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Como duas crenças políticas equivocadas explicam a ascensão do autoritarismo
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Ao contrário de O Povo Contra a Democracia, de Yascha Mounk, que não passa de uma dissertação de mestrado bem-feita, o novo livro do historiador Timothy Snyder, Na Contramão da Liberdade, tem uma tese mais elaborada – e, o melhor, mais instigante. Se é verdadeira ou não, veremos isto a seguir.

Ele parte de dois princípios de análise para refletir a ascensão do autoritarismo nas democracias contemporâneas, em especial os Estados Unidos e a Europa (e que, indiretamente, influenciam o Brasil). O primeiro é a política da inevitabilidade, uma fábula criada pelos norte-americanos e pelos europeus quando ambos entraram no século XXI, em que os dois povos foram guiados pelo sentimento de que “o futuro é apenas a repetição do presente, que as leis do progresso são conhecidas, que não existem alternativas, e portanto não há nada que se possa fazer. Na versão capitalista americana dessa fábula, a natureza produziu o mercado, que produziu a democracia, que produziu a felicidade. Na versão europeia, a história produziu os países, que aprenderam com a guerra que a paz era boa e, portanto, escolheram a integração e a prosperidade”.

Já o segundo princípio é o da política da eternidade, surgido graças ao colapso da política da inevitabilidade, quando fica claro a todos que o “fim da história” de Francis Fukuyama não teria fim algum e – mais – seria incapaz de nos transmitir algum senso do futuro. De acordo com Snyder, “enquanto a inevitabilidade promete um futuro melhor para todos, a eternidade coloca um país no centro de uma história cíclica de vitimização. O tempo não é mais uma linha reta para o futuro, mas um círculo que traz de volta, de forma incessante e infinita, as mesmas ameaças do passado.

Na inevitabilidade, ninguém é responsável, porque todos sabemos que os detalhes se resolverão da melhor forma possível; na eternidade, ninguém é responsável porque todos sabemos que o inimigo está a caminho, independentemente do que fizermos. Os defensores da política da eternidade espalham a convicção de que o governo não pode ajudar a sociedade como um todo, apenas tomar precauções contra ameaças. O progresso dá lugar à condenação”.

A política da inevitabilidade parece resumir as atitudes recentes dos Estados Unidos e daquela franquia burocrática surgida graças à inoperância dos países europeus – a União Europeia. Já a Rússia de Vladímir Pútin, para Snyder, seria a encarnação perfeita, dentro do atual jogo geopolítico, da política da eternidade – e com o agravante de que ela acontece em um país que nos dá a impressão de ser uma democracia. Contudo, não se preocupa de fato com o “princípio da sucessão”, que seria a passagem de cargo de um governante para outro, por meio de eleições representativas.

O historiador americano, formado em Yale e especialista no sangrento assunto do genocídio provocado pela Alemanha e pelo império soviético durante a Segunda Guerra Mundial (tema de Terras Negras, um clássico de 2012), quer dar um arcabouço histórico e conceitual a algumas ideias já apresentadas em seu livro anterior – o pequeno panfleto Sobre a Tirania, lançado no final de 2016, quando Donald Trump foi eleito presidente dos Estados Unidos, e que ficou célebre nos meios progressistas por conseguir articular a indignação generalizada da elite intelectual que não conseguiu compreender tal feito.

Por este motivo, Snyder cria uma tese digna de figurar dos melhores relatórios escritos pelo diplomata George Kennan naqueles anos surreais que foram a Guerra Fria: a de que a Rússia é a grande responsável pelo ressurgimento do populismo e do autoritarismo que invadiram as democracias contemporâneas.

