades maiores em troca de um benefício pífio para a população local e que não há mecanismos de supervisão e fiscalização adequados nesses lugares.

Instrumento de sustento das elites locais

Na avaliação do economista e mestre em estatística Thales Nogueira, a discussão do pacto e da municipalização é extremamente positiva. "O Fundo de participação dos municípios é responsável por mais de 3/4 das receitas municipais em mais de 80% das cidades. Se olharmos para os orçamentos desses pequenos municípios, a maior parte dos gastos vai para estrutura administrativa. A finalidade nunca foi qualidade de vida para a população, mas sustentar elites políticas locais", afirma.

Nogueira explica que a criação de municípios menores poderia ser justificada por uma oferta maior de bens públicos, isto é, com uma maior proximidade do cidadão poderia haver maior controle e supervisão. Mas o que temos de evidência disponível é que nenhum desses incentivos justifica a aceleração desse processo na década de 1990.

Um dos mais clássicos trabalhos sobre o tema, do IPEA, mostra as consequências econômicas e sociais indesejáveis da emancipação. O estudo apontou que as sucessões beneficiaram  uma pequena parte da população que vive nos pequenos municípios, e não necessariamente a mais pobre, e prejudicou a maior parte, que habita nos outros porque os recursos ficaram mais escassos. Outra conclusão é que os recursos utilizados com gastos legislativos reduziram proporcionalmente o montante de recursos disponíveis para programas sociais e investimentos”, diz.

Ao propor o fim de pequenos municípios, o governo Bolsonaro vai no sentido oposto aos incentivos políticos históricos de quem esteve à frente do Palácio do Planalto. Um estudo recente publicado pelos economistas Marcelo Castro e Tiago Cisalpino mostrou que a dependência maior dos municípios pequenos beneficia o partido que comanda o governo federal, enquanto o principal partido de oposição perde votos nas campanhas para presidência da República e do Congresso Nacional. “Ao impor a dependência econômica de pequenas cidades às doações incondicionais do governo central, cria-se um canal de alinhamento político. Os pequenos municípios precisam de deputados federais alinhados ao governo federal para solicitar alterações no orçamento, como verbas e emendas”, escrevem os pesquisadores.

“É um canal de rent seeking, isto é, transferência de renda, para as administrações locais, explica Nogueira. Apesar disso, vale lembrar que Dilma Rousseff também agiu contra a fragmentação dos municípios. Em duas oportunidades ela vetou projetos aprovados pelo Congresso Nacional que estabeleciam novas regras para a criação de municípios.

Diante disso, Nogueira é categórico: “Rediscutir os efeitos negativos da emancipação é imperativo. Talvez seja o melhor ponto dessa mega pacote embutido nas PECs, tanto do ponto de vista fiscal, como social”, conclui.

Resistência no Congresso

Se a fragmentação dos municípios foi conduzida a partir de incentivos políticos, como elites locais e partidos buscando se apropriar de transferências estaduais e federais, reverter esse quadro é uma missão complexa.

A extinção dos municípios afetaria diretamente 24 legendas e, por isso, gerou ruídos no Congresso. E não apenas entre os integrantes dos partidos que fazem oposição formal ao governo de Jair Bolsonaro, mas também de parlamentares que costumam votar com o Palácio do Planalto.

As quatro legendas mais afetadas com as mudanças, pois deixariam de administrar prefeituras, seriam o MDB, o PSDB, o PP e o PSD, que dominam 57% dos municípios que se enquadram nos critérios para serem eliminados. Juntas, as siglas somam 139 deputados.

Levantamento

Para ver a estimativa de cidades que cumprem os dois critérios do governo para a inviabilidade, a Gazeta do Povo preparou este levantamento exclusivo.

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