Em seu livro Shakespeare the Thinker [Shakespeare, o pensador], de 2007, A. D. Nuttall diz:
“Sabemos o que Milton pensava sobre várias coisas. Ele não acreditava na doutrina da Trindade; ele considerava a execução de Carlos I moralmente certa; ele acreditava que casais que não se davam bem deveriam poder se separar. Mas não temos ideia do que Shakespeare pensava a respeito dos grandes temas. O homem é esquivo”.
É certo que Shakespeare não tinha uma doutrina ou uma filosofia explícita para expor, muito menos uma ideologia. Você não recorreria a Shakespeare em busca de ideias sobre epistemologia ou teoria econômica. Ainda assim, um homem brilhante como ele foi certamente percebia o lado atraente e às vezes a necessidade de se teorizar. Talvez, então, a falta de doutrina seja, em si, uma espécie de doutrina negativa: ele sabia que tentar captar a existência humana por completo numa teoria é como tentar pegar uma nuvem com uma rede de caçar borboletas – algo fadado ao fracasso.
Mas, se não somos capazes de saber o que pensava Shakespeare sobre várias questões importantes, como diz Nutall, ao menos podemos resumir algumas das coisas nas quais ele não acreditava. Ninguém, acho, imagina que Shakespeare romantizasse o homem comum ou ficasse impressionado com a capacidade de reflexão da plateia. Uma coisa é certa: ele não era um utópico.
Além da falta de provas diretas, uma coisa que impede que saibamos o que Shakespeare pensava é que ele parecia capaz de se imaginar na mente de infindáveis personagens, de modo a se tornar um deles. Ele era, em certo sentido, um ator que interpretava tantos papéis que já não tinha personalidade própria. Um camaleão tem muitas cores, mas nenhuma cor.
O mais notável, talvez, é que, por meio de uma alquimia verbal qualquer, Shakespeare nos transforma numa versão mais acanhada de si mesmo. Por meio de grandes discursos e diálogos, nós também entramos no mundo dos personagens e até nos transformamos mentalmente naquele personagem. Não conheço nenhum outro escritor capaz de fazer isso com a mesma frequência e abordando um espectro tão amplo da humanidade.
Neste espectro estão os dois reis Ricardos, o Segundo e o Terceiro. Shakespeare escreveu as duas peças na ordem reversa, com um intervalo de quatro anos entre uma e outra. A usurpação do trono de Ricardo II por Henry Bolingbroke, o Henrique IV, em 1399, gerou instabilidade política e uma guerra civil na Inglaterra que durou até a morte de Ricardo III numa batalha, em 1485. Como todos amam um vilão inequívoco, Ricardo III é uma das peças mais montadas de Shakespeare, mas as verossimilhanças históricas são bastante questionadas.
Trata-se claramente de uma apologia da dinastia Tudor, uma vez que, se Ricardo III não fosse o vilão absoluto como foi retratado (e o poder da peça de Shakespeare é tão grande que a imagem que todos fazem do rei, exceto os especialistas, se baseia nela), então Henrique VII, cuja legitimidade do trono era duvidosa, para dizer o mínimo, não foi um rei legítimo — e, neste caso, tampouco foram legítimos Henrique VIII, o pai da rainha Elizabeth, nem, portanto, a própria rainha Elizabeth: algo perigoso de se dizer na época de Shakespeare.
A peça lembra tanto as apologias históricas soviéticas que um amigo meu, imigrante soviético, a odeia. Em 1924, um médico de Liverpool, Samuel Saxon Barton, fundou a Sociedade Ricardo III, que hoje tem milhares de membros no mundo todo, dedicados a restaurar a reputação do rei maculada pelas calúnias do Bardo.
Se Ricardo III era apenas uma peça de propaganda em nome dos Tudores, contudo, ela dificilmente se manteria no repertório. Ela se mantém porque aborda a questão eternamente fascinante e importante do mal, e da forma mais dramática possível; sua precisão histórica não importa. Ricardo III talvez não tenha sido o homem sombrio retratado por Shakespeare, mas quem teria coragem de dizer que um homem como ele jamais existiu?
Patologias políticas
As duas peças representam patologias políticas contrastantes: a da maldade ambiciosa e a da arrogância presunçosa, ambas com resultados desastrosos e de certa forma conhecidos em nosso tempo. Mas elas têm em comum algo surpreendente: antes de chegarem ao trono, os dois usurpadores — Ricardo III, quando ainda Duque de Gloucester, e Henrique IV, quando ainda Duque de Hereford — se sentiram na obrigação de se submeterem à opinião do homem comum.
