O uso exagerado do termo “terrorista”, principalmente entre membros da casta progressista que se opõem a movimentos considerados de “extrema-direita”, esconde um outro problema, extremamente complicado, e que tem repercussões no mundo ocidental: o do antissemitismo.
Para entendermos melhor a conexão entre esses dois temas, tão díspares na superfície, precisamos analisar quatro eventos.
O primeiro foi o debate acalorado sobre a declaração feita pelo economista Paulo Nogueira Batista (ex-diretor do Fundo Monetário Internacional, o FMI) ao jornalista Luís Nassif (do veículo GGN), a respeito da indicação de outro economista, Ilan Goldfajn, para o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BDN). Ele alegou que o sobrenome de Goldfajn era “impronunciável” e que era alguém a serviço dos interesses de Israel. Obviamente, a celeuma se espalhou como rastilho de pólvora. Em pouco tempo, associações judaicas — como a Confederação Israelita do Brasil — condenaram Batista, afirmando que ele fez uma “manifestação de cunho antissemita”. Logo depois, Luís Nassif defendeu o seu entrevistado e afirmou que o rótulo do antissemitismo era uma “cortina de fumaça” fomentada para quem criticava o estado de Israel — o único responsável, segundo o jornalista, por usar o famigerado apartheid como método de governo em relação aos palestinos da região.
O segundo evento foi a omissão deliberada da mídia norte-americana em torno de outra celebridade que fez afirmações claramente antissemitas e que até agora não foi punida (ou “cancelada”) por isso. Estamos falando da atriz Whoopi Goldberg, que, apesar do sobrenome, não é judia, mas sim uma militante convicta do “fascismo de esquerda” que permeia a cultura progressista dos EUA. Ela divulga crenças básicas desse movimento de forma explícita há alguns anos e todas, em maior ou menor grau, envolvem o ódio escancarado ao judaísmo — entre eles, a negação do Holocausto; a defesa da proibição da graphic novel 'Maus', de Art Spielgelman, como uma obra de arte que perturbaria os seus leitores por dramatizar a perseguição feita pelos nazistas na Alemanha contra o povo hebreu; e de que os judeus alemães sofreram menos do que os habitantes da Europa Oriental durante a Segunda Guerra Mundial. Apesar dos protestos da Liga Anti-Difamação, Goldberg emitiu apenas algumas notas burocráticas de desculpas e, mesmo assim, permaneceu como uma das apresentadoras do programa The View, da TV ABC.
O militante comunista Jones Manoel, que chegou a concorrer nas últimas eleições a governador de Pernambuco pelo Partido Comunista Brasileiro, conhecido por suas declarações cheias de ódio, afirmou no último sábado (28), em publicação no Twitter, que "o sionismo é um projeto racista". Foi respondido por André Lajst, presidente-executivo da StandWithUs Brasil, organização que combate o antissemitismo: "[Jones Manoel é um] racista [que] tenta se apropriar da causa dos outros e ainda dita o que é e o que não é ser antissemita e judeofobico. Tenta de forma desonesta adicionar adjetivos obviamente falsos ao movimento nacional judaico e ignora a história e fatos, típico de quem defende ditaduras".
A pergunta que se faz sobre as repercussões das polêmicas de Batista, Goldberg e Manoel é: se eles não fossem progressistas, suas carreiras seriam prejudicadas? Vejam o caso do cantor e compositor Kanye West, por exemplo, que fez pronunciamentos de mesmo teor, e já foi devidamente expulso da mídia, com toda a razão. A diferença é que West não pregou o evangelho da esquerda identitária desde o início da sua conturbada carreira e sempre foi considerado uma “pedra no sapato” no ambiente cultural dos EUA. Já Batista e Goldberg continuam como estão, e até possuem seus apologetas.
O assassinato
O que nos leva ao quarto evento, que não é tão recente assim, mas que pode nos ajudar a compreender melhor o que está em risco. No maravilhoso livro 'Can The “Whole World” Be Wrong?' (“Pode o ‘mundo todo’ estar errado?”), de autoria do scholar e historiador americano Richard Landes e publicado no final do ano passado, essa relação sombria entre antissemitismo e progressismo pode ter sido acentuada neste começo do século XXI com o assassinato de Muhammed Al Durah.
