O Arcebispo da Cantuária, chefe da Igreja Anglicana, Justin Welby, durante Encontro Mundial das Igrejas em Genebra, na Suíça, em 2018| Foto: Peter Williams/WCC
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Do altar, o padre Aldo Quintão tenta convencer os fiéis de que a Bíblia precisa ser atualizada: "Tem trechos na Bíblia em que o homem vai lá, ele pode transar com todas as empregadas dele. A mulher tem que aguentar, ficar calada e ficar com ele. Davi, que escreveu os Salmos, dizem que ele tinha mil”. Ele é corrigido por outro sacerdote, que assiste à celebração. É Salomão, e não Davi. O padre se desculpa.

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Mas o erro primário não parece constranger Quintão, que continua buscando demonstrar que o homossexualismo não é incompatível com a Bíblia, apesar dos trechos que proíbem a prática. “A gente tem que reler. Trazer para os dias de hoje”, ele acrescenta. Um ouvinte menos atento teria dificuldade de entender se o padre quer dizer que ambos (as relações homossexuais e a poligamia) são corretos ou se ambos são errados.

Dali alguns minutos, os fiéis vão formar uma fila para a comunhão. Um deles, de bermuda e uma camiseta do Nirvana.

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Enquanto o padre serve o pão e o vinho, uma dupla de afinados cantores entoa “Trem Bala”, da cantora Ana Vilela. É aquela música que repete um anglicismo uma dezena de vezes (“Não é sobre”/”É sobre” no sentido de “O que não importa/O que importa”). A canção não traz qualquer menção a Deus ou à Bíblia. A música final da celebração religiosa é “Come Fly With Me”, de Frank Sinatra, em que o eu-lírico fala em sair em lua de mel com a amada.

É 12 de fevereiro de 2023. Apenas mais um domingo na Catedral Anglicana de São Paulo.

Liberalismo crescente

A excentricidade do padre Quintão na verdade tem se tornado comum na Igreja Anglicana, que passou por um processo de politização (à esquerda) acentuado desde a metade do século 20.

É difícil separar a causa da consequência, mas o fato é que a Igreja também perdeu a maioria de seus fiéis de lá para cá. Entre 1983 e 2011, o número de ingleses que se identificam como anglicanos passou de 40% para 20%. A queda se acentuou na última década.

A Igreja de William Shakespeare, C.S. Lewis e Winston Churchill — e dos monarcas da Inglaterra — está irreconhecível.

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O último golpe na tradição foi a aceitação dos casais homossexuais. Em 9 de fevereiro, a Igreja aprovou uma proposta que permite a celebração de uniões entre pessoas do mesmo sexo — embora tenha evitado chamar a bênção de casamento, o que contradiria um dos 39 artigos fundamentais da igreja. Modificar esses artigos envolveria um processo mais longo e doloroso.

Na década de 1970, a igreja passou a ordenar mulheres como sacerdotes. Agora, está discutindo se deve usar linguagem neutra para se referir a Deus, em vez dos pronomes masculinos empregados pela Bíblia.

É difícil saber quando a teologia anglicana se tornou tão liberal. É fato que, no fim do século 19, o Darwinismo passou a ter uma grande influência na sociedade britânica (Charles Darwin era ele próprio um membro da igreja antes de perder a fé). Outros estudiosos atribuem o declínio ao trauma profundo da Segunda Guerra Mundial que, apesar da vitória dos aliados, cobrou um preço alto dos britânicos. O fato é que os dois processos (a liberalização e a perda de fiéis) não dão sinais de arrefecimento.

Na contramão

Ainda assim, há quem ainda lute para devolver a fé anglicana à sua posição histórica. Uma das vozes mais visíveis a favor é a de Calvin Robinson, um analista político conservador que foi ordenado diácono anglicano em 2020, quando já tinha mais de 30 anos de idade.

Robinson já foi entrevistado por figuras como Tucker Carlson, líder de audiência no canal Fox News, e recentemente participou de um debate na Universidade de Oxford.

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Depois de se formar em um seminário anglicano de Oxford, ele se candidatou a assumir uma paróquia na região de Londres, mas foi rejeitado por sua postura conservadora. Por isso, aderiu à Free Church of England, uma espécie de dissidência que segue os princípios anglicanos mas não responde à hierarquia da igreja, cujo líder maior é o Arcebispo de Cantuária.

A Igreja Anglicana surgiu em 1534, quando o rei Henrique VIII rompeu com a Igreja Católica e “nacionalizou” os templos na Inglaterra depois de ter negado o direito de se divorciar para se casar novamente. Ainda assim, a instituição sempre adotou posturas ortodoxas quanto à teologia e a moralidade bíblica (e até mesmo o divórcio). Mas, então, veio o século 20.

