As rebeliões carcerárias do início de 2017, que chocaram principalmente pela sua violência, aumentaram o interesse da imprensa no PCC e em outros grupos criminosos. Mas o fenômeno não é novo – e o crescimento do grupo em vários estados do país faz com que seja cada vez mais incontornável.
Nos últimos quatro anos, 18 mil criminosos entraram para o PCC, fazendo com que o grupo seja formado por mais de 29 mil filiados em todo o Brasil, segundo o jornalista Bruno Paes Manso e a socióloga Camila Nunes Dias. Os dois aproveitaram cerca de 20 anos de pesquisa sobre o grupo para escrever o livro ‘A Guerra – A Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil’ (Todavia, 344 págs., R$ 54,90), que chegou às livrarias no último mês. Um grande panorama da história e do funcionamento do grupo foi construído a partir entrevistas com fontes do governo, do Ministério Público, do Judiciário, da polícia, das prisões, dos bairros onde o PCC é mais forte, da academia e de movimentos sociais e culturais. “Difícil contar quantas entrevistas foram necessárias”, conta Manso.
Para os autores, são vários os fatores que permitem o crescimento do grupo, cuja fundação data de 1993. Um dos fatores iniciais é a ideologia mantida pelos membros: a de que o crime fortalece o crime e que é uma espécie de apoio para os “oprimidos pelo sistema”.
“A força do PCC não decorre apenas da capacidade de governar o crime, mas também do apelo de sua proposta: um mundo do crime pacificado, capaz de melhorar a vida de seus integrantes, de seus familiares e moradores dos bairros em que atuam”, afirmam. Em resumo: em espaços onde o Estado é falho e não permite condições de vida adequadas, se abrem brechas para formas alternativas de poder.
Fortalecimento das lideranças prisionais
O sistema prisional brasileiro, cada vez mais sobrecarregado com a intensificação das prisões desde 2002, nos governos Lula e Dilma, teve sua função primária de diminuição do crime pervertida. De acordo com Manso e Camila, “a partir de determinado ponto, em vez de reduzir o crime, o aumento do número de presos produziu esse efeito colateral: o fortalecimento das lideranças prisionais”.
Outro grande fator para o crescimento desses grupos é o uso de telefones celulares, presentes em quase todos os presídios do país. Com eles, líderes podem continuar administrando os grupos mesmo depois de presos. “Nesse movimento, as prisões se tornaram um espaço de articulação dos profissionais do tráfico, a partir de uma rede que nunca esteve tão interconectada”, afirmam os pesquisadores.
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Os autores do livro se conheceram quando Manso preparava uma série de entrevistas com pesquisadores que se debruçavam sobre o PCC. O contato entre os dois continuou e a ideia do livro surgiu depois que colaboraram em uma reportagem para a revista Piauí, publicada em fevereiro de 2017. “Trabalhar em quatro mãos foi uma experiência fantástica. Porque o assunto é delicado e para colocar as coisas no papel, precisávamos concordar, o que promoveu um cuidado que talvez não tivéssemos se escrevêssemos sozinhos”, conta Manso.
Na construção do panorama histórico do grupo, os autores apresentam inclusive textos originais do PCC, os “salves” – espécie de circular enviada com mensagens e instruções para os membros. Além disso, segue uma cronologia que abarca acontecimentos do primeiro semestre de 2018, tentando lidar com informações de difícil acesso. “O tema é cheio dos silêncios e mistérios. Existem coisas que nós não compreendemos e que não sabemos, mas estamos juntando essas informações ao longo de quase duas décadas, para no livro descrevermos um processo histórico-social sobre o qual conhecíamos e que achávamos relevante para os brasileiros”, afirma Manso.
A origem do PCC
O Primeiro Comando da Capital, apesar de se tornar mais conhecido só no século 21, tem uma origem que começa antes disso. “Segundo a história contada pelas próprias lideranças do grupo, o nascimento do PCC deu-se em 31 de agosto de 1993, no anexo da Casa de Custódia em Taubaté”, afirmam Manso e Camila. E na época surge como um grupo de apoio do crime organizado – o envolvimento do PCC com o tráfico de drogas começa apenas nos anos 2000, quando buscam uma forma mais rentável de financiamento.
