As notícias sobre a decisão do ator Alain Delon pelo suicídio assistido são uma perturbadora chamada à reflexão. “Nunca gostei de envelhecer”, disse o ator em uma ocasião. Aos 86 anos, o “direito de partir com calma” faria da morte provocada “a coisa mais lógica e natural” a se fazer, na opinião do francês, que está longe de ser considerado um paciente terminal. As declarações recentes do filho mais novo, negando que o pai tenha intenção de colocar um fim à própria vida e pedindo que o deixem “viver em paz”, parecem reforçar a tese de que uma “nostalgia dos holofotes” tenha motivado o clima de despedida. De toda forma, Delon nos recordou a urgência de pensar sobre o que Albert Camus definiu como o único “problema filosófico verdadeiramente sério”: “julgar se a vida merece ou não ser vivida”.
A rejeição ao envelhecimento, a obsessão pela juventude eterna e por uma felicidade permanente parecem estar criando uma geração de adultos sem maturidade emocional, que confundem caprichos com direitos e têm aversão aos deveres. É o que evidencia o psicólogo argentino Sergio Sinay, em seu livro "A sociedade que não quer crescer". "Uma sociedade empenhada em permanecer adolescente vive no imediatismo, na fugacidade, na fuga das responsabilidades", diz.
O pretenso “dever da felicidade” constante é tema do ensaio "A Euforia Perpétua", do francês Pascal Bruckner. "A felicidade não é mais um acaso que nos acontece, um momento favorável em relação à monotonia dos dias”, assim como a infelicidade, já que ambas são naturais na vida humana, na visão do autor. Ainda assim, a civilização contemporânea fez da felicidade um programa de vida e acaba se sentindo infeliz justamente por causa disso.
"Se o caminho da reflexão e da intenção subjetiva não dá conta do desejo de reduzir o fardo de uma autoconsciência que pesa e faz sofrer, por que não tomar o atalho da intervenção objetiva por meio da manipulação tecnológica?", provoca Eduardo Gianetti da Fonseca, na obra de nome sugestivo "Felicidade". A reflexão sobre antidepressivos e drogas é facilmente aplicável ao extremo do suicídio assistido.
A promessa de qualidade de vida embutida inclusive no discurso transumanista (uma espécie de superação das limitações biológicas pela tecnologia) esconde em si um atentado à sacralidade da vida, aponta a ginecologista e obstetra Elizabeth Kipman, estudiosa da Bioética Personalista. “A população vai absorvendo esse discurso de empoderamento do indivíduo, sem saber as questões políticas que estão por trás. Vai absorvendo a ideia de um ‘paraíso terrestre’, sem perceber que será necessário eliminar quem não tem valor, como o doente e o idoso. Para chegar a isso, é preciso antes construir um consenso social, e é o que está acontecendo”, defende.
A ideia de “controle” da população pelo prazer já aparecia no “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, que pinta um “paraíso” sem laços familiares, responsabilidades e dor, inclusive com o auxílio de uma droga – o soma – para garantir o bem-estar livre de efeitos colaterais. Publicada em 1932, a obra parece uma profecia do ideal de muitos atualmente: “O mundo agora é estável. As pessoas são felizes, têm o que desejam e nunca desejam o que não podem ter. Sentem-se bem, estão em segurança; nunca adoecem; não têm medo da morte; vivem na ditosa ignorância da paixão e da velhice; não se acham sobrecarregadas de pais e mães; não têm esposas, nem filhos, nem amantes por quem possam sofrer emoções violentas; são condicionadas de tal modo que praticamente não podem deixar de se portar como devem. E se, por acaso, alguma coisa andar mal, há o soma”.
Com as infinitas possibilidades trazidas pela tecnologia, vieram as propostas sobre novas formas de morrer. E embora, no juramento de Hipócrates, todo médico profira ao final de sua formação que “Mesmo instado, não darei droga mortífera nem a aconselharei”, práticas como o suicídio assistido e a eutanásia oferecem auxílio – geralmente médico – para morrer. A diferença é que no primeiro o paciente administra a droga letal e no segundo é a equipe médica. Do ponto de vista moral, no entanto, não se diferenciam do suicídio comum, na opinião do médico oncologista e mestre em filosofia Franco Scariot, autor do livro “Questões éticas em pacientes terminais segundo o personalismo” (2021).
“Isso está na moda porque se inverteu a prioridade do valor. Antes era claro que o valor da vida era superior ao da liberdade, agora se inverte. Mas não tem argumentação lógica, porque, para ser livre, é preciso estar vivo. Sem contar que demonstra pouco conhecimento do conceito de liberdade, uma vez que não há liberdade plena, sempre se sofrem as contingências da vida”, recorda.