À Gazeta do Povo, Robinson afirma que a desfiguração da Igreja Anglicana se tornou visível em 1958, quando a Igreja Anglicana aceitou o uso de métodos contraceptivos. A situação se agravou, diz ele, com a ordenação de mulheres. “Esta foi um um afastamento em relação à Bíblia e resultou em uma grande quantidade de liberais infiltrando-se na Igreja, à medida que ela tentava alcançar uma uma proporção de 50%-50% em termos de sacerdotes homens e mulheres”, ele explica.

Na opinião dele, a Igreja precisa retomar a sua tradição se quiser parar de encolher. “Se a Igreja Anglicana quiser parar de perder membros, ela deve retornar à doutrina Uma igreja sem autoridade é uma igreja sem disciplina”, diz. Robinson está convencido de que a Igreja Anglicana não deve tentar se adaptar à cultura do momento: “A Igreja de Cristo é contracultural porque Cristo foi contracultural. Ele nos disse para estar no mundo, mas não ser do mundo. “

Dissidentes insatisfeitos

Embora tenha nascido na Inglaterra e carregue essa herança no próprio nome, a Igreja Anglicana é hoje mais internacional do que nunca. Em 1900, 82% dos anglicanos estavam no Reino Unido. Já em 2005, a África havia passado a ter a maioria dos membros da igreja. Apenas 33% deles eram britânicos. E nem todos os bispos ao redor do planeta estão satisfeitos com a postura liberal do “Vaticano inglês”, sediado em Cantuária.

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Neste mês, líderes de países como Quênia, Uganda, Chile e Bangladesh vieram a público rejeitar a aprovação das uniões entre pessoas do mesmo sexo e ameaçam romper com o arcebispo de Cantuária, o reverendo Justin Welby.

Assim como a igreja no Reino Unido, no Canadá e nos Estados Unidos, a Igreja Episcopal Anglicana do Brasil adotou o lado mais progressista da disputa. Aliás, o liberalismo da igreja já havia causado um cisma na década retrasada.

Secessão no Brasil

Os anglicanos brasileiros tiveram o próprio cisma em 2005. Alguns bispos deixaram a igreja ligada a Cantuária por não concordarem com a flexibilização da doutrina no campo da sexualidade — dentre outras coisas. Hoje, eles fazem parte da Igreja Anglicana no Brasil (sem o “Episcopal” no nome), que adota uma postura firme contra o aborto e a ideologia de gênero.

Em entrevista à Gazeta do Povo, o bispo Márcio Simões, responsável pela região de Curitiba afirmou que o tema do homossexualismo é apenas o “topo do iceberg". Ele explica: “A questão é o liberalismo teológico e o revisionismo bíblico como um de seus filhos.” Embora admita que fosse mais fácil criar uma nova denominação que não fosse anglicana, ele diz que “não tem sentido a maioria sair e deixar uma minoria negar as Escrituras Sagradas.”

Simões, que recentemente batizou um grupo de refugiados oriundos de países islâmicos, diz que a sua denominação tem crescido sobretudo entre os jovens, ao passo que os ramos mais liberais do anglicanismo decaem. “A comunhão dificilmente voltará a ser a que já foi um dia. A quebra de comunhão é inevitável devido ao liberalismo teológico, especialmente nos Estados Unidos, Canadá, Inglaterra e Brasil”, analisa.

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O Padre Aldo Quintão não parece preocupado com a crise global da Igreja Anglicana. Vaidoso, ele exibe no site da Catedral Anglicana de São Paulo fotos e vídeos com famosos como Silvio Santos, a atriz Paloma Duarte e o cantor Paulo Ricardo. Por ter uma postura mais flexível com pessoas divorciadas (e, mais recentemente, homossexuais), os anglicanos brasileiros sempre foram procurados por famosos que buscavam se casar pela segunda (ou terceira vez). Dentre eles, Pelé, que firmou sua união com Assíria Nascimento em um templo anglicano.

Já no Reino Unido, apesar de estar ciente de que o prognóstico para os anglicanos não é dos melhores, Robinson não pensa em se juntar aos católicos romanos, aos ortodoxos ou a outra igreja protestante. Por quê? Porque ele é inglês. “O anglicanismo é a expressão inglesa da fé una, santa, católica e apostólica. Eu amo meus irmãos ortodoxos e católicos, mas não vejo a necessidade de me afastar da tradição em que nasci.”

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]