Colin Kaepernick nasceu no estado do Wisconsin, em 1987, e não chegou a conhecer o pai. Sem condições de criar o filho, sua mãe biológica colocou o bebê para adoção, e Colin foi adotado por um casal local, Rick e Teresa Kaepernick.
Com dois irmãos brancos, Kyle e Devon, Kaepernick cresceu na Califórnia com sua nova família, e logo se revelou um aluno de alto desempenho e astro esportivo em três modalidades diferentes (basquete, beisebol e futebol americano). Colin optou pela bola oval e seguiu para Universidade de Nevada e, após quatro anos, foi escolhido pelo San Francisco 49ers no draft de 2011.
Após passar uma temporada na reserva em um dos melhores times da NFL, Kaepernick assumiu o posto de titular devido a uma lesão sofrida pelo então QB da equipe, Alex Smith. Com San Francisco sendo um dos grandes favoritos da liga e Smith vindo em grande fase, torcedores e imprensa logo começaram a levantar dúvidas sobre se aquele reserva sem qualquer experiência seria capaz de manter o nível da equipe. Colin respondeu dentro de campo e, mesmo após o retorno de lesão de Alex Smith, o 49ers optou por mantê-lo como titular.
No final daquela temporada, Colin parou a apenas 5 jardas, algo como 4,5m, do título da NFL. No ano seguinte, em 2013, Colin não chegou a grande decisão, mas mais uma vez ajudou o San Francisco a ser um dos melhores times da liga, assinando um contrato de mais de U$ 120 milhões. Mas foi aí que as coisas começaram a dar errado.
O começo do fim
Com uma troca no comando técnico, em pouco tempo, San Francisco passou de uma das franquias mais admiradas da liga para um dos piores times da NFL. O peso, claro, recaiu sobre o quarterback: em 2015, em meio as más atuações e uma lesão no ombro, Colin acabou indo para o banco de reservas – ali e se tornou o centro das atenções.
Kaepernick não era estranho ao preconceito, afinal, era o filho adotivo negro de uma família branca. Mesmo quando era uma estrela em seu auge na NFL, criou-se uma polêmica na mídia esportiva conservadora em torno das tatuagens que cobrem seus braços, com David Whitley, da publicação Sporting News, escrevendo que “você não quer o seu quarterback parecendo que acabou de sair da condicional”, em clara referência à aparência de Colin.
Mas depois de uma intertemporada na qual Kaepernick se dedicou a fazer mais serviços sociais na sua comunidade e a reação a uma série de homicídios de negros na sociedade americana ganhou força no cenário nacional, durante um jogo da pré temporada de 2016, no momento que ambos os times se levantam para a execução do hino norte americano, Kaepernick decidiu permanecer sentado no banco de reservas.
“Não vou me levantar para mostrar orgulho por uma bandeira de um país que oprime pessoas negras e pessoas de cor. Para mim, isso é maior do que o futebol americano e seria egoísta da minha parte fingir que não estou vendo”, disse em entrevista após a partida.
O gesto de Kaepernick gerou todo tipo de reações: muitos o acusavam de desrespeitar a bandeira e os militares americanos, de ser um traidor da pátria – não muito diferente das reações a Jackie Robinson se tornar o primeiro negro a jogar em uma liga de brancos, Bill Russell iniciar uma escolinha de basquete em Boston que não separava entre brancos e negros, ou mesmo Muhammad Ali se recusando a ir para a guerra do Vietnã.
Mesmo assim, outros jogadores da NFL, ainda que em menor número, começaram a seguir o exemplo e sentar durante o hino, e até outras figuras importantes, como a jogadora de futebol Megan Rapinoe, protestaram durante a execução de hinos para atrair mais atenção para a desigualdade social dos EUA.
Uma pequena mudança
Kaepernick eventualmente mudou sua forma de protesto depois de conversar com o jogador do Seattle Seahawks e veterano do exército, Nate Boyer. Boyer tinha escrito uma carta aberta após o protesto de Kaepernick, não criticando sua causa, mas ilustrando como seu método, de sentar durante o hino, tinha lhe causado dor e, no processo, feito Boyer não enxergar a verdadeira mensagem do protesto.
A mensagem de empatia e compreensão de Boyer também atingiu Kaepernick, que foi atrás do ex-boina verde para entender o outro lado da história. Depois de conversar com Boyer, Colin decidiu se alinhar com o resto do time durante o hino e se ajoelhar ao invés de sentar.
