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Os nazistas contaram com uma ajuda insuspeita na tarefa de catalogar os inimigos do Estado: a americana IBM, maior empresa de tecnologia do século XX, desempenhou um papel fundamental para a identificação dos judeus que seriam perseguidos e exterminados por Adolf Hitler durante o Terceiro Reich.
A empresa não só foi responsável por fornecer listas de judeus e seus descendentes, com base nos censos que realizava, como empregou as técnicas de dados disponíveis à época para catalogar quase tudo, desde estoques de alimentos em toda a Alemanha e suas áreas ocupadas, e até informações pessoais sobre os prisioneiros nos campos de concentração.
“A menos que entendamos como os nazistas adquiriram os nomes [dos judeus], mais listas serão compiladas contra mais pessoas. Somente expondo e examinando o que realmente ocorreu, o mundo da tecnologia finalmente poderá adotar o velho lema: nunca mais”, escreveu o jornalista norte-americano Edwin Black no livro ‘IBM e o Holocausto’, lançado em 2001.
Black, de 73 anos, cujos pais sobreviveram ao fugir dos horrores do Holocausto, alerta para os perigos da organização massiva de informações, ferramenta que emergiu discretamente de modo que a humanidade nem chegou a perceber que se tornava um “meio de controle social, uma arma de guerra e um roteiro para a destruição”.
Assim como outros de sua geração, Black afirma ter ficado extasiado com a Era da Computação e da Informação e todas as suas possibilidades. Mas os mais de 20 mil documentos mostrando a cumplicidade entre uma das maiores empresas de tecnologia do mundo e o genocídio de seis milhões de judeus, fizeram com que mudasse de ideia.
Perguntas simples
Tudo começou em 1993, nove anos antes do lançamento do livro, em uma visita que o jornalista fez com seus pais ao Museu Memorial do Holocausto dos EUA. Ele se deparou com uma máquina classificadora de cartões Hollerith D-11 da IBM.
A exposição ia pouco além de explicar que a empresa tinha sido responsável por organizar o censo de 1933, no qual os judeus foram primeiramente identificados. Após ficar parado por quase uma hora diante do artefato, o autor percebeu que havia algo mais a ser entendido.
Foi então que, a partir de perguntas simples, iniciou o seu trabalho.
Como os nazistas obtiveram os nomes de seus pais?
Como conseguiram saber de antemão, em todos os países ocupados, os nomes e os endereços de todos os judeus?
Como puderam identificar de forma tão eficiente todos aqueles que queriam destruir?
Como sabiam as profissões de todos eles, onde trabalhavam, quantos filhos tinham?
Como descobriram que uma determinada mulher era judia?
Como identificaram que aquele homem tinha um bisavô judeu?
Como era possível haver listas de pessoas que eram "um quarto judias", "um oitavo judias" e que tinham "1/16 de ascendência judaica"?
Hoje, essas respostas são fáceis de se encontrar. Para os cidadãos comuns e até mesmo uma criança ou adolescente, basta realizar uma busca na internet ou nas redes sociais. Imagine, então, o que é possível ser feito por serviços de inteligência e as grandes empresas de tecnologia, para as quais as pessoas, voluntariamente, entregam uma enxurrada de dados a cada dia.
Mas naquela época essas ainda eram informações privilegiadas e a IBM as detinha. O embrião da empresa que viria a se tornar a International Business Machine foi fundada em 1896 nos Estados Unidos pelo inventor alemão Herman Hollerith para tabulação de censos geográficos.
Em 1933, ano em que Hitler ascendeu ao poder, a sucursal alemã da empresa foi responsável por realizar o censo na Alemanha. E foi aí que teve início o que o autor chama de "aliança tecnológica e filosófica com o Terceiro Reich". Sua lógica é simples: somente depois de identificar os judeus, o governo poderia confiscar seus ativos, segregá-los em guetos, deportá-los para campos de concentração e exterminá-los.
Identificação automatizada
E é nesse ponto que começa a divergência frontal de Black e de sua obra frente ao discurso oficial sobre o rastreamento dos judeus pelo nazismo até então. A Enciclopédia do Holocausto, por exemplo, afirma que o governo alemão revirou registros comunitários, religiosos, policiais e governamentais em busca dos dados sobre os judeus, além de contar com delações da própria sociedade alemã.
Black afirma que, à época, esse era um trabalho monumental, já que não existiam computadores para realizá-lo. Em termos de comparação, a equipe que trabalhou na pesquisa do livro foi formada por mais 100 pesquisadores, estudantes, descendentes e sobreviventes do Holocausto, bem como arquivistas e historiadores profissionais em diversos países.
Com os avanços computacionais já disponíveis na década de 90, todo o time reunido por Black levou anos para compilar e organizar os mais de 20 mil documentos que possibilitaram a reconstrução do quebra-cabeças sobre a parceria entre a IBM e a Alemanha nazista.
Imagine o que não significaria para o Terceiro Reich recolher, organizar, compilar e verificar todas essas informações para, então, ir em busca dos seis milhões de judeus que foram espoliados de tudo o que tinham, escravizados e assassinados?