A influência russa

Descontente com tal ousadia, ele vai além. Na prática, afirma que Vladímir Pútin é o centro irradiador da realpolitik que atinge os Estados Unidos e a Europa, uma aranha a tecer uma gigantesca teia na qual todos nós estamos presos sem sabermos disso. O ponto de partida desse raciocínio é que o ditador teria recuperado as ideias de um filósofo russo desconhecido, soterrado pela Revolução Russa – um sujeito deveras insólito chamado Ivan Ilyin (1883-1954). Sua obra seria a prova daquilo que o poeta polonês Czeslaw Milosz comentou sobre uma das tendências subterrâneas da modernidade, facilmente ignorada pela academia e pela imprensa em geral. Trata-se do insólito fato de que “só na metade do século XX os habitantes de muitos países europeus compreenderam, em geral por meio do sofrimento, que complexos e difíceis livros de filosofia têm influência direta sobre seu destino”.

Os escritos de Ivan Ilyin encaixam-se perfeitamente neste fenômeno – e Snyder não hesita analisá-los como se fossem o fruto de um filósofo perfeito para a realização de uma política da eternidade – semelhante ao fascismo europeu – que se espalha de forma sufocante no resto do mundo:

“O fascismo dos anos 1920 e 1930 [na era de Ilyin] tinha três características essenciais: celebrava a vontade e a violência, acima da razão e do direito; propunha um líder com uma conexão mítica com seu povo; e caracterizava a globalização como uma conspiração, e não como um conjunto de problemas. Ressuscitado nas condições de desigualdade de hoje na forma da política da eternidade, o fascismo serve aos oligarcas como catalisador das transições que se afastam do debate público e se aproximam da ficção política; que se afastam da eleição com significado e se aproximam da falsa democracia; que se afastam do primado da lei e se aproximam de regimes personalistas.

A história sempre continua, e as alternativas sempre aparecem. Ilyin representa uma dessas alternativas. Ele não é o único pensador fascista ressuscitado no nosso século, porém é o mais importante. É um guia na estrada cada vez mais escura da falta de liberdade, que leva da inevitabilidade para a eternidade. Estudando suas ideias e sua influência, podemos perscrutar essa estrada à procura de luz e de saídas. Isso significa pensar historicamente: perguntar como ideias do passado podem ter importância no presente, comparar a era da globalização de Ilyin com a nossa, reconhecendo que então, como agora, as possibilidades eram reais, e havia mais de duas. O sucessor natural do véu da inevitabilidade é a mortalha da eternidade, mas há alternativas que precisam ser descobertas antes que a mortalha assuma seu lugar. Aceitando a eternidade, sacrificamos a individualidade e não vemos mais possibilidades. A eternidade é outra ideia segundo a qual não existem ideias”.

Snyder insiste em chamar Ivan Ilyin de “fascista”. Porém, o correto seria conceituar o seu pensamento como uma das inúmeras variações da “política gnóstica” que abunda no mundo ocidental e que se apropria, entre outras formas, de uma retórica apocalíptica a qual o pensador russo foi, sem dúvida, um dos seus mais emblemáticos representantes. Afinal, nascido de uma família nobre, seu maior desejo era de que a Rússia se transformasse em um Estado governado por leis; contudo, após a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Bolchevique de 1917, ele se transformou em um contrarevolucionário que, segundo Snyder, defendia de “métodos violentos contra a revolução e, com o tempo, autor de um fascismo cristão destinado a derrotar o bolchevismo”. Em 1922, com o avanço do comunismo na Rússia, exilou-se na Europa, especificamente em Berlim, onde, antes de morrer em 1954, formulou “seus escritos como orientação para governantes russos que chegassem ao poder depois do fim da União Soviética”.

Ao ser um autor póstumo, conseguiu cumprir seu intento. Além de Pútin – que exigiu um novo sepultamento do seu corpo em 2005, trasladando-o de Berlim para Moscou –, Ilyin também marcou o modo de pensar do chefe de propaganda do governo, Vladislav Surkov. E assim foi em todos os outros escalões daqueles que seguiam as diretrizes do Krêmlin, desde Dmitri Medvedev, o chefe do partido político de Pútin, até Alexander Dugin, suposto guru do presidente que, ao misturar Julius Evola com Dostoievski, ajudou Ilyin a ser um dos mais importantes ideólogos do “eurasianismo”, uma visão de mundo que colocava a Rússia como o coração de tudo o que é importante na Europa. O respeito pelo espectro de Ilyin era tamanho que, de acordo com o relato de Snyder, “o nome do autor estava nos lábios dos líderes dos falsos partidos de oposição, dos comunistas e dos liberal-democratas (de extrema direita), que desempenharam sua parte na criação do simulacro de democracia que Ilyin tinha recomendado”.