Na época da criação do grupo, o Comando Vermelho liderava o tráfico de drogas no país a partir dos morros cariocas, eliminando intermediários e buscando drogas direto com os fornecedores para aumentar seus lucros. Como o PCC não atuava nesse mercado, os dois grupos permaneceram próximos por muitos anos.
A violência nas prisões do país se torna incontrolável quando o PCC rompe o pacto de não agressão com o Comando Vermelho em 2016. Anunciado por um salve enviado por um grupo no WhatsApp, o rompimento cria uma situação insustentável entre membros de gangues rivais em vários presídios do país.
O PCC no Paraná
Por conta da sua localização e de suas fronteiras, o Paraná é um estado chave para o ingresso de drogas no Brasil – fazendo com que a atuação do PCC no estado seja intensa. “A última estimativa do Ministério Público de São Paulo é de que havia perto de 3 mil integrantes do PCC no Paraná. O estado sempre foi estratégico para o PCC por fazer fronteira com o Paraguai e por ter recebido historicamente uma série de lideranças importantes da facção”, conta Manso.
Segundo os autores, o PCC começou a se disseminar do Paraná a partir de 1998 – quando o estado de São Paulo começou a transferir lideranças dos grupos para prisões de outros estados como forma de lidar com várias rebeliões. É nesse contexto que alguns líderes do PCC chegaram na Penitenciária Central do Estado (PCE), localizada em Piraquara. Os autores defendem ainda que a influência do PCC na massa carcerária do estado começa a ficar evidente em junho de 2001, quando uma rebelião é organizada no PCE.
Manso e Camila defendem que, em vez de ajudarem na diminuição do crime, as transferências dentro do sistema penitenciário são outro fator do crescimento do grupo no Brasil. Foram essas transferências as responsáveis principais do crescimento do PCC tanto no Paraná como no Mato Grosso do Sul – dois estados centrais para o comércio de drogas por conta de suas fronteiras internacionais.
Existe solução?
Nos últimos anos, as soluções pensadas para o problema causado pela ascensão do PCC e o aumento da violência são baseadas no fortalecimento da polícia, principalmente a militar, e no investimento em mais presídios – incluindo até a recente intervenção federal no Rio de Janeiro. Mas os pesquisadores discordam de iniciativas como essa.
Manso e Camila explicam que os “bandidos” foram usados com frequência como bodes expiatórios por discursos políticos para permitir o uso da violência como forma de tentar proteger a população urbana do crime. Essa construção se baseia em alguns estigmas – “endereço (periferia, favela, morro), classe social (pobre), cor da pele (negro), gênero (homem) e idade (menos de 25 anos)”, elencam. A partir do momento em que pessoas com essas características são enquadradas na imagem de inimigo público, conseguem cada vez menos ter outros espaços e oportunidades na sociedade – e precisam buscar alternativas para viver. “O PCC foi um dos efeitos colaterais desse sistema”, afirmam os autores.
Segundo os autores, “as políticas públicas foram determinantes na produção desse cenário” – ou seja, a partir do momento em que o Estado diz que há uma guerra, se cria um espaço para medidas de exceção, o que gera, por sua vez, ainda mais violência, intensificando o que se queria combater.
Uma das medidas implementadas pelos gestores públicos para o problema dos grupos criminosos foi a criação do Sistema Penitenciário Federal em 2006, constituído por unidades de segurança máxima com tecnologias avançadas de vigilância e segurança, além do isolamento dos presos. Manso e Camila afirmam que nesses espaços as “lideranças passaram a se encontrar e a conversar sobre a realidade de seus respectivos estados”, fazendo com que essas prisões se tornassem um ponto central da articulação do crime no Brasil. Em uma década da criação do sistema, a população carcerária brasileira aumentou, chegando a ser a terceira maior do mundo, e os grupos criminosos cresceram.