O dever das relações
Pensar a vida como direito ou como dever está no “x” da questão do suicídio, segundo o professor José Dias, membro do Programa de Pós-graduação em Filosofia, Mestrado e Doutorado da Unioeste Campus de Toledo. “Para a primeira concepção, não existem maiores problemas éticos envolvidos no suicídio, pois não somos obrigados a gozar de um direito, quando este se tornou um peso insuportável. Porém, para a segunda concepção, o suicídio apresenta sérios problemas éticos, pois, se a vida é considerada um ‘dever’ para os viventes, precisamos pôr na equação os direitos das outras partes envolvidas: família, amigos, sociedade”, pondera.
Scariot acrescenta que, além de contradizer uma tendência natural de luta pela sobrevivência, inerente a todo ser, o suicídio é imoral à medida que promove uma quebra de relações. “Estudos mostram que o homem é um ser social, um ser de relações, não é sozinho. O suicídio não tira só a vida da pessoa, mas quebra relações com família, amigos, é um ato egoísta em que a pessoa pensa em si, não em quem está deixando”, completa.
“O suicídio é uma resposta definitiva para um problema temporário”, diz a enfermeira Lidiane Melo, professora na pós-graduação em Suicidologia da Universidade Municipal de São Caetano do Sul, ao apontar que pelo menos dez pessoas são impactadas a cada caso. E é pensando nessas relações “quebradas” que os especialistas trabalham na posvenção, ou seja, na assistência a quem fica. “Os últimos dias dos sobreviventes enlutados por um suicídio são carregando a dor de alguém que viu no suicídio a saída para o sofrimento. Ele dá a impressão de que o problema está resolvido, mas gera um luto infinito, o enlutado não é o mesmo nunca mais”, lamenta.
O suicídio causa uma quebra irreparável nas relações, e é justamente nas relações humanas que se pode reencontrar o sentido da vida, assegura Elizabeth Kipman. “Me lembro de uma paciente com câncer de mama, que vivia sozinha, sem companheiro, um filho havia sido morto pelo tráfico e o outro, que ela amava muito, estava preso pelo mesmo motivo. Ela não queria fazer a cirurgia, era agressiva, xingava bastante”, conta. Tudo mudou quando uma psicóloga conseguiu que o filho dela tivesse uma permissão do presídio para ir ao hospital. “Foi muito emocionante. Ela descobriu que poderia oferecer o que estava passando por ele, e ele prometeu que se regeneraria por ela”, recorda.
Mais do que a dor física, reforça a médica, o que leva ao suicídio é a “dor da desesperança, do nada, do vazio”. “A pessoa humana existe para buscar um sentido além de si. Desistir da vida por não aguentar a dor pelo vazio interior ou a falta de horizonte não é realizar um sentido. Sempre é possível e necessário sair de si para a realização de algum valor”, opina a médica, evocando o neuropsiquiatra Viktor Frankl, pai da Logoterapia.
Sobrevivente de quatro campos de concentração, o austríaco dizia que toda pessoa pode descobrir o sentido da vida na realização de valores criativos, existenciais e de atitude. “Os primeiros acontecem quando você age, constrói, ama; os segundos estão ligados àquilo que recebe, ao amor, ao belo; mas o valor mais propriamente humano é o de atitude. Quando alguém é atingido por um sofrimento inevitável, como uma doença ou a morte de uma pessoa, é propriamente humano tomar uma atitude frente ao sofrimento”, resume Kipman.
Scariot acrescenta que praticamente a totalidade dos pacientes que pedem auxílio para morrer desiste quando o sofrimento é suprimido. “Como sociedade, deveríamos lutar para tratar o sofrimento, não para atender o pedido de suicídio com uma falsa justificativa humanitária”, defende. Assim, se do ponto de vista subjetivo é a angústia pela dor física ou emocional que quase sempre leva uma pessoa a tomar essa decisão, “grande parte da voluntariedade do ato” se perde já que há “uma coerção interna”, completa o médico.
Dignidade da pessoa
A dignidade da pessoa, expressa no direito a uma “morte digna e indolor”, está entre os principais argumentos dos pró-suicídio assistido. “Dignitas”, inclusive, é nome de uma sociedade suíça sem fins lucrativos que oferece alternativas para morrer.