Como se tudo isso não fosse suficiente, Ilyin também foi citado “pelo chefe do tribunal constitucional, inclusive no momento em que sua ideia de que a lei significava amor por um líder ganhava força”. A misteriosa influência não parava de crescer, chegando ao ponto de ter sido defendido por “governadores regionais russos enquanto a Rússia se tornava o Estado centralizado que ele defendia. No começo de 2014, membros do partido governante da Rússia e todos os funcionários públicos do país receberam do Krêmlin uma coleção das publicações políticas de Ilyin”. O ápice desse fenômeno foi certamente em 2017, quando a televisão local produziu uma minissérie sobre Leon Trotsky, relacionando o fracasso da Revolução Russa com o judaísmo do personagem principal, e redimindo-a com uma trama que apresentava Ilyin como a autoridade moral que fazia a síntese histórica daquele período. (Aliás, a série fez muito sucesso no Brasil ao ser exibida pela Netflix, e muitos analistas políticos da direita conservadora tupiniquim a elogiaram por mostrar o caráter violento do famoso revolucionário. Nem uma palavra foi dita sobre Ilyin.)

Qual é a origem deste fascínio ao redor da obra de Ivan Ilyin? De certa maneira, sua filosofia pode ser resumida em uma simples frase escrita pelo próprio: “A Rússia não é Deus, mas a força de sua alma vem de Deus”. A partir daí, podemos deduzir todos os outros princípios – e suas consequências para uma política ocidental afetada por eles. Na explicação de Snyder, Ilyin via, semelhante a Thomas Hobbes, a vida como algo desagradável, brutal e curta. Porém, havia uma exceção: a Rússia e seus cidadãos – e a inocência deles não era observável ao resto do mundo. O eixo da sua filosofia era uma “contemplação do invisível” em que os “fatos do mundo são apenas os detritos corrompidos da fracassada criação de Deus” – e assim ele tinha a certeza de que seu próprio país como o verdadeiro justo – e, claro, a verdadeira vítima – sendo que a “pureza dessa visão era mais importantes do que qualquer coisa que os russos fizessem. O país, ‘puro e objetivo’, era o que o filósofo via quando fechava os olhos para tudo o mais”. Snyder complementa esse estranho Zeitgeist alegando que

“A inocência [da Rússia, segundo Ilyin] assumiu uma força biológica específica. O que Ilyin enxergava era um corpo russo virginal. Como os fascistas e outros autoritários de sua época, insistia em afirmar que seu país era uma criatura, ‘um organismo da natureza e da alma’, um animal no Éden sem o pecado original. Não cabia ao indivíduo decidir quem pertencia ao organismo russo, uma vez que não são as células que decidem que pertencem a um corpo. A cultura russa, escreveu o autor, produzia automaticamente ‘união fraterna’ para onde quer que o poderio nacional se estendesse. Ilyin escrevia sobre os ‘ucranianos’ sempre entre aspas, porque negava sua existência fora do organismo russo. Falar em Ucrânia era ser inimigo mortal da Rússia. Ilyin partia do princípio de que a Rússia pós-soviética incluiria a Ucrânia”.

Para que isso acontecesse de fato, era fundamental ir contra qualquer reforma legal e o filósofo anunciava sem nenhuma hesitação que a política deveria seguir os caprichos de um único governante. Portanto, era necessário entender corretamente o “uso feito por Ilyin da palavra russa spasitelnii”, que significa “redentor” e que trouxe um profundo significado religioso para a política, inclusive com toques perturbadores de antissemitismo. Tal termo era empregado normalmente por um cristão ortodoxo para se referir à redenção dos crentes pelo sacrifício de Cristo no Calvário. Contudo, o que “Ilyin queria dizer era que a Rússia precisava de um redentor que fizesse o ‘sacrifício cavalheiresco’ de derramar o sangue de outros para tomar o poder. Um golpe fascista era um ‘ato de salvação’, o primeiro passo para o retorno da totalidade do universo”.