Por isso, para os autores da obra, as soluções deveriam se basear mais em estratégias de inteligência para frear o crescimento desses grupos. Mas “as autoridades preferiram abusar da violência e do voluntarismo do policiamento ostensivo, como se fosse outra gangue rival, apenas um pouco mais armada e poderosa. Em vez de garantir o Estado de direito, apenas aceleraram a engrenagem de homicídios”, afirmam os autores.
O mais importante seria compreender a lógica do sistema, que permite um crescimento econômico até mesmo durante crises. “A melhor estratégia parece ser atacar financeiramente essa lucrativa indústria. Apesar de sofrer resistência em diversos países e correntes políticas, a regulamentação desse mercado e a descriminalização das drogas são a forma mais eficiente de reduzir os ganhos do tráfico e controlar a violência. A capacidade de sedução do tráfico é diretamente proporcional ao dinheiro que oferece para aqueles dispostos a se arriscar”, opinam. Ainda segundo os autores, em um cenário assim caberia ao estado educar a sociedade quanto ao consumo de drogas e aos riscos que oferece, de modo semelhante ao feito com o álcool e cigarro.
Sasha Darke, professor de criminologia da Universidade de Westminster, no Reino Unido, que realiza pesquisas há 10 anos no Brasil, defende que a legalização das drogas não seria capaz de dissolver completamente esses grupos, que para ele se originam como formas de governança alternativas. Ele defende ainda que o aumento do sistema prisional também não é uma forma eficiente para se lidar com a guerra das gangues – para ele, é necessário que o sistema seja humano também.
“A desumanidade é uma causa de raiva, ansiedade e falta de sensibilidade, sentimentos que, como é sabido, tornam os indivíduos mais propensos à violência”, conta. Além disso, Darke afirma que são as péssimas condições de vida nos presídios que fazem com que as pessoas busquem condições melhores ao se filiar a determinados grupos. Sua pesquisa, já publicada em inglês no Reino Unido, será publicada em 2019 no Brasil com o título ‘Convívio e Sobrevivência: Ordem Prisional em Cogovernança’, pela editora D’Plácido.
Como funciona o PCC
Uma das grandes diferenças entre o PCC e outros grupos criminosos é o discurso – para eles, os crimes são praticados em nome dos “oprimidos pelo sistema”, não como meio de enriquecimento dos líderes. “Com o PCC, o crime passaria a se organizar em torno de uma ideologia: os ganhos da organização beneficiariam os criminosos em geral. De acordo com essa nova filosofia, em vez de se autodestruírem, os criminosos deveriam encontrar formas de se organizar para sobreviver ao sistema e aumentar o lucro”, afirmam Bruno Paes Manso e Camila Nunes Dias. Baseados nessas premissas, o grupo tem um sistema diferente de funcionamento:
â Formação de redes – o PCC tem uma organização horizontal, baseada na formação de redes, fazendo com que a permanência do grupo não dependa completamente de um líder específico.
â As “sintonias”, células da rede, atuam em prisões e bairros pobres das cidades brasileiras e estão conectadas, formando coletivos decisórios em âmbito regional, estadual, nacional e internacional. “Cada unidade prisional e cada bairro onde há controle do PCC tem um representante da facção para conduzir os negócios e servir de referência na resolução de conflitos”, afirmam os autores.
â Novos filiados podem ser captados tanto dentro como fora das prisões – assim o grupo consegue fazer ações de diversas formas. Os filiados pagam “cebolas”, que são a mensalidade de filiação. O dinheiro coletado é usado para financiamento das atividades do grupo.
â Além das mensalidades, o grupo consegue dinheiro com rifas e com a venda de drogas. O tráfico é organizado por vários membros do grupo.
â Além de participarem das ações coletivas, os membros podem continuar a exercer outras atividades paralelas – e podem contar com ajuda (como financiamento ou empréstimo de armamento) do grupo para realizá-las.
â Decisões e informações são passadas pelos “salves”, enviados principalmente por grupos no WhatsApp. Essas circulares explicam o posicionamento da facção, organizam as rifas e as próximas ações.
