Os Estados Unidos ocupam o primeiro lugar em quase todo índice de poder brando (“soft power”) desde que o conceito foi proposto pelo cientista político Joseph Nye Jr. há mais de 30 anos. Brando é o poder de culturas e países de influenciar outros povos na direção que preferem, em vez de coagi-los ou ameaçá-los. O soft power americano se estende à produção cultural, à produção de ativismo e à produção de ideias e vocabulário acadêmicos que influenciam o ativismo. Não é surpresa, portanto, que ideias políticas no Brasil estejam à sombra dessa influência.
Em se tratando da influência sobre a “esquerda” nacional, que chega à aparência de imitação, esse poder brando constatável atinge um tom irônico, dada a histórica oposição desse lado do espectro político ao que ele próprio chama de “imperialismo ianque”. Em diferentes aspectos, os militantes brasileiros soam como os americanos a quem muitas vezes alegam odiar. Essa relação contraditória de repulsa com imitação já foi tratada por intelectuais nacionais em diferentes áreas.
A emulação brasileira da esquerda americana se distribui na onda recente dos movimentos identitários, nas ideias para a economia e nas prioridades para projetos de lei. Com frequência, essa imitação é financiada diretamente por organizações americanas ou com grande expressão nos Estados Unidos.
Identitarismo
Nos últimos dez anos, intensificou-se nos Estados Unidos uma constelação de movimentos dedicados a tratar dos problemas de grupos seletos de uma forma que se distancia do liberalismo e do conservadorismo. Os movimentos identitários querem de forma mais ou menos explícita um tratamento especial e diferenciado para grupos como mulheres, minorias sexuais (LGBT) e raciais. As ferramentas desenvolvidas por esses movimentos também foram aplicadas para tratar de deficientes físicos e obesos. Entre essas ferramentas está a alegação de que a sociedade foi construída sobre estruturas abstratas feitas especialmente para oprimi-los e que só o tratamento desigual favorável a eles poderia corrigir as injustiças causadas por essas alegadas estruturas.
O progressismo tupiniquim claramente acompanhou esses ventos americanos. Uma forma de rastrear a imitação nacional é a adoção de vocabulário intraduzível utilizado em inglês. Em dezembro de 2018, a influenciadora Kéfera Buchmann usou em um programa de TV os termos “manterrupting” (quando a fala é interrompida de forma mal-educada) e “mansplaining” (explicações condescendentes que subestimam a inteligência e o conhecimento da pessoa para a qual se explica algo) — erros que feministas alegam que são cometidos especialmente por homens contra mulheres.
Nas buscas do Google, foi justamente em dezembro de 2018, após o uso por Kéfera, a primeira vez que as buscas por esses termos no Brasil ultrapassaram as realizadas nos Estados Unidos.
Americanismos também são ubíquos nos outros movimentos: no das minorias sexuais, “gay” é o exemplo mais óbvio, termo que passou a ser o preferido pelos ativistas e o mais favorecido como livre de ofensa para a cultura em geral. Antes disso, a palavra passou por uma desestigmatização nos EUA. Nenhum dos termos nacionais para homossexuais foi completamente desestigmatizado. Enquanto isso, novos termos em inglês, como “queer”, passaram a ser adotados.
A própria sigla LGBT, criada entre os americanos, hoje tem mais buscas no Google originadas no Brasil que em seu país de origem — a virada aconteceu em 2018. Novas versões da sigla, como LGBTQIA, ainda são mais frequentes nas buscas originadas nos Estados Unidos, mas há um crescente interesse brasileiro especialmente desde 2020.
No campo do ativismo racial, pode-se ver que nos últimos cinco anos o nome da acadêmica americana Kimberlé Crenshaw, que propôs o termo “interseccionalidade” para a ideia de que uma mulher negra é mais oprimida por acumular em sua identidade um alvo de uma opressão que está na interseção entre sexismo e racismo, é tão popular nas buscas do Google dos últimos anos no Brasil quanto em seu país natal — se não mais. Há períodos em que há mais buscas no Brasil.
Cada vez mais brasileiros mestiços “se descobrem” negros, ou seja, mudam sua percepção subjetiva e sua autoidentificação dos vários termos nacionais usados para a maioria de mestiços no país, a maioria dos quais é rejeitada pelo movimento identitário racial (“mulato”, “moreno” etc. são considerados termos racistas pelos militantes). Isso, também, é um americanismo: como explica o sociólogo paulista Demétrio Magnoli no livro “Uma Gota de Sangue” (Contexto, 2009), a ideia de que uma pessoa de pele não muito escura deve ser considerada “negra” porque tem alguma ancestralidade negra (a “gota de sangue” do título) é originária dos Estados Unidos — era usada pelos racistas e, estranhamente, foi adotada pelos militantes raciais.
Crenshaw propõe, em um artigo influente, que a ideia de tratar as pessoas igualmente sem dar importância às suas cores diferentes, o que os americanos chamam de “cegueira à cor”, “não faria sentido numa sociedade em que grupos identificáveis haviam sido tratados de forma diferente”. A solução para tratamento diferenciado para ela, portanto, é mais tratamento diferenciado. As cotas raciais, que são uma expressão dessa ideia, estão em risco de serem revogadas pela Suprema Corte americana em nome da isonomia perante a lei, enquanto no Brasil teve sua constitucionalidade afirmada pelo Supremo Tribunal Federal. “Ação afirmativa”, a propósito, foi um termo criado nos Estados Unidos, usado pela primeira vez em contexto oficial em uma ordem executiva do presidente John Kennedy em 1961, como conta o pensador Thomas Sowell no livro “Ação Afirmativa ao Redor do Mundo” (É Realizações, 2017).
