Na abertura da temporada 2020 da Fórmula 1, no primeiro fim-de-semana de julho, na Áustria, a equipe Mercedes apresenta o primeiro carro inteiramente pintado de preto de sua história. É uma ação inédita, para uma equipe que participa da competição desde a década de 1950. “Desejamos usar nossa voz e nossa plataforma global para defender o respeito e a igualdade, e a Flecha de Prata correrá de preto durante toda a temporada 2020 para mostrar nosso compromisso com uma maior diversidade dentro de nossa equipe e esporte”, declarou o chefe da Mercedes, o austríaco Toto Wolff, fazendo referência à cor prata característica dos carros da equipe.
A flecha de prata, aliás, tornou-se um ícone ainda na década de 1930, quando a equipe liderava, em disputa acirrada contra os rivais da Auto Union, a principal competição automobilística do continente na época, o Campeonato Europeu de Pilotos. Tanto a Auto Union quanto a Mercedes eram abertamente financiadas pelo governo nazista.
“Alguns comerciantes resistiram às demandas do regime nazista; outros, como Oskar Schindler, protegeram judeus; alguns até mesmo se aliaram a grupos secretos antinazistas. Mas eles eram minoria”, afirma o pesquisador americano S. Jonathan Wiesen, professor de história da Europa moderna na Universidade do Alabama, no artigo German Industry and the Third Reich. “A maioria se movimentou baseada na ganância, que levou muitos ‘homens de negócio apolíticos’ a engajar suas empresas em condutas odiosas”.
Foi só a partir da unificação da Alemanha e do fim da guerra fria, prossegue o historiador, é que a maior parte das empresas passou a abrir seus artigos, e até mesmo a contratar especialistas pagos para documentar momentos obscuros do passado. “Uma boa dose de cálculo político -- e até mesmo desespero -- motivou muitas dessas empresas”, escreveu. “Transparência parece uma boa política de relações públicas quando sua empresa é processada por pessoas que haviam sido mantidas como trabalhadoras forçadas”.
Entenda agora como a Mercedes-Benz e outras quatro empresas alemãs se beneficiaram da proximidade com o regime liderado por Adolf Hitler.
Mercedes-Benz
- Origem: Stuttgart, 1926
- Como colaborou: A empresa mantém, em seu site em inglês, um texto a respeito de sua relação com o governo alemão da época. A página informa: “A partir de 1937, a Daimler-Benz AG aumentou progressivamente a produção de equipamentos e veículos militares, que responderam por uma parcela cada vez maior dos lucros da companhia durante a guerra”.
- Como foi beneficiada: “A empresa usou trabalho forçado. Prisioneiros de guerra e detentos de campos de concentração eram abrigados perto das unidades da companhia”, a empresa admite. O texto oficial ainda informa: “Em 1944, quase metade dos 63.610 empregados da companhia eram presos de guerra ou detentos de campo de concentração”.
- O que fez para remediar depois da guerra: Logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, a empresa confessou que havia utilizado de trabalho forçado. Décadas depois, participou da Iniciativa da Fundação Alemã para a Economia, que previa uma série de ações de reparação, incluindo suporte para os antigos empregados.
Bayer
- Origem: Barmen, 1863
- Como colaborou: Como membro do grupo de indústrias químicas IG Farben, a empresa desenvolveu e passou a fabricar em larga escala o gás Zyklon B, utilizado nas câmaras de gás dos campos de concentração.
- Como foi beneficiada: A fábrica construída nos arredores de Auschwitz tinha acesso a judeus presos, não só como funcionários, mas também, supostamente, como cobaias no desenvolvimento de produtos químicos.
- O que fez para remediar depois da guerra: A IG Farben foi desmembrada ao fim da guerra, e muitos de seus gestores presos. Mas o diretor das operações do grupo em Auschwitz, Fritz ter Meer, assumiu a presidência da Bayer. Apenas em 1995 a empresa se desculpou publicamente por sua parceria com o nazismo.
Siemens
- Origem: Berlim, 1847
- Como colaborou: Forneceu equipamentos elétricos – e mão-de-obra especializada – para a construção e a manutenção dos campos de concentração. Também fabricou telefones, rádios e telégrafos e componentes para motores de aviões.
- Como foi beneficiada: Assim como a Mercedes, a empresa manteve fábricas próximas a campos de concentração, a fim de se utilizar dessa mão-de-obra forçada.
- O que fez para remediar depois da guerra: Atualmente, mantém em sua página oficial em inglês um texto que revê esse momento do passado. A companhia admite que se utilizou de 80 mil trabalhadores forçados, mas alega: “Carl Friedrich von Siemens, líder da empresa entre 1933 e 1941, detestava a ditadura nazista, mas era responsável por manter o bem estar e a continuidade da existência da companhia”.
Volkswagen
- Origem: Wolfsburg, 1937
- Como colaborou: Construindo uma linha de carros populares sob medida para as intenções do governo alemão, além de veículos leves para deslocamento de tropas, em especial o Volkswagen Kübelwagen. A empresa também bancou a construção do campo de concentração de Arbeitsdorf.
- Como foi beneficiada: A própria origem da marca foi resultado de uma parceria firmada em 1934 entre Ferdinand Porsche e Adolf Hitler, que propôs a criação de um carro popular em forma de besouro – o Fusca. Ligado a Heinrich Himmler, líder da SS nazista, Ferdinand Porsche não encontrou dificuldades em utilizar escravos judeus nas fábricas, tanto da Porsche quanto da Volkswagen.
- O que fez para remediar depois da guerra: Em 1998, criou um fundo voluntário para bancar as solicitações judiciais dos mais de 15 mil trabalhadores forçados utilizados pela empresa. A companhia mantém, em seu site oficial em inglês, uma linha do tempo das ações corporativas durante o regime nazista.
Hugo Boss
- Origem: Metzingen, 1924
- Como colaborou: Em meados dos anos 1930, a companhia fechou contrato com a SS e a Juventude Hitlerista para desenhar e confeccionar uniformes, o que multiplicou por cinco os lucros da empresa. O próprio Hugo Boss era membro do Partido Nazista desde 1931, número de filiação 508.889.
- Como foi beneficiada: É mais um caso de empresa que se utilizou de mão-de-obra forçada dos campos de concentração e de prisioneiros.
- O que fez para remediar depois da guerra: Classificado como ativista do nazismo, Hugo Boss foi impedido de controlar sua própria empresa. Morreu em 1948. Seu genro, Eugen Holy, assumiu a companhia, que, em 2011, lançou um livro em alemão sobre o passado do fundador.
- O que foi o projeto Aktion T4, que matou 300 mil crianças e adolescentes
- O que é objeção de consciência e como ela ajudou a enfrentar grandes injustiças
- “O Contador de Auschwitz” joga luz sobre a banalidade do mal
- “Uma Vida Oculta” mostra a coragem de um homem comum contra o nazismo
- Conheça o “Strasserismo”, a vertente mais socialista do nazismo
- Os alemães que resistiram ao nazismo e acabaram punidos por Hitler