“Durante um funeral militar”, Boyer contou a Kaepernick, “a bandeira que cobre o caixão é entregue para a família do falecido por um oficial de joelhos”. Então Kaepernick e Boyer, juntos, concluíram que ajoelhar seria uma forma de protesto que também mostraria respeito pelos veteranos militares, muitos dos quais declararam apoio à atitude de Kaepernick – inclusive o próprio Boyer.
“Amo a América. Amo suas pessoas. E é por isso que eu estou fazendo isso. Quero fazer da América um lugar melhor. Acredito que ter essas conversas ajuda todo mundo a entender a situação das outras pessoas“, disse Kaepernick ao New York Times.
Durante a temporada 2016, Kaepernick continuou sendo a figura mais polarizadora da NFL. Mas após mais um ano péssimo de sua equipe, não fazia mais sentido para a franquia continuar pagando seu salário, nem para Kaepernick continuar na franquia que não o queria para o futuro. Então de comum acordo, Colin acionou uma cláusula de seu contrato para encerrá-lo ao final da temporada 2016. E, desde então, ele está desempregado.
Colin Kaepernick fora da NFL
A intertemporada de 2016 foi passando. Quando os times começaram a treinar e se preparar para o início do ano, um fato começou a gerar inquietação: Colin Kaepernick não tinha sido contratado por nenhuma franquia.
Logo o argumento que tomou conta da liga era de que o motivo de Kaepernick estar desempregado não tinha relação com seu desempenho, mas sim com seus protestos. Mas como um contraponto à crescente ideia de que Colin Kaepernick ainda não tinha encontrado um time devido às repercussões raciais de seus protestos, algumas pessoas afirmavam que o desemprego do ex-astro do 49ers era por ele não ser bom o suficiente como quarterback, e que ele estava fora da liga simplesmente porque perdeu lugar para jogadores melhores.
Esse argumento, no entanto, não é sustentável. O histórico de sucesso de Kaepernick já deveria ser suficiente para garantir uma chance: quarterback é uma posição em escassez e de extrema importância no futebol americano, e isso leva times a continuarem dando novas chances a jogadores como Mark Sanchez, Ryan Fitzpatrick, Matt Leinart, Vince Young, Josh Freeman, entre tantos outros. Jogadores comprovadamente ruins, mas que em algum momento mostraram flashes de competência.
Considerando essa tendência comum e que jogadores muito inferiores receberam o benefício da dúvida por muito menos, a ideia de que um quarterback ainda jovem (29 anos), que durante seus dois primeiros anos na liga foi um dos melhores na posição, não estaria recebendo a mesma oportunidade apenas por causa de suas performances em campo é absurda.
Outro argumento é de que durante seus anos de ouro em San Francisco (2012-2013) o sucesso e as atuações de Kaepernick foram beneficiadas por atuar em uma situação extremamente favorável: Colin é um jogador com dificuldades de lidar com a pressão defensiva adversária e cujas leituras não são refinadas, então o 49ers de realmente potencializou suas melhores características e ocultou suas fraquezas.
Em contraponto, nomes como Joe Flacco, campeão da NFL em 2012 (ironicamente, vencendo Colin), também viveram situações favoráveis – Flacco, porém, quando deixou ela, se tornou um dos piores QBs de toda a NFL: apenas quatro quarterbacks tem jardas por passe ajustadas pior que Flacco nos dois últimos anos, e apenas seis lançaram mais interceptações – Kaepernick não é um deles.
Analistas também buscaram entender se Kaepernick estava fora da NFL por causa de sua falta de qualidade. Bill Barnwell, um dos principais estudiosos sobre futebol americano e colunista da ESPN, escreveu a respeito.
“Não existe precedente dentro de campo para alguém como Kaepernick continuar sem uma oferta de emprego depois de ser um atleta tão regular. Os motivos que o mantém desempregado só podem estar fora de campo. E mesmo estes estão cheios de furos”.
Kyle Wagner, do site FiveThirtyEight, concorda com esse ponto: “Nenhum quarterback acima da média ficou por tanto tempo desempregado como Colin Kaepernick ”.
Dentro de campo
Esse sentimento também encontrou cada vez mais eco dentro dos jogadores da própria NFL. Richard Sherman, cornerback estrela do Seattle Seahawks e antigo rival de Kaepernick, disse ao USA Today que a questão “não trata de futebol americano, e não trata de cor. Se trata de ‘cara, fique no seu canto’. Ele é um bom jogador de futebol. Pode não ser o melhor, mas é melhor do que muitos desses que estão jogando hoje”. Seu técnico, Pete Carroll, um dos mais respeitados da liga, corroborou as declarações de sua estrela dizendo que Kaepernick é um jogador de “nível titular” na NFL.