No dia 30 de setembro de 2000, Al Durah, uma criança de doze anos, acompanhada por seu pai, Jamal, foram filmados pelas câmeras de Talal Abu Rahma no meio de um tiroteio entre as forças de defesa israelenses e as palestinas, em plena Faixa de Gaza. As imagens foram veiculadas pelo canal France 2, com a narração do respeitado jornalista Charles Enderlin, que endossou por completo a suposição de que os tiros que atingiram Al-Durah vieram do lado de Israel. Apesar da comoção jornalística inicial em torno do fato (acompanhada pelo típico exibicionismo moral criado pelos políticos), com o passar do tempo comprovou-se que, na verdade, a filmagem foi editada de uma maneira em que ninguém percebeu que o verdadeiro autor dos disparos era o exército palestino.
Para Landes, a histeria midiática ao redor do affaire Al-Durah foi a “primeira grande fake news” dos anos 2000 – e todo o jornalismo ocidental caiu na armadilha perpetrada pelos jihadistas (aqueles que defendem que o Ocidente infiel deve se render ao Islã). Israel sempre foi considerado o vilão dos conflitos no Oriente Médio desde a sua fundação em 1948, mas agora a sua maldade — comparada ao nazismo — atingia proporções inacreditáveis, segundo esse grupo de iluminados. Não foi por acaso, aliás, que o assassinato de Al-Durah aconteceu um dia após o início da Segunda Intifada, a continuação do período milenarista da luta entre o estado árabe (autorrepresentado como um pequeno Davi) e o estado judeu (visto como um aterrorizante Golias).
Esta foi a base para uma guerrilha cognitiva que manipulou o coração e as mentes das pessoas comuns, incentivando a elite global progressista a acreditar na narrativa de Enderlin e Rahma, o que enfraqueceu as forças de segurança e de inteligência necessárias para elas impedirem aquilo que seria o evento mais horroroso dos nossos tempos — o atentado terrorista contra as Torres Gêmeas do World Trade Center, ocorrido em 11 de setembro de 2001 em Nova York.
É justamente dessa fraqueza que se alimenta a simbiose entre progressismo e antissemitismo. Afinal, o ódio aos judeus sempre existiu desde que o mundo é mundo. O que diferenciaria o desejo pela “limpieza de sangre” (como alegavam os ibéricos na época da Inquisição católica) dessa ideologia que cresce de forma exponencial, mesmo em um período tão supostamente evoluído e tolerante como o nosso, traumatizado pelo que aconteceu com o Holocausto?
O papel de Karl Marx
O pesquisador Walter Laqueur, no seu livro 'A Face Mutável do Antissemitismo' (publicado recentemente pela É Realizações), afirma que o termo é de 1879, cunhado pelo jornalista alemão Wilhem Marr. Contudo, ele apenas popularizou a palavra, que já existia na boca de alguns luminares da época, como o famoso compositor e maestro Richard Wagner.
Quando ocorreu o caso de Alfred Dreyfus na França entre 1894 e 1906 — no qual um jovem oficial do Exército foi acusado de traição, mas depois descobriu-se que o ódio a ele por ser judeu foi fundamental para que fosse condenado injustamente —, o antissemitismo não era mais um assunto para iniciados, e sim um tópico que fazia parte da própria organização do Estado moderno. Havia aqueles que, entre as frestas da burocracia, sabiam em seus corações que a defesa dos judeus era um aspecto civilizacional e havia aqueles que jamais admitiram para si mesmos que este tipo de preconceito era o anúncio de uma catástrofe.