Era importantíssimo a existência de um inimigo que fundamentasse a origem dessa guerra contra um Ocidente moribundo. Afinal de contas,

“o redentor suprime a factualidade, direciona a paixão e gera o mito ordenando um violento ataque a um inimigo selecionado. O fascista despreza qualquer política com raízes na sociedade (suas preferências, seus interesses, suas visões do futuro, os direitos de seus integrantes e assim por diante). O fascismo parte não de uma avaliação do que está dentro, mas da rejeição do que está fora. O mundo exterior é a matéria-prima literária de uma imagem do inimigo composta pelo ditador. A exemplo do teórico jurídico alemão Carl Schmitt, Ilyin definia a política como ‘a arte de identificar e neutralizar o inimigo’. [Ele] abriu seu artigo ‘Do nacionalismo russo’ com a simples afirmação de que ‘A Rússia nacional tem inimigos’. O mundo imperfeito tinha que se opor à Rússia porque essa nação era a única fonte de totalidade divina”.

Vladimir Pútin acreditou que o redentor de Ivan Ilyin era ninguém menos que ele próprio. Ao escolher nada mais nada menos que o território da Ucrânia para ser o seu inimigo permanente, apenas praticava o que já estava incubado nas palavras do seu falecido mestre. Mas a Ucrânia não era apenas a Ucrânia. Era também a representação de tudo o que foi contaminado pelo Ocidente que violentou a inocência da Mãe Russa – dos Estados Unidos até a União Europeia. Para ele, seus políticos e seus cidadãos eram sodomitas hebreus que precisavam ser reeducados antes de qualquer espécie de nova anexação territorial. Tendo isto em mente, Pútin começou uma guerra de informações, acelerada por esta descoberta tecnológica que foi a Internet, que se transformou em um conflito cibernético o qual posteriormente seria finalizado por uma guerra física. Lentamente, a Rússia – guiada pela FSB (Serviço Federal de Segurança), o atual nome da ex-KGB (Serviço Secreto Soviético) – foi pervertendo o mínimo funcionamento democrático que existia na Ucrânia – um país com inúmeros problemas referentes a uma classe política corrupta, é verdade, mas que ainda se baseava no princípio da sucessão – influenciando assim a opinião pública por meio de páginas nas redes sociais que divulgavam uma série de notícias falsas (as futuras “fake news”), além de bancar indiretamente o financiamento de campanhas de oligarcas simpatizantes com a política da eternidade de Vladímir Pútin.

O clímax foi, obviamente, a invasão da Ucrânia pelo exército russo em 2014, no exato momento histórico em que o pequeno país se preparava para ser aceito pela União Europeia. De qualquer maneira, o palco já estava pronto para tal acontecimento há mais de uma década. O mesmo tipo de plano foi executado à perfeição dentro da Europa, com a Rússia dando acolhida a políticos como Nigel Farage, que, na visão de Snyder, incitaram uma parte significativa do povo inglês a votar no Brexit em oposição à União Europeia, contribuindo ainda mais para a cizânia interna entre os Estados-Nações que desejavam permanecer na política da inevitabilidade.

