“Não posso nem ir no banheiro?”, perguntou o octogenário vereador Eduardo Suplicy (PT-SP) à funcionária da Livraria Cultura que o atendeu na última terça-feira (27). Naquela manhã, a loja mais conhecida da rede, localizada no Conjunto Nacional da Avenida Paulista, amanheceu de portas fechadas, pegando os frequentadores de surpresa. Atônito, o pai do Supla lamentou a situação, destacou a importância histórica do lugar e se retirou, ainda meio perdido, como mostra um registro em vídeo que circula nas redes socais.
Como Suplicy, muitos famosos e anônimos passaram aquele dia expressando sua tristeza e revelando suas memórias afetivas na internet e nos veículos de imprensa. Afinal, a megastore gigante, chique e moderna, com cara de loja europeia, durante muitos anos foi mais do que um ponto de venda – era um espaço de convivência e ponto turístico de São Paulo, onde muita gente ia só para passear.
Mas o fim da livraria do Conjunto Nacional, em cumprimento a uma ordem de despejo, foi surpreendente apenas para o público em geral. Desde 2018, quando homologou seu pedido de recuperação judicial, a Cultura vive um processo sistemático do fechamento de suas unidades em todo o país.
Em fevereiro deste ano, a empresa fundada em 1969 finalmente teve sua falência decretada, por causa de dívidas trabalhistas e com fornecedores na ordem de R$ 285 milhões, além de um débito de R$ 2 milhões com o Banco do Brasil. Na última quinta-feira (29), uma liminar do Superior Tribunal de Justiça reverteu o decreto, pela segunda vez, e agora a Cultura tenta reverter o fechamento de suas principais lojas.
Para os especialistas do setor livreiro, a centenária rede Saraiva pode ter o mesmo destino de sua concorrente. Em processo de recuperação judicial há quatro anos, a empresa conseguiu aprovar, em agosto de 2022, a conversão de R$ 163 milhões de sua dívida em ações. Cerca de R$ 300 milhões do débito restante serão pagos em 2026. Enquanto isso, lojas do grupo são fechadas todas as semanas Brasil afora.
O declínio das duas companhias – que juntas já foram responsáveis por mais de 40% das vendas de livros no país – na verdade começa bem antes de 2018. Sua raiz remonta à segunda metade da década de 1990, quando o e-commerce deu seus primeiros passos por aqui.
Sabe-se que o livro foi o primeiro produto a impulsionar as compras online em todo o mundo, inclusive no Brasil. Num primeiro momento, o sucesso do site Submarino ligou o alerta das grandes redes de lojas físicas com relação ao comércio na internet. Mais tarde, com a entrada avassaladora da Amazon no mercado, Saraiva e Cultura decidiram ir à guerra e investiram ainda mais pesado nas próprias plataformas de venda.
Não foi o suficiente para bater de frente com a empresa de Jeff Bezos, que rapidamente dominou o mercado com sua logística eficiente e descontos tentadores – e sempre há quem acuse companhia de dumping, a venda de produtos abaixo do custo para eliminar a concorrência. O fato é que a Amazon iniciou a oferta de livros impressos no país em 2014, e cinco anos depois já concentrava metade das vendas desse tipo de produto.
Na tentativa de acompanhar os preços da multinacional, Saraiva e Cultura foram acumulando dívidas e deixando de pagar funcionários e fornecedores. As crises econômicas recentes e o fechamento das lojas durante a fase mais aguda da pandemia também contribuíram para aumentar o rombo. A má gestão, no entanto, é apontada como o principal fator da derrocada das duas companhias.
Retorno às origens
Mas nem só de más notícias vive o meio editorial do país. Segundo dados publicados no 11º Painel do Varejo de Livros no Brasil em 2022 – levantamento realizado pela consultoria Nielsen para o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) –, o mercado registrou, até o dia 7 de novembro do ano passado, um crescimento de 4% em relação ao período anterior. O mesmo estudo aponta um aumento no faturamento de R$ 8,59%, totalizando R$ 2 milhões.
De acordo com outra entidade do setor, a Associação Nacional de Livrarias (ANL), mais de 100 lojas físicas foram abertas em 2021, após a escalada de fechamentos motivada pelo período de lockdown. Hoje, há cerca de 2,7 mil pontos de venda no país, e estima-se que dentro de poucos anos o mercado alcance a quantidade registrada em 2013, quando 3 mil lojas estavam em funcionamento.
Para Dante Cid, presidente do SNEL e executivo da editora Elsevier, essa recuperação é fruto de boas práticas de governança adotadas por empresas por Livraria da Vila, Leitura, Curitiba e Travessa. E também de uma retomada da preocupação com a curadoria do catálogo e a capacitação dos vendedores. Ou seja, é como se o mercado estivesse buscando suas raízes e voltando a ter foco em seu negócio essencial: o livro.
Marcus Teles, que preside a ANL, ainda destaca a tendência de abertura de lojas em cidades do interior, especialmente em regiões onde não existiam livrarias. “Já nos grandes centros, vamos começar a observar a substituição das megastores fechadas pela Saraiva e Cultura por unidades de outras redes em crescimento”, diz. Teles comanda o grupo Leitura, novo líder do setor entre as lojas físicas.
Sobre o escândalo das fraudes nas Lojas Americanas, dona do Submarino, os representantes das duas entidades avaliam que essa crise não terá o mesmo impacto no setor como o causado pelas dívidas da Saraiva e da Cultura. Segundo eles, há uma preocupação com os próximos capítulos dessa novela, porém a venda de livros não é o principal negócio da companhia, e nem todas as editoras trabalham com as Americanas.
Lei protecionista
Cid e Teles também defendem a Lei Cortez, que protegeria o mercado e recentemente foi desarquivada no Congresso pela senadora Teresa Leitão (PT-PE). Segundo a proposta, o preço de capa de um livro recém-lançado deve ser respeitado durante 12 meses – e os varejistas só poderiam oferecer descontos de, no máximo, 10% desse valor. A regra não vale para vendas efetuadas diretamente ao poder público, títulos didáticos e obras raras ou fora de catálogo.
Inspirado no modelo de uma lei francesa adotado em todos os países da União Europeia, o projeto brasileiro busca auxiliar as livrarias na competição com as multinacionais do e-commerce. Inicialmente chamado de Lei do Preço Fixo, foi rebatizado há dois anos em homenagem a José Xavier Cortez (1936-2021), fundador da editora Cortez e figura admirada no meio.
“Pelo menos 95% do setor é a favor da Lei Cortez, porque ela tem grande importância cultural e diminuiria a concorrência desleal do mercado”, diz Marcus Teles. O presidente da Leitura, no entanto, reconhece que não vai ser fácil convencer a sociedade. “É um debate que precisa ser feito paulatinamente, porque não é uma proposta que se explica em 5 minutos.”
Como se dizia antigamente, “falta combinar com os russos” – no caso, os consumidores, acostumados com os bons preços e a facilidade que fizeram o sucesso da Amazon.
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