Balizador da economia mundial por quase cinco décadas, o princípio do capitalismo acionário (aquele em que o propósito de uma corporação é gerar lucro para seus donos) vem sendo ameaçado por uma onda militante, cuja crença é a de que as empresas têm o dever moral de tornar o mundo um lugar melhor. Se, como dizem os progressistas, o capitalismo “acordou”, a verdade é que despertou consigo a reação de acionistas conservadores, que têm se organizado em iniciativas como o Free Enterprise Project (FEP, ou Projeto de Livre Empresa, em tradução livre). Fundado em 2007, pelo Centro Nacional de Pesquisa de Políticas Públicas dos Estados Unidos, o programa compra ações de empresas de capital aberto, para fazer perguntas difíceis nas reuniões de acionistas. O objetivo é combater as políticas “woke”, para tirar as corporações americanas da política.
No ano passado, os alvos do FEP incluíam Warner Bros. Discovery, Comcast, Twitter e Coca-Cola. Entre as críticas à produtora do refrigerante mundialmente famoso estava uma lição do LinkedIn Learning (posteriormente removida), instruindo funcionários a "tentar ser menos brancos", como parte de um treinamento de diversidade, além da oposição a um projeto de lei tido como discriminatório por exigir documento de identificação para eleitores na Geórgia. "Nós nos opomos a medidas que possam procurar diminuir ou restringir o acesso a voto. Defendemos o amplo acesso, a conveniência do eleitor, a integridade da eleição e a neutralidade política. Qualquer coisa que possa inibir estes princípios pode levar à supressão do voto", disse na ocasião o CEO da Coca-Cola para a América do Norte, Alfredo Rivera.
Em uma reunião de acionistas do Bank of America, o diretor do Free Enterprise Project, Scott Shepard, pediu ao CEO Brian Moynihan que "explicasse especificamente como exigir que os eleitores mostrem identidade para evitar fraudes é racista". A resposta, considerada por Shepard uma pequena vitória, foi que talvez o banco devesse ter uma comissão bipartite para decidir quando entrar em questões políticas.
"Todo o ativismo dos acionistas nos últimos 20 anos foi da esquerda e, cada vez mais, da extrema esquerda. Nosso objetivo não é que as empresas adotem posições políticas conservadoras de repente, mas que voltem ao negócio de vender refrigerantes", argumenta Shepard.
Em uma reunião de acionistas da Progressive, terceira maior seguradora dos Estados Unidos, Ethan Peck, do FEP, questionou “a valorização das características superficiais em detrimento do mérito” e por que a companhia prioriza “cor da pele e órgãos reprodutivos” ao contratar funcionários. A CEO Tricia Griffith exaltou a Diversidade, Equidade e Inclusão (DE&I), dizendo que a empresa deseja que sua força de trabalho “reflita os clientes que atendemos e que nossos líderes reflitam as pessoas que lideram”.
Questionada por Peck se isso supunha que “as pessoas com uma certa cor de pele pensam de uma certa maneira”, ela encerrou a conversa: “Você não pode se colocar no lugar de outra pessoa se não tiver uma organização representativa que represente o país como um todo. Você nunca poderia saber como é ser uma mulher, eu nunca poderia sentir como é ser um homem, então precisamos representar todos”.
Dificuldades
A experiência de intervir em reuniões de acionistas tem encontrado uma resistência “criminosa” por parte dos executivos, segundo relata Ethan Peck. “As elites corporativas tomam todas as medidas possíveis para excluir e silenciar os acionistas que pagam seus salários multimilionários”, conta. As dificuldades encontradas por eles nas reuniões vão desde a permissão para entrar nas assembleias (mesmo sendo proprietários), até ter suas perguntas reformuladas ou ignoradas e suas propostas de acionistas omitidas. “Embora os acionistas de centro-direita sejam os mais discriminados, os executivos ainda os desprezam mais por serem acionistas do que por serem conservadores”, garante.
A hipótese levantada por Peck é que, longe de serem militantes progressistas ou sinalizadores de virtudes, os executivos estejam usando o “capitalismo de stakeholders” (em tradução livre, capitalismo das partes, ou seja, funcionários, clientes, fornecedores, comunidades locais e a sociedade em geral), como eufemismo para um “golpe da cúpula contra os verdadeiros donos das empresas, os acionistas”. “Os executivos postulam que as corporações são responsáveis não por seus acionistas, mas sim por ‘todas as partes’. Isso permite que a liderança corporativa confisque o poder dos acionistas sob o pretexto de ajudar os outros. Não é diferente do comunismo, na verdade: ‘Dê-me sua propriedade; É para um bem maior!’”, denuncia Peck.
Segundo ele, algumas corporações utilizaram os protocolos de combate à Covid-19 para fazer reuniões virtuais (que permitiram pré-selecionar, modificar ou omitir comentários e perguntas de acionistas) ou para exigir a vacinação (o que excluiu muitos acionistas). “Nossas perguntas foram totalmente ignoradas nas reuniões da Alphabet, Amazon, Meta, Twitter, BlackRock, JPMorgan, Visa, Starbucks, Coca-Cola, Pepsi, Exxon, Chevron e outros. Na Apple, Raytheon, Boeing, US Bancorp, Marriott, Nordstrom e outros, nossas perguntas foram estrategicamente reformuladas para perguntas fáceis por um moderador. A Pfizer e a Netflix não se deram ao trabalho de responder a nenhuma pergunta. American Express, Abbott Laboratories e AES nos negaram a entrada por completo”, enumera.