“Princípio dos princípios” jurídicos, que fundamenta todos os direitos e a ética, a dignidade humana não está relacionada a qualquer condição externa ou utilidade da pessoa, recorda o professor José Dias. Nesse sentido, nem velhice nem enfermidade podem sequestrar o valor de alguém. “Sua dignidade (valor humano) ultrapassa sua situação física, cronológica ou mental, portanto, seja criança, jovem ou velho, saudável ou enfermo, todo indivíduo humano ‘é’ um valor absoluto: não tem preço, pois não pode ser substituído, é único. Em nenhuma circunstância histórica o indivíduo poderia perder sua dignidade, pois isso significaria deixar de ser humano, o que é impossível”, reforça.
A escolha fundamental pela vida em situações limitantes está longe de motivações religiosas. Recordista em longevidade entre os diagnosticados com Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), o físico Stephen Hawking, que morreu em 2018, aos 76 anos, é um bom exemplo disso. “Minhas expectativas foram reduzidas a zero quando eu tinha 21 anos. Tudo desde então tem sido um bônus”, afirmou em uma ocasião.
Com os músculos paralisados pela doença, Hawking – que se declarou ateu em diversas ocasiões – usava uma cadeira de rodas e se valia de um sintetizador de voz para se comunicar. “Eu tenho vivido com a perspectiva de morrer cedo nos últimos 49 anos. Não tenho medo da morte, mas não tenho pressa para morrer. Eu quero fazer muita coisa antes disso”, declarou o físico, considerado uma das mentes mais brilhantes da história.
Elizabeth Kipman recorda que o próprio Hawking via no transumanismo “um grande desastre”, um risco de desumanizar o homem. Nesse sentido, ela reforça a importância da aceitação da morte como uma “etapa natural” do ciclo da vida. “Trata-se de ir se preparando, aprendendo a enfrentar as coisas que nos acontecem, as desilusões, que são pequenas mortes que a vida nos ensina a viver. Porém, é completamente diferente agir para dominar a própria vida e a morte. O suicídio não é a realização de um valor, mesmo a partir de justificativas aparentemente boas. É uma ladeira de domínio, manipulação e sujeição, mesmo quando se advoga como liberdade conquistada”, defende.
Turismo da morte
Em março, o filho mais velho de Alain Delon afirmou à imprensa que o ator pedira ajuda para se submeter ao suicídio assistido em um futuro próximo. Delon chegou a postar um texto em tom de despedida em sua conta no Instagram. "Eu gostaria de agradecer a todos que me acompanharam ao longo dos anos e me deram grande apoio. Espero que os futuros atores possam encontrar em mim um exemplo não só no campo do trabalho, mas na vida cotidiana entre vitórias e derrotas.” A postagem foi apagada posteriormente.
Com uma das leis menos restritivas do mundo nesse âmbito, a Suíça – onde Delon mora e planejaria passar pelo suicídio assistido, o que foi negado na última sexta-feira (8) pelo caçula do ator – é destino de um estranho tipo de turismo, em que as pessoas pagam grandes quantias para tirar a própria vida. Sem exigência de que o candidato tenha uma doença terminal, a legislação abre precedentes para situações difíceis de explicar, como a de duas irmãs norte-americanas, de 54 e 49 anos, que desapareceram em fevereiro após viagem ao país.
Elas teriam enviado mensagens a familiares e amigos, que eles acreditam terem sido escritas por outras pessoas, um dia antes de morrer por suicídio assistido. “As duas senhoras americanas morreram em 11 de fevereiro”, disse o governo suíço, por meio de comunicado reproduzido pelo Daily Mail. Ambas profissionais da saúde, as irmãs eram saudáveis e não manifestaram anteriormente desejo pelo procedimento.
Um dos nomes mais conhecidos nesse “turismo da morte” suíço é Philip Nitschke. Conhecido como “Dr. Morte”, ele criou uma máquina suicida chamada Sarco (de sarcófago), que ganhou aprovação para ser usada no fim do ano passado. A invenção é uma espécie de cápsula feita em impressão em 3D, onde a pessoa morre poucos minutos após a liberação de um gás. Depois disso, o próprio invólucro se transforma em caixão.
Entre os países com legislações que permitem algum tipo de morte assistida estão Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Espanha, Áustria, Canadá, alguns estados dos Estados Unidos e Colômbia.
Como a eleição de Trump afeta Lula, STF e parceria com a China
Moraes não tem condições de julgar suposto plano golpista, diz Rogério Marinho
Policial federal preso diz que foi cooptado por agente da cúpula da Abin para espionar Lula
Rússia lança pela 1ª vez míssil balístico intercontinental contra a Ucrânia
Deixe sua opinião