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Comportamento

Como a crise econômica está dificultando a formação de novas famílias

Crise econômica adia casamento e filhos e acentua problema demográfico (Foto: Pixabay)

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Casamento entre os 23 e 26 anos (respectivamente, para mulheres e homens), dois filhos antes dos 30. Quase irreconhecível para os tempos correntes, esta era o comportamento padrão apresentado pelas famílias brasileiras até o começo dos anos 2000 – uma média que garantia, até então, a manutenção de um importante fator econômico: a renovação populacional. Segundo dados do Banco Mundial, até 2003, a taxa de fecundidade no Brasil era de 2,1 filhos por mulher, coeficiente considerado mínimo para a reposição demográfica (a ideia é que os dois filhos, integrados à população economicamente ativa, “substituam” os pais, com uma pequena margem para compensar os que não nascem vivos). À época, o salário mínimo era R$ 240, e uma cesta básica na capital paranaense, Curitiba, custava R$ 154. Em São Paulo, o valor era de R$ 162,79 - números que representam, respectivamente, 64% e 67% do salário mínimo.

Quase 20 anos depois, o país que por décadas se esquivou do envelhecimento populacional que preocupa nações europeias e asiáticas se vê na mesma estrada: além de se casar cada vez menos e mais tarde, são poucos os brasileiros que se arriscam a ter mais de um herdeiro – a taxa de fecundidade do país está em 1,7 filho por mulher. Há, é claro, um elemento cultural em jogo: preocupados com a carreira e mais apegados a experiências de consumo do que à construção de um patrimônio estável, os “milleniais” e a geração Z (nascidos, respectivamente, a partir de 1985 e 1995) compõem o fenômeno dos “trintões” que fogem dos relacionamentos duradouros e trocam as crianças por animais de estimação. O estereótipo não está, de todo, descolado da realidade, mas tampouco está perto de abarcá-la por completo: mais do que mero individualismo, há, no caminho da formação de novas famílias, uma crise econômica que só tende a acentuar um declive que não se restringe ao cenário brasileiro.

“Existe, sem dúvida, um fenômeno cultural bastante disseminado nos países ocidentais que faz com que as gerações mais novas tenham menos interesse em constituir família ou, o que dá no mesmo, tenham um grau de exigência muito elevado sobre o que seriam as condições mínimas aceitáveis para iniciar uma. No entanto, é também verdadeiro que essas gerações atuais, quando pretendem constituir família, encontram uma situação econômica mais desafiadora, em muitos aspectos, do que as gerações dos seus pais encontraram. Há estudos mostrando que os jovens da geração ‘millennial’ são os primeiros, em várias décadas, a terem um padrão de vida inferior, em média, ao que seus pais tinham na mesma idade”, avalia o economista Ricardo da Silva Carvalho, da Universidade de São Paulo.

“Uma evidência anedótica e até caricatural de como isso é verdade é dada pelo seriado ‘Os Simpsons’. Quem é Homer Simpson? É um homem medíocre, sem ambições, com pouca inteligência e um emprego de nível médio numa pequena cidade do interior dos Estados Unidos. No entanto, Homer consegue sustentar sozinho, com o seu salário, uma esposa dona de casa e três filhos. Apesar de não terem grandes luxos, os Simpsons têm uma vida tranquila, dois carros e vivem em um sobrado grande e confortável em uma boa vizinhança. Ora, quando o seriado foi criado, no início dos anos 1990, a intenção era que a família Simpson representasse de forma jocosa e até ridícula, mas realista, a vida de uma família mediana no país. Não era para ser um ‘modelo’ ao qual as pessoas aspirassem! No entanto, a dura realidade é que hoje a vida segura dos Simpsons é um sonho idílico e quase inatingível para muitos jovens americanos recém-saídos da universidade, mesmo os mais qualificados, muitos dos quais atolados em dívidas estudantis e incapazes de encontrar empregos à altura da alta qualificação que possuem”, compara Carvalho.

Se, nos Estados Unidos, onde a inflação acaba de alcançar seu maior índice em 40 anos na casa dos 8,6%, a crise é perceptível, o que dizer do Brasil, onde a alta dos preços tende a superar, em muito, a média americana? “Uma frase que temos usado bastante e que ilustra bem o cenário é: está cada vez mais difícil ser família”, avalia Rodolfo Canônico, diretor da ONG Family Talks, cujo objetivo é a promoção de políticas públicas voltadas para a vida familiar. “As dinâmicas culturais envolvidas também são produto de uma série de elementos extrínsecos que tornam a dificuldade ainda maior. É uma via de mão dupla”, diz Canônico. Tome-se, por exemplo, um cálculo recente pelo Insper: para a classe C, que representa mais da metade da população brasileira e conta com um orçamento de até R$ 12 mil, o custo de criar um filho no Brasil é de mais de R$ 400 mil, podendo chegar à casa do milhão em uma metrópole como São Paulo. Some-se a isto os crescentes custos com moradia, educação e saúde, em cidades onde o valor da cesta básica aumentou entre 85% e 87% desde 2015 – respectivamente, os casos de São Paulo e Curitiba -, em contraste com um aumento de 53,8% do salário mínimo no mesmo período.