Duas outras vozes poderosas e se juntaram ao coro de jogadores em defesa de Kaepernick: Aaron Rodgers e Tom Brady, indiscutivelmente os dois melhores quarterbacks da atualidade.
“Espero que Kaepernick volte à NFL. Sempre assisti e admirei seu jogo, a forma como ele jogava. Ele veio ao nosso estádio e nos venceu, e levou seu time ao Super Bowl. Ele teve grandes conquistas como jogador. E é certamente qualificado”, disse Tom Brady em entrevista à CBS.
Já Rodgers, em entrevista com à ESPN, classificou como “ignorante” afirmar que a postura social de Colin não tem um papel determinante na falta de oportunidades: “Acho que ele deveria estar em um elenco hoje. E por causa dos protestos, ele não está”.
Uma nova desculpa
Com o tempo, outra palavra que passou aparecer muito nos debates foi “distração”. O debate passou a ser menos sobre “Kaep não é bom o bastante para a NFL”, o que factualmente é absurdo; a discussão passou a girar em torno da distração que ele representaria dentro do vestiário - um risco que as franquias não estariam dispostas a assumir.
Embora isso esteja provavelmente mais próximo da verdade e tenha um componente subjetivo que seja difícil de quantificar, também é um argumento que gera estranheza. Times certamente não parecem estar preocupados com as “distrações” causadas por jogadores que se envolvem em incidentes de violência doméstica, como foi o caso do New York Giants em 2015, que deu uma extensão contratual para seu kicker Josh Brown apesar de ter precisado usar os seguranças oficiais da liga para impedir que ele espancasse sua esposa.
Tampouco parecem importar as distrações causadas por prisões ou agressões fora de campo: Geno Smith, que perdeu parte da temporada 2015 por causa de uma mandíbula quebrada durante uma briga dentro do vestiário e é um dos piores QBs da liga, ganhou US$ 2 milhões para ser um reserva. E embora tenha gerado todo tipo de debate na mídia e reclamação dos fãs, “distrações” não impediram times de mostrar interesse por Michael Vick, quando o mesmo saiu da cadeia depois de passar dois anos preso por se envolver com a organização de brigas de cachorro.
O legado
Estranhamente, é possível argumentar que o impacto de Kaepernick e o protesto por ele iniciado é muito maior hoje com sua ausência dos campos do que seria se ele lá estivesse: ele pode ter iniciado o movimento da NFL, mas logo ficou claro que a causa não está mais restrita.
Outros jogadores, como Michael Bennett, do Seattle Seahwaks, e Eric Reid, seu companheiro no 49ers, continuaram se ajoelhando. Ao invés de sua presença se destacar em um time, sua ausência se destacava em 32, e só adicionou mais força ao movimento: Kaepernick deixou de ser um jogador dissidente e começou a se tornar um ícone.
E embora as manifestações fossem lentamente ganhando mais força no começo do ano, a situação atingiu outro nível graças às críticas do presidente americano, Donald Trump. Durante um comício em Alabama e em um momento que o presidente republicano busca se conectar com sua base eleitoral, Trump deu declarações bastante fortes a respeito dos protestos da NFL, chamando os jogadores que se ajoelhavam (e em especial Kaepernick) de “filhos da p***” e declarando que eles deveriam ser demitidos da liga.
Uma declaração interessante de um presidente que recebeu doações de pelo menos sete donos de times da NFL. O tiro, porém, saiu pela culatra: declarações da própria NFL, do sindicato dos jogadores e das franquias da liga mostraram apoio aos jogadores.
O Jaguars, primeira equipe a entrar em campo na rodada do último domingo (24), viu seu time – bem como seu dono, Shahid Khan, que doou US$ 1 milhão para Donald Trump – se manter de braços dados durante a execução do hino. Três times (Steelers, Titans e Seahawks), optaram por não subir a campo para execução do hino, ficando nos vestiários.
Um dos momentos mais contundentes, porém, aconteceu na última partida da rodada, na noite de segunda-feira (25): o Dallas Cowboys e seu dono, Jerry Jones – notório apoiador de Trump – entraram em campo e, antes à execução do hino, se ajoelharam todos de braços dados, se levantando durante a execução do hino.
As reações negativas também vieram. Allejandro Villanueva, o único jogador do Steelers a subir para campo durante a execução do hino, se tornou da noite para o dia a camisa mais vendida da rodada na loja da NFL. Mas o próprio Villanueva viria a público no dia seguinte se desculpar e declarar seu apoio àqueles que protestaram.
Apoio
Os protestos contínuos e a atitude dos times, donos e jogadores ao redor da liga atraíram mais críticas e ameaças do presidente norte-americano, mas a NFL sustentou sua mensagem de apoio. Nenhuma multa ou punição foi aplicada aos jogadores que aderiram aos protestos, e a liga continua apoiando as manifestações de seus atletas.