Isso talvez surpreenda por conta da natureza extremamente hierarquizada da sociedade tanto na época retratada nas peças quanto na época em que elas foram escritas, e sugere um populismo nascente, quando não democracia de verdade. Por mais poderoso que seja o rei ou a nobreza, a Revolta Camponesa de 1381, no começo do reinado de Ricardo II (e que foi tanto uma revolta de comerciantes quanto de camponeses), deve tê-los alertado para a necessidade de manter a população minimamente satisfeita.
Os métodos de Henrique e Ricardo para conquistar a multidão não fariam vergonha aos candidatos numa eleição democrática contemporânea. Ricardo, enquanto Duque de Gloucester, mas já sonhando com a Coroa, ouve do Duque de Buckingham, seu gerente de campanha, por assim dizer, que seu nome não gera nenhum entusiasmo entre o povo. A solução, para ele, é parecer tão virtuoso que reluta em abandonar sua devoção religiosa apenas para conquistar o trono. Buckingham explica a relutância de Ricardo em aparecer diante do povo:
Quando religiosos devotos e santos
Estão nas preces dos homens, difícil é arrancá-los
Tão sincera é a contemplação cuidadosa.
Essa pantomina ridícula, levando em conta o que sabemos sobre o caráter real de Ricardo, evoca candidatos nas eleições de hoje posando como devotos homens de família, com netos e sacerdotes ao fundo. E tanto pior para as pessoas que facilmente se deixarem levar por isso.
Em Ricardo II, Henry Bolingbroke, depois de voltar ilegalmente do exílio imposto por Ricardo, passa por um humilde funcionário público ao passear pelas ruas cheias de Londres:
Ele, virando-se de um lado para outro,
Descalço, mais baixo do que um cavalo altivo,
Assim os anunciou: “Agradeço aos compatriotas”.
E, em assim fazendo, por todos passou.
Mas sabemos que ele é orgulhoso, ambicioso e está longe de ser o mendigo humilde pelo qual se faz passar, com sucesso — mais uma vez, não uma grande prova da inteligência do povo.
Vilania absoluta
O Ricardo de Ricardo III costuma ser considerado uma caricatura, um vilão bidimensional e não o Sweeney Todd do melodrama vitoriano. Mas ele é muito mais do que isso: na verdade ele é uma figura fascinante do ponto de vista psicológico.
Em seu solilóquio inicial, ele explica sua vilania para si mesmo e para nós, a plateia. Ele é um vilão, diz, porque foi vítima da injustiça cósmica. Com a paz temporariamente restaurada na Inglaterra, Ricardo se percebe indigno dos prazeres por causa de sua deficiência física.
Ele não foi forjado para cortejar um espelho enamorado, diz; ele foi rudemente moldado pela Natureza, os traços débeis, deformado, inconcluso, enviado antes do tempo para o mundo dos vivos, e tão desprezível e acovardado que os cães latem quando ele tenta espantá-los. No que ele chama de “o tempo flácido da paz”, ele não tem outro passatempo que não espiar a sombra do sol, amaldiçoando-se por sua própria deformidade: “E, portanto, como não posso ser amante (...) Estou determinado a ser um vilão”.
Essa, sugere ele, é sua única possibilidade. Mas na verdade sua justificativa ou explicação é mentirosa. Em pouco tempo, ele conquista Anne, cujos marido e pai ele assassina. Logo depois, Ricardo diz triunfantemente: “Alguma mulher de tal complexidade foi assim cortejada? Alguma mulher de tal complexidade foi assim conquistada?”
Ele é, na verdade, um amante muito eficiente e bem-sucedido. Ao longo da peça, ele convence a rainha Elizabeth, mãe de dois príncipes que ele mata a fim de se garantir como sucessor ao trono, a fazer com que sua filha o aceite como marido (Anne, enquanto isso, morre de tristeza). Em outras palavras, o “portanto” de “portanto, como não posso ser amante” não tem justificativa alguma – é uma mentira, é negar a responsabilidade pelo próprio mal.
Esse distanciamento de suas ações explica sua tirada irônica quando conversando com o príncipe Eduardo, o verdadeiro herdeiro do trono, que em breve ele mataria. Eduardo fala sobre seus anos de maturidade e Ricardo diz: “Verão curto, primavera precoce”. Isso é apresentado como uma espécie de lei, quando, na verdade, o verão de Eduardo só é curto por causa da atitude de Ricardo.
