O brasileiro comumente fica indignado ao ver certas sentenças judiciais que favorecem comportamentos corruptos, principalmente dos poderosos. Quando surge algo como a operação Lava Jato, que colocou muitos criminosos do meio político e empresarial na cadeia, a população sente que a justiça está sendo feita. Mas esse sentimento não é duradouro, pois logo surgem sentenças que inocentam ou abrandam o crime. Essas decisões são um contrassenso para a população em geral. Em decorrência dessas decisões tão comuns em nosso país, muitos desacreditam da justiça e acham que a corrupção endêmica é parte da nossa nação. Entendem isso como o “jeitinho brasileiro”, que é uma forma lapsa de moral constituída em um costume que é refletido em nossas instituições.
No fundo, as pessoas entendem que as leis e instituições são meros instrumentos que as pessoas com acesso ao poder usam para se beneficiar ou punir seus adversários. Toda a argumentação retórica de políticos e juristas que sustenta esse sistema não passa de uma hipocrisia. Aparentemente, podemos acreditar que o brasileiro perdeu o senso de justiça e, de forma equivocada, por um desconhecimento de nossa história, é comum atribuir isso a uma herança colonial portuguesa.
No entanto, o fato é que o clima generalizado de corrução está intimamente ligado ao desprezo pela lei natural. Quando o brasileiro fica indignado com corruptos soltos é por que ainda preserva uma visão de lei natural em sua moral e sabe que, apesar de o sistema jurídico do país permitir a impunidade, há uma sentença correta que deveria estar em sincronia com a ética. É claro que existem os exageros e nem sempre o senso comum tem a capacidade de ser o melhor juiz para casos complexos, mas justamente por isso precisam valorizar a lei natural que prevalece sobre a lei positivada do ordenamento jurídico – e a lei positiva só será justa se estiver em acordo com a lei natural.
A lei e a moral
Antes de tudo há uma crise de compreensão da moralidade em nosso país. A raiz disso está no fato de que com o predomínio do positivismo jurídico, a letra da lei passou a ser entendida como a própria moral. Isso abriu espaço para que a política do bem comum fosse substituída pela política maquiavélica e todo tipo de técnica de manipulação empregada para justificar os maiores absurdos jurídicos, do juiz de garantias ao abolicionismo penal.
Muitas leis não representam de fato a moral e acabam por se tornar instrumentos que pretendem favorecer interesses de certos grupos. Ofusca-se, assim, o fato de que o direito tem por fim promover o bem comum e não a uma classe específica da tecnocracia. No entanto, o imaginário dos legisladores e políticos brasileiros de hoje pensa um Estado que não é fundamentado na ordem natural, mas numa norma originária hipotética.
O Brasil não foi criado pela Constituição de 1988 e a ordem jurídica não tem essa lei como seu fundamento último. Ao contrário do que muitos pensam, São José de Anchieta contribui muito mais para apresentar os fundamentos do Estado brasileiro do que a atuação política de Ulysses Guimarães na constituinte.
Isso porque o primeiro tentou ensinar a lei natural ao nosso povo enquanto o segundo tentou criar uma estrutura artificial que não tem fundamentos concretos em nossa nação, mas só na vontade de um grupo de políticos social-democratas que estavam no Congresso naquela ocasião. Não passa de um efeito psicológico pensar que, se a Constituição for tratada como absoluta, o resultado será uma segurança jurídica real e duradoura. Nesse caso, o que realmente ocorre é predomínio da artificialidade, que se manifesta quando os intérpretes da lei se tornam autoridades máximas.
Há um grande clamor em nosso país para o fim da instrumentalização das instituições, mas pouco se atenta para o fato de que uma das consequências lógicas do positivismo é o ativismo pós-positivista, cujo relativismo nos leva a entregarmos nossa organização jurídica aos desígnios de indivíduos. A insatisfação da população com o Supremo Tribunal Federal, que vê a Corte muitas vezes servindo interesses políticos em grande parte é decorrente dessa formação ideológica dos juízes. Quando um país perde o rumo na relação entre política e direito, como o caso do Brasil, a solução está em rediscutir o problema a partir das bases essenciais do Estado.
A refundação do Brasil
Um intelectual de grande importância que falou sobre esse tema foi o professor José Pedro Galvão de Sousa, um dos maiores filósofos do direito brasileiro. Apesar de ser um brilhante pensador, o professor Galvão foi extremamente perseguido no meio universitário brasileiro, seja na USP ou na PUC/SP (faculdade que ajudou a fundar). Mas, sem se deixar levar pelas ideologias contemporâneas, ele conseguiu deixar uma obra riquíssima em entendimento da formação jurídica do Brasil. A partir de sua obra podemos pensar em três formas de restaurar a ordem política no Brasil.
A primeira forma é restaurar a fundação do Brasil e o seu papel no mundo hispânico. A nação brasileira foi fundada sobre o espírito cruzado, sobre o desejo de levar a cristandade para além dos limites do continente europeu. Portugal expandiu seus domínios para cá no clima da Guerra de Reconquista. A vontade portuguesa de circundar o globo em busca de novas terras se devia, em grande parte, ao bloqueio que os muçulmanos fizeram das rotas tradicionais da Europa.