PCC : crueldade e violência
Durantes os anos, o PCC se tornou conhecido pela sociedade em seus momentos de maior tensão. A seguir, alguns dos momentos mais bárbaros protagonizados pelo grupo:
1990: durante a década inteira, a briga entre grupos rivais por território e liderança no tráfico de drogas criou um período de instabilidade nas prisões, principalmente de São Paulo. Segundo um levantamento feito por Camila Dias, dez rebeliões foram realizadas no estado apenas do ano de 1990.
Maio de 2006: devido a transferências de presos do PCC, principalmente líderes do grupo, para outras penitenciárias, o grupo começa uma série de atentados na noite de uma sexta-feira. Durante o fim de semana, foram 72 mortos e cerca de 50 feridos, com ações dentro e fora das prisões. Esse episódio torna público o domínio do PCC nas cadeias estaduais de São Paulo.
Junho de 2016: naquele mês teve fim uma tensão que já se desenrolava havia algum tempo na fronteira entre Brasil e Paraguai no Paraná por luta de território para o tráfico de drogas. Uma série de ataques é realizada, resultando na morte do traficante Jorge Rafaat Toumani, uma das forças contrárias ao PCC.
Outubro de 2016: a presença de dois grupos rivais armados e a superpopulação em um presídio privatizado em Roraima marca o início da maior sequência de assassinatos em massa da história do sistema carcerário brasileiro. Os ataques acontecem depois que Comando Vermelho e PCC começam a se desentender – logo depois, o PCC manda um salve no qual corta relações oficialmente entre os grupos.
Janeiro de 2017: com a rivalidade entre PCC e o Comando Vermelho completamente acirrada, o ano começa com cenas que assustam os brasileiros, com um grande massacre de presos no Amazonas quando outros grupos atacam membros do PCC, com imagens brutais de violência sendo compartilhadas por redes sociais. O mês teve grandes eventos intercalados por ocorrências menores. No total, foram 67 mortos em Manaus, 33 em Roraima e 26 em Natal.
Para pesquisador, facção funciona como uma sociedade secreta
Resultado de duas décadas de pesquisa do sociólogo Gabriel Feltran, o livro “Irmãos - Uma História do PCC” (Companhia das Letras, 320 pgs., R$ 49,90) fornece uma perspectiva alternativa para entender o funcionamento do PCC: de que o grupo funciona como uma sociedade secreta. No livro, o autor aprofunda sua hipótese e reflete por que se deve pensar sobre o PCC de uma maneira diferente do que se pensou sobre outros grupos criminais até então.
Feltran afirma que um dos motivos do crescimento do PCC se dá pela melhora de condição de vida que oferece aos presos que se tornam seus seus filiados. O grupo foi responsável, por exemplo, por proibir o estupro e o consumo de crack nas prisões paulistas, além de ajudarem com coisas mais simples, como acesso a escovas de dente e colchões. “Oferecendo aos presidiaÌrios uma ordem previsiÌvel para a vida cotidiana, o PCC ganhou o respeito e o consentimento ativo da massa prisional em SaÌo Paulo”, afirma Feltran no livro.
O sociólogo defende, porém, que nem a metáfora de um modelo empresarial nem a metáfora de uma força militar dão conta completamente do que é o PCC, ainda que expliquem o funcionamento do grupo em partes. Para ele, o modelo de funcionamento do grupo lembra muito mais uma sociedade secreta, como a maçonaria (ressalte-se que a comparação é válida somente para descrever o modelo de organização, de forma alguma o objetivo ou missão dos grupos).
“Como em toda fraternidade, no PCC haÌ apoio muÌtuo entre os irmaÌos”, argumenta Feltran. “NingueÌm atravessa os negoÌcios nem a honra do outro irmaÌo, todos se ajudam e assim cada um prospera, garantindo o progresso da irmandade. Na visaÌo dos seus integrantes, o objetivo da sociedade eÌ o progresso dos irmaÌos. Como consequeÌncia, o progresso de sua famiÌlia e comunidade de iguais. As açoÌes criminais, e naÌo o trabalho regular, saÌo para o integrante do PCC o meio para esse progresso”.