“O presidente deveria saber que isso que é a verdadeira conversa de vestiário”, declarou o porta-voz da NFL, Joe Lockhart. Trump então tocou em um ponto que muitos dos críticos dos protestos adoram citar: a queda de audiência da NFL em 2016, que coincidiu com o início dos protestos de jogadores durante o hino.
E se de um lado há o argumento de que os protestos teriam ofendido o público, a NFL defende que a queda de audiência se deve principalmente a uma eleição extremamente polarizada. Mas mesmo que ainda seja uma amostra pequena, a semana em que os atletas responderam a Trump mostra que os protestos podem não ter relação com a queda de audiência: foi a primeira vez em 2017 que a NFL registrou um aumento na audiência. Aumentos na audiência, aliás, também foram registrados não só durante transmissão dos jogos, mas também em programas esportivos antes e depois das partidas.
Os ataques de Trump podem, na verdade, ter um efeito oposto: em um momento que a NFL começava a se tornar “difícil” de assistir para muitas pessoas, seja por sua leniência com a violência doméstica ou por problemas com a saúde de seus jogadores, a polêmica pode acabar gerando a imagem de uma liga identificada com seus jogadores e capaz de desafiar um presidente com níveis recordes de reprovação nos EUA.
As próximas semanas
Novos protestos estão sendo programados para as próximas rodadas: o Green Bay Packers chegou a convocar sua torcida para participar na noite desta quinta-feira (28). De certa forma, Kaepernick conseguiu exatamente algo que queria: não há mais separação entre esporte e sociedade, e o futebol americano teve função crucial para pegar discussões abafadas e levar para o centro dos debates nacionais.
Jogadores estão mudando de opinião, a interação entre eles está maior do que nunca, e a própria NFL adotou uma postura muito mais atuante em relação ao papel de seus atletas. Talvez agora, não estando mais no centro dos holofotes, Colin Kaepernick, enfim, consiga encontrar um novo emprego na NFL.
HISTÓRIA |
Reverenciados em quadra, tratados como inferiores fora dela |
Uma questão que sempre caminhou junto dos esportes dentro da sociedade norte-americana foi o aspecto racial, datando desde a época anterior ao fim da segregação nos Estados Unidos: suas ligas mais antigas, como a MLB (Major League Baseball) e a NBA (National Basketball Association), foram durante muitos anos um reflexo da segregação vista na sociedade. Naquela época, atletas viviam quase uma vida dupla, reverenciados dentro de quadra, mas tratados como pessoas inferiores fora dela. Bill Simmons, em sua obra “O Livro do Basquete”, relata que “a regra não escrita da época dizia que cada time não podia ter mais do que dois jogadores negros, algo que ninguém desafiava exceto o Boston Celtics”. O próprio Bill Russell, estrela daquela franquia, teve sua residência invadida por pessoas que destruíram sua casa, pintaram insultos racistas nas paredes, e defecaram na sua cama. Oscar Robertson, uma vez jogando na Carolina do Norte, recebeu um aviso da Ku Klux Klan para “Nunca ir para [a Carolina do] Sul”. “Atletas negros na NBA tinham um papel de grande importância no avanço dos direitos civis” recorda Curtis Harris, estudante de doutorado em história dos esportes na American University e dono do site Pro Hoops History em entrevista à Gazeta do Povo. “Como times da NBA nos anos 50 e 60 jogavam muitos jogos de exibição em diversas cidades, esses jogadores eram vetores agitando os regimes segregacionistas em muitas partes dos EUA. Bill Russell, Elgin Baylor e outros atletas constantemente desafiavam hotéis e restaurantes que lhes recusavam serviço durante essas viagens. Esses confrontos eventualmente atingiam e despertavam colegas de times brancos, como Carl Braun, Bob Cousy e muitos outros para as injustiças que os americanos negros enfrentavam”, completa. Quando essas questões tornaram-se públicas, a ideia de que agora não era mais seu colega de bairro anônimo que estava sofrendo com a discriminação, e sim as maiores estrelas de um dos mais populares esportes do país, ajudou a adicionar alcance na mensagem que se tentava passar. “Ter um salário decente, até mesmo generoso, não excluía a indignidade de não ser capaz de comer em um restaurante devido à cor da sua pele. Tendo lido sobre e até mesmo falado com vários deles, o sentimento que me fica é o de que eles simplesmente queriam que seu país natal parasse de tratá-los como cidadãos de segunda categoria”, conclui Harris. |
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