Paralelamente a isto, a Rússia preparava o seu ataque contra a soberania dos Estados Unidos ao criar uma ficção política chamada Donald Trump. Segundo a explicação dada por Snyder:

“A guerra da Rússia contra a Ucrânia sempre foi um elemento de uma estratégia política maior de destruir a União Europeia e os Estados Unidos. Seus governantes não faziam segredo disso; soldados e voluntários russos julgavam estar envolvidos numa guerra mundial contra os Estados Unidos – e em certo sentido estavam. No primeiro semestre de 2014, quando forças especiais russas se infiltraram no sudeste da Ucrânia, alguns soldados claramente pensavam em derrotar os Estados Unidos. Um deles contou a um repórter seu sonho de que ‘o T-50 [um caça russo que radares não detectam] voaria sobre Washington’. Visões semelhantes impregnavam a imaginação de cidadãos ucranianos que lutavam do lado russo: um deles alimentava a fantasia de pendurar bandeiras vermelhas no topo da Casa Branca e do Capitólio. Em julho de 2014, quando a Rússia começou a sua segunda intervenção militar na Ucrânia, o comandante Vladimir Antiuféiev juntou a Ucrânia e os Estados Unidos no mesmo pacote como países ‘em desintegração’ e previu que a ‘construção demoníaca’ norte-americana seria destruída. Em agosto de 2014, Aleksandr Borodai [um intelectual cooptado pelo regime de Pútin] (e muitos outros) passou adiante uma piada sobre a Rússia intervindo nos Estados Unidos, que inclua uma caracterização racista do presidente norte-americano. Nessa mesma época, operadores russos já estavam em ação, se preparando para a intervenção que fariam. Em setembro de 2014, Serguei Glaziev [outro ideólogo russo] escreveu que a ‘elite norte-americana’ precisava ser ‘eliminada’ para que a guerra na Ucrânia pudesse ser vencida. Em dezembro de 2014, o Clube Izborsk [um think tank a favor da política da eternidade] publicou uma série de artigos sobre uma nova guerra fria contra os Estados Unidos, a ser travada como guerra de informações, prevendo ‘encher as informações de desinformação’. O objetivo era ‘a destruição de alguns dos importantes pilares da sociedade ocidental’”.

"Ciberguerra"

Isso aconteceu nos EUA por meio de uma “ciberguerra”, cujos alvos foram nada mais nada menos que milhões de páginas do Facebook, do Instagram, do Twitter, do YouTube, do Reddit, do 9GAG e do Google. Entre os métodos favoritos desta estratégia estão a invasão de páginas nas redes sociais (via os famosos hackers); a criação de e-mails falsos (como o dossiê divulgado pelo Wikileaks que afirmava que John Podesta, um dos conselheiros de Hillary Clinton, participava de rituais satânicos); o surgimento de robôs (os bots) que se multiplicavam conforme a cada retuite dado por algum influenciador famoso (como, por exemplo, o candidato Donald Trump); o investimento financeiro em candidatos potenciais que, sem o dinheiro da oligarquia russa, jamais teriam a mínima chance de se reerguerem (e aqui Trump era novamente o alvo favorito); e a influência, via intelectuais americanos de direita, na opinião pública de que era fundamental uma espécie de “revolução populista”.

Entre esses intelectuais, havia um sujeito chamado Steve Bannon. Ele entrou na campanha presidencial de Trump para substituir outro ideólogo que também tinha vínculos com a política russa, Paul Manafort, depois que o Departamento de Justiça descobriu que ele ajudou o Krêmlin a espalhar uma história inteiramente fictícia sobre um ataque de terroristas muçulmanos a uma base da Otan na Turquia ( e acabou sendo condenado por isso em 2018).

Snyder não é nada amistoso com Bannon. Descreve-o como alguém que era “uma versão bem menos sofisticada e erudita de Vladislav Surkov”, alguém “intelectualmente mal equipado e fácil de derrubar”, mas cujo principal perigo era o fato de que ele

“estava na vanguarda das estratégias da oligarquia digital: o uso do dinheiro de homens bilionários para manipular leitores pela internet. Graças à riqueza de Robert Mercer, Bannon conseguiu fazer seus primeiros experimentos de manipulação em massa. Estava em contato com os russos desde 2014 e conduziu um teste de receptividade de material relacionado a Vladímir Pútin junto ao publico norte-americano. Em 2016, a empresa de Mercer e Bannon [a Cambridge Analytica] roubou dados de 50 milhões de cidadãos norte-americanos via Facebook e usou as informações para criar ferramentas para incentivar alguns e desestimular outros a votar. Um de seus maiores objetivos era diminuir o comparecimento dos afro-americanos às urnas.