Neste contexto, se o dito popular que diz que “quem casa quer casa” continua válido, é de se esperar que mesmo o casamento – que tende a ter um impacto econômico positivo - também sofra com as contingências. “Em teoria, o casamento é uma decisão vantajosa do ponto de vista financeiro: há uma sinergia de ganhos e uma redução das despesas. O problema é que, ao contrário de uma viagem ou um curso, que são gastos pontuais, o casamento é um projeto de longo prazo e, em tempos de crise, todo projeto é postergado ou reavaliado. Nasce o medo de que, diante do desemprego iminente, um cônjuge precise sustentar o outro. Acrescente-se a isto o fato de que os brasileiros não têm uma cultura de poupança e de que grande parte dos divórcios se dá por problemas financeiro. Em meio a uma recessão, é muito mais difícil gerir uma família do que viver sozinho, e poucos estão preparados para assumir esse compromisso", avalia Lauro Barillari, mestre em economia e gestão.

Canônico aponta, ainda, algumas dinâmicas econômico-culturais que deveriam receber a atenção dos que se preocupam com o declínio da formação de novas famílias e, não raramente, passam ao largo destes que se dizem defensores da causa. “O mercado de trabalho penaliza a maternidade”, diz o diretor da Family Talks, respaldado por dados alarmantes: apesar de protegidas pela legislação nos meses posteriores ao parto, um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) mostrou que metade das brasileiras perdem o emprego até um ano depois de uma gestação. Relatos de grávidas que perdem vagas de emprego acertadas durante a gestação, que são demitidas à revelia de seus direitos, e que foram deliberadamente questionadas acerca de seus planos de ter outros filhos abundam nas redes sociais e nos tribunais. Segundo o Tribunal Superior do Trabalho, por exemplo, a quantidade de processos envolvendo rescisão de contrato de trabalho de gestantes subiu 23,3% entre 2017 e 2019 (de 20.821 para 25.072).

Com dificuldade de encontrar e manter o emprego, as mães também se veem às voltas com um desafio intrínseco ao mundo moderno, acelerado pela instabilidade econômica e pela própria redução das famílias, num ciclo vicioso que parece não encontrar barreiras: a atomização das famílias e a ausência de uma rede de apoio. “Os laços comunitários sempre foram essenciais para a formação de um núcleo familiar. Estas redes servem para reduzir o custo de criação dos filhos, prestar apoio em conflitos familiares, oferecer suporte econômico e emocional. Trata-se de um obstáculo que pode ser decisivo: há muitos casais que desejam ter filhos mas, sem ninguém por perto, a tarefa parece bem mais difícil”, diz Canônico.

Frente ao cenário global de envelhecimento populacional, a própria China substituiu há pouco tempo a absurda política do filho único por incentivos a famílias maiores (ainda sem resultados mensuráveis). Na Hungria, o controverso primeiro-ministro Viktor Orbán alcançou boa parte de sua popularidade ao reduzir os tributos sobre famílias numerosas e oferecer benefícios a avós que cuidam dos netos, o que resultou num aumento da taxa de natalidade no país. Na Suécia, os casais têm direito a 480 dias de licença maternidade ou paternidade, a ser dividida entre os dois. Na Rússia, Vladimir Putin também apostou na redução de impostos e transferência de renda para famílias com três filhos ou mais – medidas que surtiram efeito positivo, mas foram limitadas pela incerteza econômica.

É de se surpreender, inclusive, que poucos nomes da elite tenham demonstrado preocupação com o fenômeno: não são poucos os que, ainda presos aos ultrapassados modelos neomalthusianos, insistem no controle populacional como forma de reformar a economia e combater até mesmo o aquecimento global. Recentemente, o bilionário Elon Musk, CEO da Tesla, fez referência ao drama demográfico: “o colapso populacional é a maior ameaça à civilização”, afirmou o magnata, via Twitter, acrescentando que “a Itália não terá um povo se essas tendências continuarem”.  Não se trata, afinal, de um diagnóstico tão errôneo.

“Quanto menos as pessoas formam família e menos têm filhos, mais a situação tende a piorar para as próximas gerações. Tanto o crescimento das despesas com saúde quanto o problema previdenciário estão relacionados ao envelhecimento da população. Além disso, tem uma família, ter filhos e se preocupar em dar uma vida melhor a eles é um dos incentivos mais poderosos que existem para que as pessoas poupem, empreendam e busquem crescer profissionalmente”, reforça Carvalho. “Por tudo isso, a vida familiar é também um elemento que contribui para o crescimento econômico. Uma sociedade na qual as pessoas deixam de constituir família, ou passem a fazê-lo muito tarde, é uma sociedade com perspectivas preocupantes”.

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