Na reunião da Lincoln Financial, Ethan Peck era o único acionista presente. Ao questionar o então presidente Bill Cunningham acerca do apoio de Lincoln à Human Rights Campaign (que participou do lobby contra a lei proibindo o ensino sobre identidade de gênero para alunos do jardim de infância até a terceira série na Flórida) ele teve sua pergunta blindada por um assessor e acabou sem resposta.
O Free Enterprise Project também denuncia que as eleições de diretores corporativos não são confiáveis. Das 57 reuniões em que seus membros estiveram presentes em 2022, nenhum candidato deixou de ser eleito, de acordo com Peck. “Na verdade, nunca vi um membro do conselho receber menos de 90% dos votos. Há uma explicação simples para isso: BlackRock, Vanguard, State Street e outros gigantes da gestão passiva votam em nome de seus clientes – que são os verdadeiros acionistas – para colocar no poder esses membros do conselho que desprezam os acionistas”, lamenta.
Acionistas engajados
Investidores interessados em combater o capitalismo woke, podem se tornar acionistas engajados, juntando-se ao Free Enterprise Project. No site do programa, há uma série de orientações práticas, explicando como participar de uma assembleia de acionistas, fazer perguntas em uma assembleia virtual ou presencial, elaborar uma boa pergunta, votar e apresentar propostas em reuniões.
Contrário aos boicotes, que “são ineficazes e, francamente, um desperdício de tempo e energia”, o projeto acredita que o combate ao progressismo ocorrerá por meio do engajamento de acionistas ativistas conservadores. “Incentivamos fortemente os acionistas a se envolverem ativamente como proprietários da empresa. A melhor maneira de responsabilizar essas corporações é participar de assembleias anuais de acionistas, votar em seus procuradores, questionar executivos de negócios durante sessões de perguntas e respostas e votar em membros do conselho que abandonaram seus deveres fiduciários”, defende o FEP, em uma das “perguntas frequentes” do site.
Fórum de Davos
O conceito “capitalismo de stakeholders” tem mais de cinco décadas, mas ganhou forças nos últimos anos, com a publicação do Manifesto de Davos 2020, assinado pelo fundador e presidente executivo do Fórum Econômico Mundial, Klaus Schwab (que cunhou o termo ainda nos anos 1970).
“O propósito de uma empresa é engajar todos os seus stakeholders na criação de valor compartilhado e sustentado. Ao criar esse valor, uma empresa atende não apenas a seus acionistas, mas a todos os seus stakeholders – funcionários, clientes, fornecedores, comunidades locais e a sociedade em geral. A melhor maneira de entender e harmonizar os interesses divergentes de todas as partes interessadas é por meio de um compromisso compartilhado com políticas e decisões que fortalecem a prosperidade de longo prazo de uma empresa”, afirma o Manifesto.
O texto ainda defende que “uma empresa é mais do que uma unidade econômica geradora de riqueza. Ela cumpre as aspirações humanas e sociais como parte de um sistema social mais amplo. O desempenho deve ser medido não apenas pelo retorno aos acionistas, mas também pela forma como atinge seus objetivos ambientais, sociais e de boa governança”.
Iniciativa da Sala de Reuniões
Em abril, o Free Enterprise Project e o 2ndVote (outra organização contra o ativismo corporativo), juntamente com o fundador do grupo conservador Job Creators Network, Bernie Marcus, firmaram uma parceria com o ex-CEO do McDonald's Ed Rensi e o ex-CEO da Best Buy Brad Anderson para criar o The Boardroom Initiative (A Iniciativa da Sala de Reuniões, em tradução livre), uma ação em defesa da capitalismo.
“Servir a uma minoria vocal por ignorância é absolutamente inaceitável. Quando as empresas públicas tomam partido em debates políticos, é em detrimento dos acionistas da empresa. O capitalismo de livre mercado – um sistema responsável por tirar bilhões da pobreza e melhorar o padrão de vida mundial – está sob ataque e, em muitos casos, as corporações estão participando avidamente desses ataques por um senso de virtude equivocado”, defende Rensi, presidente executivo da Iniciativa.
O trabalho da coalizão pretende realinhar as corporações com seus principais objetivos, por meio de propostas de acionistas, da promoção da diversidade de pontos de vista nos conselhos das empresas e pela utilização de canais digitais para divulgar as ações. A ideia é dar aos acionistas as ferramentas necessárias para “vencer a luta”. O primeiro esforço da Boardroom Initiative foi uma proposta de acionistas na reunião anual do Bank of America, pedindo auditoria nas políticas de diversidade da empresa, de modo a garantir que nenhum grupo de raça ou gênero seja excluído em nome de equidade ou anti-racismo.