A ideologia de extrema direita de Steve Bannon lubricava a oligarquia norte-americana, o mesmo efeito causado por ideias similares na Federação Russa [...] Ao entrar no jogo dos russos estando num nível abaixo deles, [Bannon] garantia a vitória da Rússia. Da mesma forma que ideólogos russos rejeitam a factualidade como tecnologia inimiga, Bannon falava dos jornalistas como ‘o partido da oposição’. Não que negasse a veracidade de afirmações contra a campanha de Trump. Não negou, por exemplo, que Donald Trump fosse um predador sexual. Em vez disso, caracterizava os repórteres que transmitiam os fatos relevantes como inimigos do país.

Os filmes de Bannon eram simplistas e desinteressantes em comparação com [...] a filosofia de Ilyin, mas a ideia era a mesma: uma política da eternidade na qual uma nação inocente vive sob ataques constantes. Como seus equivalentes russos de maior nível, Bannon reabilitou fascistas esquecidos – no caso, Julius Evola [por coincidência, o mesmo pensador elogiado por Alexandre Dugin]. [...] Visava à confusão e à obscuridade, ainda que suas referências fossem um pouco mais comuns: ‘Escuridão é coisa boa. Dick Cheney. Darth Vader. Satanás. Isso é poder’. Bannon acreditava que ‘Pútin defende as instituições tradicionais’. Na verdade, a ostensiva defesa da Rússia das tradições era um ataque aos países soberanos da Europa e à soberania dos Estados Unidos da América. A campanha presidencial coordenada por Bannon foi um ataque russo à soberania norte-americana. Ele deu-se conta disso mais tarde: quando soube de uma reunião entre os principais membros da campanha de Trump e russos na Trump Tower, em junho de 2016, qualificou-a como ‘traiçoeira’ e ‘impatriótica’. Em última análise, porém, Bannon concordava com Pútin que o governo federal dos Estados Unidos (e a União Europeia, em suas palavras um ‘protetorado enaltecido’) deveria ser destruído”.

A extensão do trecho acima é necessária para se entender como Snyder articula a “ascensão e queda” de Steve Bannon. O historiador não consegue fazer a mais simples das perguntas: Como alguém que alega ser tão inteligente fez parte de um plano que, no fim, prejudicava os seus próprios ideais?

Ninguém acredita que Bannon seja um santo (é o meu caso), mas é neste ponto que a narrativa [storytelling] construída em minúcias por Snyder passa a mostrar as suas lacunas de raciocínio. A angústia demonstrada em Na Contramão da Liberdade é a de qualquer intelectual progressista quando passa a acreditar, como escreve Snyder, que “as democracias morrem quando as pessoas deixam de acreditar na importância do voto”. Ou seja, assim como Yascha Mounk em O Povo Contra a Democracia, temos novamente o analista político que ainda tem a crença definitiva na “fé cívica” que fundamentaria a democracia como uma nova religião política, além de não entender as ramificações do “poder inteligente” imposto pelas redes sociais sobre a sociedade civil, obrigando a existência do curtir como o novo símbolo da servidão psíquica – algo que, a propósito, Steve Bannon percebeu como poucos.

Um calmante para o presente

Mas este não é apenas o problema principal da tese de Snyder. Ele realmente pensa que a democracia – que é somente um sistema de governo, e nada mais – “produz uma noção do tempo, uma expectativa do futuro que acalma o presente”. Se ele afirma ser contrário tanto a uma política da inevitabilidade como a uma política da eternidade, desconhece, por causa da sua idolatria democrática, que caiu em um terceiro tipo de política, igualmente perigosa pois reduz a “imprevisível dinâmica da conduta humana”, como diria Michael Oakeshott. Trata-se da política da conspiração – alimento que, aliás, o governo de Vladímir Pútin parece se refastelar, uma vez que a sua base de pensamento não vem apenas dos escritos de Ivan Ilyin, mas também da antiga KGB.