Crenshaw é herdeira da escola de Frankfurt, com nomes como Herbert Marcuse. Apesar do nome, a escola filosófica, de fato fundada por alemães, encontrou abrigo, tanto para os intelectuais quanto para as ideias, entre universidades americanas. Notoriamente, Marcuse defendia uma nova versão de “tolerância” que significaria tolerar movimentos de esquerda, mas não de direita. A esquerda identitária atual é fortemente influenciada por Marcuse, em detrimento dos ensinamentos de Karl Marx.
Há reclamações internas à esquerda quanto à imitação do identitarismo americano. O antropólogo baiano Antonio Risério, que trabalhou no marketing político de campanhas de Lula e Dilma Rousseff, um dos mais notórios opositores dos identitários no país, diz em seu volume com múltiplos autores “A Crise da Política Identitária” (Top Books, 2022) que “O identitarismo, em última e mais profunda análise, é sintoma da patologia social norte-americana que o imperialismo cultural se encarregou de espalhar pelo mundo”.
Há outros sinais de imitação do identitarismo americano no Brasil: progressistas, nas redes sociais, adotaram a declaração de pronomes “de gênero” em suas descrições. “He/him” e “she/her” do inglês viraram “ele/dele” e “ela/dela” no português, apesar de na nossa língua isso ser redundante e não fazer sentido, já que o gênero é marcado em artigos e adjetivos, mais que em pronomes.
Outra moda ideológica americana é a do “trigger warning”. O termo, que se traduz literalmente para “aviso de gatilho”, trata de situações que podem engatilhar memórias traumáticas para quem tem transtorno de estresse pós-traumático (autodiagnosticado entre os militantes mais extremos). O jornalista Greg Lukianoff e o psicólogo social Jonathan Haidt tratam do assunto em seu livro de 2018 “The Coddling of The American Mind” — em tradução livre, “Mimando a Mente Americana”. Eles apontam que, mesmo em casos reais do transtorno, o tratamento está em exposição controlada e atenuada aos “gatilhos”, não com luvas de pelica e superproteção. Em suma, para os autores, o ativismo identitário desincentiva a resiliência emocional.
A editora americana Wilder Publications colocou em 2014 um “aviso de gatilho” até em uma edição da trilogia das “Críticas” do filósofo Immanuel Kant: “Este livro é um produto de seu tempo e não reflete os mesmos valores que teria se fosse escrito hoje”, diz o aviso na página de título, acrescentando que menores devem ler o filósofo com orientação dos pais, pois o livro supostamente tem conteúdo sensível “sobre raça, gênero, sexualidade, etnicidade e relações interpessoais”.
Mais uma vez, os brasileiros com tendências políticas à esquerda adotaram o hábito americano: “está me dando gatilho” virou uma expressão recorrente nas redes sociais e o portal jurídico progressista Justificando, parte do Yahoo Notícias, adotou o “aviso de gatilho”. Contudo, entre os ativistas há proposta de abandono do termo, com mais justificativas estimuladoras da pouca resiliência psicológica: “gatilho” em si seria traumático por fazer alusão a armas de fogo.
Economia
Na área da economia, embora os EUA sejam um dos países com os maiores níveis de liberdade econômica (que está causalmente relacionada a maiores índices de desenvolvimento humano), nessa área a esquerda nacional gosta de imitar o que figuras consideradas extremas no país têm a oferecer — como o senador Bernie Sanders, veterano do Partido Democrata que tem tido algum sucesso em desestigmatizar o socialismo entre os jovens americanos.
Desde a transição, o terceiro governo Lula flerta com a “teoria monetária moderna” como sustentação acadêmica para gastos acima do teto estabelecido antes. Também originada entre alemães, são americanos como Stephanie Kelton, professora de economia na Universidade Stony Brook, que insistem em promover a teoria, que já fez estrago no Chile, Peru, Argentina e Venezuela. Kelton foi assessora de Bernie Sanders. O constructo é criticado por economistas de esquerda dos EUA como o laureado com o Nobel Paul Krugman, mas promovido por figuras populares no identitarismo como a deputada democrata por Nova York Alexandria Ocasio-Cortez.
Imitação paga
Como já indicava Demétrio Magnoli em seu livro de 2009, uma das maiores financiadoras mundiais do identitarismo é a Fundação Ford, com origem no pioneiro do automóvel Henry Ford, mas distanciada de seus negócios na década de 1970, não sem antes herdar uma vultosa fortuna. A fundação investe milhões de dólares anualmente no Brasil nesse tipo de ativismo.
Outras fontes de financiamento do progressismo são a Fundação MacArthur (sede em Chicago), a Fundação Rockefeller (sede em Nova York) e, em especial, a também novaiorquina fundação Open Society, do bilionário George Soros — que recebeu uma visita do ministro da Fazenda Fernando Haddad no mês passado. A Gazeta do Povo apurou que a Open Society investiu R$ 107 milhões em causas de esquerda no Brasil só em 2021.
Assim como no Brasil, nos Estados Unidos há uma tensão intergeracional interna à esquerda do país, que era mais liberal (a ponto de o termo se confundir com “progressista” só por lá) e está ficando mais socialista e identitária. A ascensão da Internet e das redes sociais intensificou alinhamentos políticos que cruzam fronteiras. Com o soft power dos EUA, que criaram ambas as tecnologias, não é surpresa que a esquerda/progressismo/socialismo, a grande tribo política preocupada com igualdade de resultados e com maior aversão às tradições locais, encontre-se dividida entre imitar e denunciar a si mesma.
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