Psicopata
Ricardo reconhece quão desonesto é (e pode-se chamar isso de desonestidade, se ele não percebe)? A resposta é sim e não. Somos capazes de defender ideias contraditórias — sou um ente livre; sou obrigado a fazer o que faço — num equilíbrio mental instável.
Psicopatas como Ricardo demonstram uma tendência especial a fazerem isso. De certa forma, Ricardo percebe isso porque, pouco antes da Batalha de Bosworth Field, na qual ele morrerá, ele desperta de pesadelos habitados pelas pessoas que matou.
Sandeu, eu me amo. Por quê? Por tudo
De bom que faço a mim mesmo?
Ah, não! Aliás, eu me odeio
Pelos males horríveis que cometi.
Por fim, torna-se impossível invejar o psicopata, por mais bem-sucedido que um dia ele tenha sido:
Em desespero cairei. Criatura nenhuma me ama;
E, se morrer, nenhuma alma me chorará.
Ora, por que eles sentiriam algo se eu mesmo
Não me considero digno de amor ou pena?
Logo depois, contudo, Ricardo volta a seu nietzschianismo:
Consciência é palavra de covardes,
Inventada para assombrar os fortes;
Que nossos braços sejam nossa consciência e nossa espada a lei!
Alternando humores intensos, mas superficiais, é característica de certo tipo de transtorno de personalidade que (acho) está mais presente hoje do que na época de Ricardo ou de Shakespeare.
Depois de nos mostrar que Ricardo está apelando, Shakespeare, sendo Shakespeare, propõe o outro lado da questão. A mãe de Ricardo, Duquesa de York, diz ao filho:
Tu vieste a este mundo para fazeres da terra meu inferno.
Teu parto me foi um fardo;
Teus dias de escola, assustadores, intensos, loucos, raivosos;
Tua juventude ousada e arriscada;
Tua idade madura cheia de orgulho, astuta e sangrenta,
Mais tolhida, ainda que mais danosa, de um ódio cuidadoso.
Como resumo da carreira de um psicopata, poucas coisas são melhores do que isso; e todo médico tem várias história de pacientes que, assim que se percebem capazes de escolher como agir, invariavelmente escolhem o mal ao bem, a mentir sistematicamente em vez de dizer a verdade, a ser cruel e não gentil, e assim por diante, uma maldade precoce que inevitavelmente levanta a questão de um problema biológico ou neurológico.
Assim, o enigma ou mistério do mal permanece, e Shakespeare não o esconde. Somos produtos de nós mesmos, certo — mas a partir da lama que nos molda.
Fraqueza
O rei Ricardo II era bem diferente do Ricardo III. E, embora não fosse especialmente virtuoso, não era mal nem mal-intencionado como Ricardo III. Ao contrário, ele era fraco, frívolo, vaidoso, falso e estava convencido de seu direito divino a governar. Apesar de sua superioridade moral em relação a Ricardo III, seu governo foi até mais desastroso. Sua queda – compreensível, senão justificada – deu origem a um longo período de instabilidade e violência. A ciclo das peças históricas de Shakespeare sugerem duas coisas: primeiro, que a legitimidade do governante é um valor em si; depois, que as virtudes pessoais dos governantes não bastam para que os analisemos.
Depois de ser tirado do trono, Ricardo II se tornou uma figura de dimensão trágica. Ainda que a maioria de nós jamais tenhamos assumido cargos de grande poder, Shakespeare expressa exatamente o que significa perder o poder e ter de se submeter aos que o usurparam. Quando ouvimos – ainda mais do que quando lemos — os grandes discursos de Ricardo, não sentimos apenas pena dele; também sentimos como se fôssemos Ricardo. Sua dor se torna nossa dor, num sentido mais profundo do que o clintoniano:
Falemos de sepulcros, vermes, epitáfios,
Sejamos pó, e com pluviosos olhos
Inscrevamos tristeza no seio da terra.
Do nosso testamento aqui tratemos.
E para quê? Que temos que testar,
Salvo o deposto corpo entregue ao túmulo? [Tradução deste trecho: Jorge de Sena]
Cedendo a coroa a Henrique, ele diz:
Veja agora como me destruo.