A IBM, no entanto, possuía uma tecnologia, precursora dos computadores atuais, que era capaz de fazer o que o regime nazista queria: o sistema de classificação de cartões e os cartões perfurados.
Essa tecnologia foi criada por Hollerith em 1888 por meio de um concurso para agilizar a leitura de dados realizado pelo censo norte-americano. A invenção reduzia o tempo de leitura e processamento das informações de forma assombrosa.
Segundo Black, ao firmar sua parceria com o regime nazista a IBM alemã fez com que as práticas de censo e registro assumissem uma nova missão. “A IBM Alemanha, conhecida naqueles dias como Deutsche Hollerith Maschinen Gesellschaft [Empresa de Máquinas Alemãs Hollerith em livre tradução] ou Dehomag, inventou o censo racial - listando não apenas a filiação religiosa, mas a linhagem que remonta a gerações. Essa foi a luxúria de dados nazista. Não apenas para contar os judeus, mas para identificá-los”, descreve em seu livro.
Ética x Eficiência corporativa
À época, a IBM defendia o mantra corporativo de que, se puder ser feito, deve ser feito. E, para tanto, o autor defende que, a partir de ordens da sede da empresa nos EUA, a Dehomag e outras subsidiárias europeias desenvolveram as mais diversas aplicações sob medida para o governo alemão.
A partir da compreensão de que a IBM sempre se apresentou como uma fornecedora de soluções, o autor descreve que a empresa acumulou sua fortuna e reputação ao “antecipar as necessidades governamentais e corporativas antes mesmo de se desenvolverem”. Esse olhar visionário propiciava à IBM “oferecer, projetar e entregar produtos e soluções customizadas” a seus clientes.
Os técnicos da IBM, por exemplo, enviavam maquetes de cartões perfurados para os escritórios do Reich até que as colunas de dados fossem aceitáveis, como qualquer programador ou engenheiro de software faria hoje. E a empresa detinha o monopólio de produção, uso e manutenção das máquinas e cartões.
“As máquinas não foram vendidas, foram alugadas e mantidas e atualizadas regularmente por apenas uma fonte: a IBM. As subsidiárias da IBM treinaram os oficiais nazistas e seus substitutos em toda a Europa, estabeleceram filiais e concessionárias locais em toda a Europa nazista, mantidas por um fluxo constante de funcionários da IBM, e vasculharam fábricas de papel para produzir até 1,5 bilhão de cartões perfurados por ano somente na Alemanha”, afirma em seu livro.
As pesquisas de Black mostram que a empresa fazia reparos mensais nas máquinas, inclusive naquelas que ficavam nos campos de concentração, onde foram utilizadas para registrar os dados dos prisioneiros. De acordo com Black, tamanha proximidade joga por terra possíveis argumentos de que a IBM não tinha conhecimento das práticas de extermínio do Terceiro Reich.
Sobre essa questão, o autor é taxativo em afirmar que a empresa sabia do que estava ocorrendo. Em entrevista à agência de notícias Reuters quando o livro foi lançado, Black disse "uma pequena garota escondida num sótão na Holanda sabia, pelo rádio, do assassinato de judeus em câmaras de gás em 1942", referindo-se aos diários de Anne Frank e à impossibilidade de que a IBM desconhecesse as atrocidades que o regime nazista praticava.
Arquivos encontrados pela equipe de Black revelam que funcionários da IBM em Nova York, incluindo os representantes pessoais de Thomas Watson, o CEO da empresa à época, iam constantemente a Berlim e Genebra. Eles monitoravam as atividades para garantir que os lucros da sede em Nova York não fossem cortados e evitar que oportunidades de negócios com o regime nazista fossem perdidas.
“Em Berlim, a sede da IBM Alemanha mantinha duplicatas de muitos livros de códigos, tanto quanto qualquer agência de serviços da IBM hoje mantém backups de dados para computadores", descreve no livro.
Quando a legislação dos EUA proibiu as empresas norte-americanas de fazerem negócios com o Terceiro Reich, as atividades de supervisão foram transferidas para a sucursal da IBM na Suíça, que seguiu dando cobertura e informações ao escritório de Nova York.
Ainda que a empresa tenha colaborado diretamente com as práticas do regime nazista, o autor concluiu que o Holocausto teria ocorrido mesmo sem a IBM.
“Pensar o contrário é mais do que errado. O Holocausto teria ocorrido - e frequentemente ocorreu - com simples balas, marchas da morte e massacres baseados em perseguições de papel e caneta. Mas há motivos para examinar os números fantásticos que Hitler alcançou ao assassinar tantos milhões tão rapidamente e identificar o papel crucial da automação e da tecnologia. É necessário reconhecer as responsabilidades.”
Em nota divulgada na época do lançamento do livro, a IBM afirmou repudiar as “horrendas atrocidades cometidas pelo regime nazista”. A empresa ainda informou que havia perdido o controle de seus negócios na Alemanha no período da guerra e que, portanto, tinha poucas informações sobre o período. Em relação às máquinas Hollerith, a empresa disse que eram conhecidas e utilizadas por diversas instituições e governos, incluindo o alemão, desde 1910.