Os Lusíadas ilustram bem o espírito desbravador do povo português. Assim, o Brasil foi resultado de um esforço épico dessa nação europeia, tão pequena em termos territoriais e populacionais, mas gigante em termos políticos e culturais. O Brasil de São José de Anchieta é herdeiro da mentalidade que nos deu Os Lusíadas. Dentro dos países que herdaram a cultura ibérica, marcada pela miscigenação e por um forte senso de comunidade, o Brasil é o maior. Por vocação, o Brasil é um líder do mundo hispânico.
É preciso ressaltar que, sem a tradição cristã europeia, o Brasil não existiria, algo que os progressistas da Semana de Arte Moderna não entenderam, pois foi essa tradição que unificou os vários povos que aqui viviam. Nosso país precisa, nessa concepção, assumir seu papel de líder do mundo hispânico e entender como se deu sua própria fundação a partir do contexto da Cristandade.
Subsidiariedade
A segunda forma que Galvão de Sousa apresenta para restaurar a ordem política em nosso país é recuperar a noção orgânica de sociedade e de Estado pautado pela subsidiariedade. Não há como separar um indivíduo da comunidade na qual ele está inserido. O individualismo negligencia a realidade mais básica que pode ser vista nas famílias ou nas associações: a da vida comunitária. A sociedade orgânica não é a redução dos entes sociais a uma função do todo, como no fascismo ou socialismo, mas justamente um reconhecimento da importância das relações humanas naturais. Por isso o Estado não pode ser uma ordem imposta sobre as pessoas, e sim decorrência de uma sociedade bem organizada. Essa visão está bem alinhada ao tradicionalismo hispânico.
A terceira forma é restauração da lei natural. A lei humana precisa se orientar pelo bem comum (a hipótese contrária é repudiada pela reta razão). Natureza não é tomada em um sentido biológico, mas como a essências das coisas vista sob o ponto de vista da finalidade. A lei natural, descoberta pela reta razão, nos direciona à valorização da vida, da família e do trabalho. Os direitos são percebidos em uma ordem social que também se ordena em busca do bem do espírito.
A fundamentação do direito positivo na lei eterna, que Cícero tanto proclamava, era tida pelos romanos como um elemento constituinte da ordem social saudável. A única forma eficaz e tradicional de combater a arbitrariedade jurídica é a aderência à lei natural. Do modo como se dá a fundamentação jurídica hoje, os juízes ativistas escapam da lei quando essa não segue a pauta progressista. Já quando as leis estão alinhadas ao progressismo esses mesmos juízes as seguem à risca.
A estrutura política se fragiliza quando baseada em noções vagas de contratualismo e democracia, pois não há segurança nenhuma para a ordem jurídica, que acaba por ficar à mercê do grupo político mais organizado e é manipulada conforme os interesses dominantes.
Sem os fundamentos morais baseados na lei natural, o que se consolida na democracia não é a vontade do povo, mas a vontade de quem tem o poder sobre o aparato institucional. O positivismo jurídico encobre a instrumentalização utilitarista dos tribunais com um verniz de ciência e tecnicalidade.
Estado Tecnocrático
José Pedro Galvão de Sousa nos deixou outra observação de grande importância quando descreve a perspectiva do “Estado Tecnocrático”. Essa perspectiva é filha da síntese entre utilitarismo e positivismo. Essa concepção vê os homens como engrenagens de um sistema encabeçado pela administração estatal, que está refém do cientificismo e dissociada de análises profundas da sociedade, de modo que concebe o planejamento central como absoluto.
O estado tecnocrático é a instrumentalização institucionalizada da sociedade por meio da imprensa e do gerenciamento pretensamente técnico. Contudo, ele se opõe à visão de sociedade orgânica que atua em sincronia com um Estado pautado pela subsidiariedade e de acordo com o bem comum. Assim, como o positivismo jurídico torna o sistema judiciário um instrumento daqueles que fazem e interpretam as leis, o Estado Tecnocrático é a instrumentalização de toda a sociedade organizada em favor daqueles que são os donos do poder.
Em última análise é preciso frisar que essas propostas de restauração política que identifico na obra de Galvão de Sousa são naturalmente inspiradas na concepção tomista do Estado. Santo Tomás resgatou a noção de autoridade, ao mesmo tempo em que ressaltava a importância da condução do Estado para o bem comum, além do regime misto como forma de evitar o poder tirânico.
Se voltarmos à concepção tomista de Estado, atentos às contribuições importantes como a Galvão de Sousa ou de São Roberto Belarmino, sem dúvidas teremos uma visão mais clara da relação entre uma organização estatal saudável e o problema de uma ordem jurídica instável.
O Estado numa visão tomista e uma sociedade pautada pela lei natural são os antídotos contra o relativismo e fisiologismo que assolam a nação brasileira.