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No último texto que escrevi, e que ainda não saiu, o editor ficou sem entender o que falei sobre a mentalidade do racista do Eixo. O entendimento mútuo só é possível quando partilhamos, leitor e escritor, um pano de fundo cultural. Falo português, e vocês entendem; menciono Machado, e vocês sabem muito bem de que se trata. Mas ao falar de racismo europeu eu deveria ir com calma, porque, embora tenhamos todos crescido no mesmo país e compartilhemos muitas coisas, o meu baú de referências inclui alguns artigos do Eixo. Nasci e cresci em plena Bahia, mas com menos de dez anos ouvi coisas como: “Sua avó tem gengivas roxas, e isso quer dizer que ela é negra, e se ela é negra, você é negra. Sabia que nos Estados Unidos quem tem uma gota de sangue negro é negro?” Aí eu era acusada (o tom era acusatório) de ser negra no meu quarto, ia pra escola, e era branquela.
Acontece que eu nasci na Bahia graças ao acaso, e descendo de uma família mestiça europeia que fugiu da II Guerra. “Mestiço” aqui não quer dizer nada diferente de branco. Naquele contexto, ser uma mistura de russo, ou uma mistura de judeu, ou uma mistura de europeus de diversas nacionalidades, era o bastante para ser problemático. Dizer “Eu sou 1/4 russo” no tom de quem confessa um pecado é algo que não faz sentido para o brasileiro comum, mas faz sentido para quem fugiu da II Guerra.
Eu cresci afastada desse pessoal, mas as explicações da one drop rule e a acusação ficaram comigo, e serviram para elucubrações. O meu coleguinha negro deve ter um tataravô português. Por que, então, não devo dizer que ele é branco, se o jogo é achar tataravôs de cor diferente? Mas perguntar isso dava vergonha, pois as verdades eram despejadas com solenidade. E os portugueses também não eram exatamente brancos: eram gente muito inferior aos outros europeus, e a deplorável situação do Brasil se explicava pela sua colonização portuguesa.
Além de elucubrações infantis, a coisa trazia alguma tensão. Por exemplo: nós, brasileiros, aprendemos que é feio dizer que as pessoas são melhores ou piores por serem mais claras ou mais escuras. Se eu digo que não, eu não sou negra, será que não estou traindo os meus colegas e professores dessa cor? Por outro lado, que papel ridículo eu não faria se chegasse à escola e dissesse: “Oi, gente, sou negra!” Todo mundo ia rir da minha cara, e com razão. Afinal, por que um negro bisneto de branco é negro, mas um branco bisneto de negro é negro? E me incomodava ouvir que minha avó acaboclada era uma “negra de cabelo liso” pelo mero fato de ter gengivas escuras. Como são as gengivas de um índio? Por que era tudo branco ou negro, sem índio?
Eu recusei o critério da one drop rule, que ficaria só num baú irrelevante de memórias infantis. Considerei que os brasileiros normais estão certos: as pessoas podem ter qualquer cor diferente das dos avós; e se eu tenho antepassados portugueses, negros e índios (como quase todo brasileiro), isso significava que eu não poderia existir se não houvesse o Brasil, essa coisa que os portugueses inventaram lá em 1500 enquanto procuravam especiarias.
A contaminação da raça
Mas voltemos aos racistas. Como eu dizia, todas essas coisas passadas na década de 90 poderiam ficar num canto, se não fosse a ascensão do racialismo. Vejam o que escreve “o” intelectual do movimento negro brasileiro, Abdias do Nascimento, em O genocídio do negro brasileiro, cap. 7: “Seria […] correto estimar em ao menos 50% da população do Brasil como pertencente à raça negra, usando-se o critério da classificação fenotípica, ou seja, aquela baseada na aparência. Se nossa perspectiva, entretanto, observasse uma linha rigorosamente racial [sic], classificaria todos os brasileiros com sangue de origem africana como negros, e chegaríamos de fato à conclusão de que o Brasil é de fato um país negro. De fato, e não em função de conceitos teóricos, já que perto de 80% da sua atual população de 110 milhões de habitantes estão definitivamente ‘contaminados’ [sic] com o sangue de origem africana, o Brasil se erige como o segundo maior país negro do mundo. Só excedido pela Nigéria.” Aí está a minha lição, bem como a sua explicação: sangue negro contamina o branco. Ele está com o Eixo.
No entanto, seria mais preciso dizer que o sangue não-branco contamina o branco, pois o mesmo Abdias já tinha resolvido, na introdução do livro, que tudo o que não é “branco” é eufemismo (sic) para “negro”: “Um brasileiro é designado preto, negro, moreno, mulato, crioulo, pardo, mestiço, cabra – ou qualquer outro eufemismo; e o que todo mundo compreende imediatamente, sem possibilidade de dúvidas, é que se trata de um homem-de-cor, isto é, aquele assim chamado descendente de africanos escravizados. Trata-se, portanto, de um negro, não importa a gradação da cor da sua pele.” Aí está Abdias classificando a minha avó como negra de cabelo liso.
Antirracista é o Eixo, e racista é o brasileiro?!