E é aqui que Snyder exibe também as suas limitações de historiador da psique russa moderna. Ele não consegue explicar ao leitor um conceito fundamental para se entender as engrenagens da “ciberguerra” fomentada por Moscou: o da desinformação. Apelidado de nada mais nada menos que “magia negra” por ninguém menos que o tenente-general da Securitate romena (um dos braços da KGB soviética), Ion Mihai Pacepa (e que depois desertaria para os Estados Unidos), este termo vem do russo dezinformatsiya e não tem nenhuma relação com o suposto termo em francês desinformation, como os soviéticos tentaram fazer, ao confundir os intelectuais europeus na década de 1950.

Por sua vez, a desinformação também não significa má informação, ou seja, o ato de informar errado ou informar mal. É muito mais do que isso: trata-se precisamente de uma ciência, nascida no coração da Rússia czarista e que depois seria desenvolvida com requintes por Lênin e Stálin, na qual a diferença entre informar mal e desinformar é que, no primeiro caso, trata-se de um ato de uma ferramenta oficial de um governo que reconhecemos como tal; já no segundo caso, o que se tem é “uma ferramenta secreta de inteligência, com a finalidade de outorgar uma chancela ocidental, não governamental, a mentiras de governo”. Em seu livro (intitulado justamente Desinformação), Pacepa dá o seguinte exemplo:

“Imaginemos que a FSB fabricou alguns documentos como suposta prova de que as forças militares americanas estavam a seguir ordens específicas para mirar casas de oração muçulmanas em seus ataques à bomba à Líbia, em 2011. Se um informe sobre esses documentos fosse publicado em um canal de notícias russo, seria má informação, e as pessoas no Ocidente poderiam corretamente tomá-la com um pé atrás e simplesmente não lhe dar a mínima, vendo-a como propaganda rotineira de Moscou. Se, por outro lado, esse mesmo material fosse tornado público na mídia ocidental e atribuído a alguma organização ocidental, seria desinformação e a credibilidade da notícia seria substancialmente maior”.

Segundo Robert Chandler em Shadow World (2008), a intenção da desinformação contemporânea é um pouco mais sutil (e, por isso mesmo, mais diabólica): a meta estratégica é a criação das condições necessárias para a convergência tanto do Ocidente como do Oriente (ou seja, Europa e o Continente Americano, junto com a China, a Rússia e a parte salafista do Oriente Médio) no estabelecimento de um governo mundial socialista (também chamado de “bolchevismo de direita”). Aqui, a mentira e a desinformação são as medidas principais para alcançar tais objetivos – e o que era antes uma ciência usada para reescrever as percepções do presente para, por meio da grande imprensa e das organizações governamentais ocidentais, reescrever também o futuro, agora tem o claro intento de ser uma ferramenta de “lavagem cerebral”, destinada não apenas a enganar quem se beneficiará com esse tipo de erro – no caso, os vitoriosos de um governo socialista mundial – e sim sobretudo os seus inimigos, considerados como parte do “círculo de comando do capitalismo”, representantes máximos da política da inevitabilidade articulada por Snyder.

O outro ponto que o historiador de Yale não parece dar conta na sua narrativa é uma perspectiva equivocada da religião ortodoxa que, de uma maneira ou outra, sempre tem algumas semelhanças com o “apocalipse político” em sua visão de mundo. De fato, ele explica que a ideia de redentor defendida por Ivan Ilyin (e posta em execução por Pútin) tem suas origens nos dogmas da Igreja Russa, mas passa por isso desapercebido, sem se aprofundar muito no assunto. Se fizesse tal façanha, descobriria, por exemplo, a simbiose entre religião e política que sempre existiu na Rússia, algo que se tornou predominante na mente dos seus intelectuais desde o século XIX, como é nítido para qualquer um que leu o capítulo sobre o “Grande Inquisidor” em Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski, ou viu recentemente a obra-prima cinematográfica Leviatã (2014), de Andrey Zvyagintsev.