Um dos sujeitos que fazia parte deste segundo grupo foi Karl Marx. Laqueur observa que, apesar do avô de Marx ter sido um rabino, o judaísmo era para ele uma vergonha, chamando-a de “a religião da usura”, e seu desejo era se afastar tanto quanto possível daquilo que seus olhos viam como uma tradição desprezível. Em 1844, Marx escreveu o ensaio “Sobre a questão judaica”, no qual ele responsabilizava os judeus, em especial os banqueiros Rothschild, por todos os males estruturais do mundo. “Mais adiante na vida”, escreve Laqueur, “Marx não tocou mais na questão judaica como tal, embora se referisse aos judeus na sua correspondência privada quase sempre em teor negativo”.
A união entre os movimentos totalitários e o antissemitismo se tornou cada vez mais agressiva no século XX, seja com os pogroms russos antes, durante e depois da Revolução de 1917, seja com os campos de concentração nazistas — ou então com as teorias conspiratórias fomentadas pela elite intelectual do Ocidente, todas baseadas na paranoia fajuta de um documento supostamente histórico, mas que era outra gigantesca fake news: Os Protocolos dos Sábios do Sião (publicado em um obscuro jornal francês em 1903).
Walter Laqueur conta que, “embora suas origens ainda sejam obscuras, acredita-se que [o documento] tenha sido criado por agentes da polícia secreta czarista (a Okhrana) na França antes da virada do século XX, mas isso nunca foi provado conclusivamente”. O documento alega que “os judeus usam todos os tipos de organizações secretas, e suas principais ferramentas são a democracia, o liberalismo e o socialismo. Eles estiveram por trás de todos os transtornos da história, apoiando a demanda pela liberdade do indivíduo; também estavam por trás da luta de classes, de todos os assassinatos políticos e de todas as grandes greves. Os conspiradores induzem os trabalhadores a tornarem-se alcoólatras e tentam criar condições caóticas, elevando os preços dos alimentos e disseminando doenças infecciosas”.
"Fascismo de esquerda"
Qualquer semelhança com o assassinato fabricado de Muhammed Al Durah pelas supostas forças israelenses não é mera coincidência. É a mesma corrente de notícias falsas que atinge os hebreus — e, consequentemente, o Ocidente. E assim como o caso Al Durah permitiu que os jihadistas ficassem cada vez mais estimulados a praticarem um ataque terrorista contra os EUA, uma vez que a imprensa mundial ficou submissa à narrativa dos palestinos contra Israel, o contágio nocivo das ideias insanas do Protocolo deixou que a Europa se tornasse cada vez mais pusilânime a respeito do ódio contra os judeus e legitimou, com o beneplácito das suas elites, a ascensão de um sujeito como Adolf Hitler.
Assim, a dificuldade de conceituar corretamente o antissemitismo implica no fato de que o próprio Mal assume disfarces surpreendentes para enganar até mesmo as pessoas mais esclarecidas. Por esse mesmo motivo, como bem observou Carl Friedrich, é possível também perceber uma estrutura constante no fenômeno, o qual se encontra na seguinte afirmação: a de que o antissemitismo é “uma manifestação de decadência cultural, isto é, do desgaste da crença fiel em normas éticas; ou, em palavras mais fortes, uma recaída no barbarismo”. E, no caso específico do nazismo (e dos jihadistas que o apoiaram na época e que depois venderam a narrativa do assassinato de Al Durah como se fosse verdadeira para a imprensa contemporânea), era igualmente “uma referência à natureza profundamente anticristã e à sua hostilidade para com a civilização”.
Eis o ponto de contato do “fascismo de esquerda” adotado pelas nossas celebridades tupiniquins e internacionais e o antissemitismo que assola o mundo ocidental: o ódio aos judeus que elas divulgam sem pudor não é apenas um aviso contra as “minorias desprotegidas”, mas principalmente um alerta sobre como há um claro processo de escravizar todo o globo terrestre — e de preferência com a ajuda da mesma elite que supostamente deveria nos proteger disso tudo.