Um não-homem
A gente brasileira sadia e normal reconhece o negro como gente, tão gente quanto o branco. A gente baiana, em particular, está acostumada a uma estética de origem iorubá, e tem dificuldade até de pensar no conceito de negro claro de cabelo liso, ou negro de pele clara. Uma bonita pele negra contrasta com a roupa branca e os braceletes de concha. Se for para pensar em Ogum, orixá do ferro, virá à mente um negão imponente. Meu ponto é que o negro por aqui tem um valor estético e cultural por si só; não é apenas uma negação da brancura. “Pouca tinta” ou “tinta fraca” é um xingamento dirigido a mulatos por negros. “Azedo” é um adjetivo que costuma acompanhar o substantivo “branquelo”. A cor entre nós é considerada um indício de saúde e vigor.
Mas essa perspectiva verdadeiramente racista, do Eixo, considera o negro como uma negação, uma contaminação, uma ausência. O que leva a uma pergunta relativa aos racistas: que homens são esses que temem ser menos homens? (Ser contaminado é ser menos homem.) Como é possível um homem ser uma negação do homem? A resposta curta e simples é que são loucos. Os europeus estavam loucos em meados do século passado, e o nazifascismo foi uma loucura coletiva.
A resposta um pouco mais longa é que a raça, para eles, é uma religião. Eles creem que os homens saíram prontos e puros da Natureza, cada qual num canto do globo, sem um Adão e Eva primordiais a unirem toda a humanidade. Com a queda da autoridade da Igreja, pipocaram pela Europa as teses pseudocientíficas da poligenia humana. A grande questão que atormentava os renascentistas — a queda do Império Romano — ganhou uma explicação racista no século XIX, que ficou popular no século XX: Roma caiu por causa da miscigenação. Miscigenação é degeneração, e desde a origem do mundo o homem só decai, só se torna menos homem.
Uma espécie de religião laica surgiu, que é o culto da raça. Em vez de se considerar que a cristandade é o corpo da Igreja, e que corpo e alma são coisas muito distintas, o nacional-socialismo considerava que cada teutão é parte do corpo da Raça, e a Raça é a entidade máxima a ser preservada contra a degeneração rampante. Lá na Alemanha, a purgação da Raça começou com a eutanásia e esterilização de “degenerados”. Por que o que importa não é a alma do indivíduo, mas sim a coletividade da raça, que também é uma coisa espiritual e mística. Loucos, os alemães purgavam a Raça matando ou esterilizando seus componentes "não sadios".
Além de algoz de outrem, o racista é algoz de si mesmo. Vive as paranoias da degeneração, ainda que não seja mestiço. Por algum motivo, tendem a ter uma angustiosa atração romântica por gente da raça proibida. Até onde eu possa observar, tendem a passar para a alimentação a mania de pureza, e se apegam a modas de alimentação natural supostamente saudável, tais como a macrobiótica ou o vegetarianismo. O que é compreensível, se o corpo é tão importante para uma apreciação moral.
E o Brasil?
É inegável que temos preconceitos relativos à cor no Brasil, e é isso que usualmente se entende por aqui como racismo. A meu ver, o cientista social deveria se ocupar de distinguir as coisas, e do fato de duas coisas ruins serem parecidas não se segue que devamos colocá-las no mesmo balaio. Até porque, se chamarmos o brasileiro preconceituoso de racista, do que chamaremos o pessoal do Eixo que está entre nós?
O Brasil não nasceu capitalista. Quando os portugueses aqui chegaram, vinham de uma sociedade de status, onde a mobilidade social existia por meio da Igreja. Se você nasceu plebeu, não vai ser nobre nunca; e, se nasceu nobre, não vai ser plebeu nunca. Numa sociedade de status, berço é tudo, e falta de berço é demérito. Numa sociedade capitalista, é o contrário: olhamos com admiração e respeito o self made man, e desprezamos o herdeiro acomodado.
Ora, nossa sociedade não tem valores inteiramente capitalistas, e ainda traz resquícios da sociedade de status. Daí vem o sentimento de superioridade que não poucos brasileiros têm em relação aos negros, que têm estampada na pele a falta de berço. Os negros e os pobres que morrem sem atendimento em hospital, ou alvejados por uma polícia trapalhona, são vistos como plebe sem valor, que pode morrer. O assassinato de um “nobre” de classe média mobiliza a imprensa e a polícia, mas um zé ninguém é só plebe, e plebe é irrelevante. Isso é grave, isso causa mortes, mas isso não é algo baseado na ideia de raça. Se não é baseado na ideia de raça, não é racismo.
O brasileiro comum não é racista. Brasileiro só é racista quando tem contato com intelectualidade, pois é nesse nicho que se difundem ideias racistas. O que aconteceu comigo criança acontece com eles nos bancos das universidades. Fui apresentada ao racismo por uma adulta importante, mas havia outros adultos importantes. Já os brasileiros de elite eram apresentados ao racismo na academia, e “ciência” era isso. Depois essa elite vira para o seu povo e fala — no século XX e no século XXI — que somos um país abominável por motivos raciais.
Não somos. Somos, nesse quesito, um país melhor que os outros. Só precisamos olhar pro espelho, sem baixar a cabeça.