Tiro da cabeça este peso,
E da mão esse cetro inútil,
Do coração tiro todo o orgulho majestoso;
Com minhas lágrimas lavo o bálsamo,
Com minhas mãos cedo a coroa
Com minha língua nego meus privilégios divinos,
Com minha palavra anulo todos os juramentos.
A desolação pungente de Ricardo não é menor:
Não tenho nome ou título,
Não mais o nome me dado em batismo
Que foi usurpado. Ah, dia infeliz!
Eu que tantos invernos vivi,
E que hoje não sei como me chamo.
Um dos discursos de Ricardo defende um tipo de igualitarismo – não o igualitarismo rude daqueles que acreditam que qualquer diferença é prova inconteste de injustiça, e sim um tipo de igualdade existencial que deveria fazer com que até o mais sábio se lembrasse de que a modéstia é pretensão e da inescapável fragilidade de sua situação:
Pois dentro da Coroa
Que as têmperas mortais de um Rei circunda
Tem sua Corte a Morte, e lá está o Bobo
Zombando de seu Estado, e rindo-lhe da pompa,
Permitindo um suspiro, ou uma cena breve,
Que monarquize, o temam, mate com olhares,
Embebendo-o de estultas presunções,
Como se a carne que muralha a vida
Nos fosse inexpugnável bronze: oh, ilusão!
Quando ela vem por fim, e com um alfinete
Perfura os muros do Castelo... e adeus Rei.
Cobri-vos. Não troceis da carne e osso,
Com reverências solenes. Deitai fora
Respeito, as tradições, as etiquetas,
Porque me haveis julgado o que não sou:
Vivo de pão, qual um de vós. E sinto faltas,
Procuro amigos, sofro dores. Assim sujeito,
Corno podeis dizer-me que sou Rei? [Tradução deste trecho: Jorge de Sena]
Este é o equivalente monárquico, ou ex-monárquico, ao discurso de Shylock que o grande John Gross disse jamais perder a força, por mais que se ouça ou leia:
Os judeus não têm olhos? Os judeus não têm mãos, órgãos,
Dimensões, sentidos, amores, paixões; alimentados
Com a mesma comida, ferido pelas mesmas armas, sujeito
Às mesmas doenças, curado pelos mesmos meios,
Aquecido e refrescado pelos mesmos invernos e verões,
Tanto quanto um cristão? Se você nos esfaqueia, não sangramos?
Se você nos faz cócegas, não rimos? Se você nos envenena, não morremos?
E se você nos faz mal, não devemos nos vingar?
Esses discursos são tão marcantes que é difícil acreditar que Shakespeare possa tê-los escrito sem acreditar nos argumentos que eles defendem, isto é, a igualdade fundamental (mas não superficial) da humanidade.
Claro que as peças de Shakespeare sempre causaram um grande efeito, às vezes até mesmo sobre os poderosos. “Sou Ricardo II, você não percebe isso?”, perguntou a rainha Elizabeth quando a peça foi montada no Globe Theatre às vésperas de uma rebelião contra ela. Mas ela não pretendia interpretar o papel de Ricardo e por isso executou os rebeldes.
Coreia do Norte
Durante o Festival Internacional da Juventude e dos Estudantes de que participei em Pyongyang, na Coreia do Norte, em 1989, num enorme espaço urbano vazio diante da Grande Casa de Estudos do Povo, passei por um norte-coreano que me perguntou baixinho: “Você fala inglês?” Foi a única ocasião (Kim Il Sung ainda estava vivo) em que um norte-coreano se dirigiu a mim espontaneamente.
“Sim”, respondi.
“Estudo no Instituto de Línguas Estrangeiras”, disse ele. (Os comunistas eram ótimos professores de idiomas). “Ler Dickens e Shakespeare é o maior e o único prazer da minha vida”. Nos dois autores, até mesmo os personagens mais maldosos e pobres têm voz própria: uma liberdade impossível na Coreia do Norte.
“Em inglês, seria correto dizer que este festival é tão bem-vindo quanto uma nevasca antes da colheita?”
Em Ricardo III, o Duque de Clarence diz ao primeiro assassino enviado pelo irmão, Ricardo, ainda Duque de Gloucester, que seu irmão jamais ordenaria tal coisa porque é rei. “Tão certo quanto neve na colheita”, responde o assassino.
Será que aquele estudante norte-coreano estava tentando me dizer algo sobre a Coreia do Norte – e que Ricardo III lhe dava uma resposta para que ele entendesse o próprio país?