É por isso que se deve tomar muito cuidado quando os progressistas usam e abusam do termo “terrorista”. Na verdade, de acordo com Michael Burleigh em 'Blood and Rage – A cultural history of terrorism' [Sangue e Ódio - Uma história cultural do terrorismo], o uso do terror é uma tática usada por agentes assimétricos, que podem ou não terem relação com algum Estado, coordenados via uma entidade acéfala ou uma organização hierárquica, com o intuito de criar um clima psicológico de medo para compensar o poder político legítimo que não possuem — e com a imposição deste mesmo desejo de poder no mundo todo, de preferência usando como meio a criação de uma comunidade fundada no sofrimento, numa comunhão de vítimas assassinadas ou feridas as quais elas devem sofrer em função de um projeto muito maior: o da libertação da raça humana dos grilhões da escravidão espiritual e material.
Ora, aqui temos a exata definição, sem automatismos verbais, do que acontece entre os jihadistas e a única nação realmente democrática que existe no Oriente Médio: o estado de Israel (e também com os EUA, o país que simboliza a democracia no resto do mundo, o que nos leva a concluir que o antiamericanismo, uma outra doença fomentada pela esquerda, é mais uma variação do antissemitismo).
Não à toa, a elite progressista acompanha a narrativa dos palestinos porque ela também se aproveita da confusão em torno da palavra “democracia”. Para os seus integrantes, a democracia deles seria a da Revolução Francesa, a do Iluminismo que pratica um governo autoritário a guiar o povo de cima para baixo, enquanto Israel, por mais defeitos que possa ter (como qualquer país vibrante), pratica a democracia liberal de fato, cujas decisões são feitas de baixo para cima e sempre respeitando aquilo que Michael Oakeshott chamava de “a dinâmica imprevisível da conduta humana”.
Assim, a cooptação do conceito de “terrorismo” pela esquerda progressista para eventos graves, mas que não chegam à loucura de eliminar a população de um país que representa uma parte importante do gênero humano (como é o caso de Israel), é uma das mutações da maldade que infecta o mundo contemporâneo. O antissemitismo é um problema gravíssimo que envolve a todos nós porque o início da verdadeira democracia não se deu em Paris ou até mesmo na Atenas clássica, como alegam os manuais de política, e sim naquilo que o teólogo Os Guinness chama em 'A Carta Magna da Liberdade' (lançado no Brasil pela Edições Vida Nova) de “a Revolução do Sinai”, quando Moisés recebeu a revelação de que há somente um único Deus e que o povo hebreu se tornou nada mais, nada menos que o representante de toda a humanidade.
Independentemente do fato de vivermos em um momento histórico completamente diferente do que aconteceu no Êxodo do Egito ou até mesmo na Europa devastada pela Segunda Guerra Mundial, a nossa situação não mudou sob hipótese nenhuma porque o ódio contra os judeus é algo que avilta a própria natureza humana.
Como o próprio Guinness reforça, o mundo contemporâneo até pode estar muito distante do mundo com que teve de lidar Moisés, o grande líder judeu. Afinal de contas, “ele é moderno e avançado, e não tradicional; é urbano, e não rural. Contudo, os princípios expostos no Êxodo e nos primeiros livros da Bíblia são ao mesmo tempo atuais e atemporais. O problema não é que as ideias são obsoletas, e sim, que a nossa geração não se distingue pela análise cuidadosa dos primeiros princípios, pelo seu compromisso com a construção persistente e paciente, ou pelo debate respeitoso dos desafios futuros. Hoje uma afirmação é algo a ser primeiro atacado e só depois avaliado. É a receita das mídias sociais para o preconceito e a loucura”.
E é o esquecimento dessa aliança sagrada com a qual nossa Civilização de fato começou que se tornou a origem de todas as fake news que dominam a nossa sensibilidade e que acompanham o antissemitismo até hoje, seja com o caso de Muhammad Al Durah, seja com a crença de que Os Protocolos dos Sábios de Sião são verdadeiros. Negar a Revolução do Sinai, como querem os jihadistas e a esquerda progressista, numa união de delírio cognitivo que infelizmente contagiou a maioria da nossa sociedade (em especial, a brasileira), é o único terrorismo que precisa ser combatido. O resto é apenas o ruído de quem ainda não entendeu o que realmente movimenta a memória do mundo.
Martim Vasques da Cunha é autor de 'Um Democrata do Direito' (Metalivros, 2021).
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