Essas falhas prejudicam a eficácia da sua tese em persuadir o leitor comum de que a Rússia é, de fato, a grande responsável pelo ressurgimento de um populismo autoritário nas democracias ocidentais contemporâneas. Ninguém tem a coragem de pôr a mão no fogo por um sujeito como Vladímir Pútin (e muito menos por alguém como Donald Trump); contudo, se Snyder tem razão no encadeamento dos fatos sugeridos, deveria tomar mais cuidado quando coloca a igualdade como princípio de análise a respeito de um governo que simplesmente não se importa com este tipo de ficção política. A Rússia é uma nação cuja única hierarquia neste planeta existe em função da sua inocência apocalíptica. E, para um tirano como Vladímir Pútin, o resto do mundo não passa de uma idealização que existe somente na cabeça de intelectuais sofisticados de Yale como Timothy Snyder.

As consequências deste equívoco monstruoso são duas. A primeira é que, sem saber, Snyder cai na paródia involuntária da paranoia digna de figurar entre os grupos de discussão que infestam a tal da “deep web” da Internet. Na tentativa de explicar algo que, para ele, jamais poderia acontecer – o fracasso de Hillary Clinton diante de um Donald Trump improvável de ser vencedor – é pego na armadilha espiritual da libido dominandi que ainda acredita ter alguma espécie de controle no rumo da História. Como disse uma vez Eric Voegelin, há uma íntima conexão entre as experiências da providência pervertida e as concepções de ser perseguido por alguém, seja lá quem for: os burgueses para um Marxista; os comunistas para um burguês; ou a CIA ou as companhias de petróleo para um esquerdista; e por aí vai. Não à toa, essas concepções de perseguição produzem uma reação paranoica no sujeito que, no fim das contas, vive uma existência extirpada de qualquer sentido objetivo.

Já a segunda consequência, originada indiretamente da primeira, é o preconceito arraigado do intelectual que, encastelado na sua bolha cognitiva, tem a certeza de que a sociedade civil é incapaz de tomar decisões que sejam, ao mesmo tempo, morais e incrivelmente complexas. Por isso, a teoria conspiratória preenche esse vácuo, retirando da população qualquer espécie de responsabilidade diante dos seus atos e pensamentos. E é de se pensar que, já que Vladímir Pútin é tão poderoso na articulação da sua teia política, não seria o próprio Snyder também uma vítima deste enredo ao ajudar no contágio da desinformação desta estratégia da aranha russa?

A raiz desta pneumopatologia está na obsessão do intelectual progressista pela panaceia da igualdade, seja política ou econômica. Snyder parece ser um daqueles tipos que, segundo a descrição precisa de C.S. Lewis no ensaio Membresia, pensa que todos os homens são tão bons e merecem uma parte no governo da sociedade, e são tão sábios que a sociedade necessita de seu conselho. Por outro lado, ele parece se esquecer, ainda de acordo com Lewis, que “os seres decaídos são tão perversos que nenhum deles é confiável o suficiente com qualquer responsabilidade de poder sobre seus semelhantes”.

A historiografia conspiratória de Timothy Snyder está entre essas duas opções – e elas são igualmente perigosas. É muito provável que, para qualquer tipo de democracia não ser traída em sua essência, é fundamental que nenhuma elite queira dar a sua orientação ou ser uma espécie de guia. Afinal, toda vez que isso aconteceu, apenas trocamos a política da inevitabilidade pela política da eternidade – e, em ambos os casos, deixamos de lado o fato de que o verdadeiro e único paraíso tão prometido pelo progresso humano sempre esteve muito além deste mundo.

Martim Vasques da Cunha é autor dos livros Crise e Utopia – O Dilema de Thomas More (Vide Editorial, 2012) e A Poeira da Glória – Uma (inesperada) história da literatura brasileira (Record, 2015); pós-doutorando pela FGV-EAESP.

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