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Tempos atrás, quando os anos 1980 ainda estavam fora de moda, uns amigos e eu gracejávamos que desenvolveríamos um projeto chamado "mensagens evangélicas em filmes de ação", no qual comentaríamos cenas de filmes (Steven Seagal, em Força em Alerta, e sua humildade ao esconder suas medalhas de guerra e servir no submarino nuclear como um simples cozinheiro; Stallone, no final de Rambo II, no Vietnã, sem se preocupar com o que comer ou vestir; Denzel Washington, em Chamas da Vingança, afirmando, pouco antes de explodir seus inimigos, que o perdão era entre eles e Deus e que ele só iria marcar o encontro) e o seu sentido espiritual.
O projeto, é claro, não passava de uma brincadeira - que tinha, no entanto, sua razão de ser, já que o arquétipo do herói, no Ocidente, é derivado, em última análise, da vida de Cristo. Mas uma das cenas que gostávamos de comentar me veio à mente na semana passada, quando procurava responder a uma questão no instagram: Deus é um universal?
Uma resposta breve: se o termo universal se refere a noções lógicas como o gênero e a espécie ou então, seguindo uma tradição platônica, às formas inteligíveis, Deus obviamente não é universal. Mas a pergunta merece um melhor desenvolvimento, pois, para a tradição da filosofia antiga e medieval que chamamos de teísmo clássico, Deus tampouco é um ente concreto.
Segundo filósofos como Plotino, o pseudo-Dionísio Areopagita e São Tomás de Aquino, não podemos falar de Deus como falamos de outras coisas; não podemos apontar para Ele como apontamos para uma mesa, uma árvore ou um ser humano, pois o Primeiro Princípio deve ser metafisicamente diverso de tudo o que cria. Ele não pode ser um ente, isto é, alguma coisa determinada, dotada de uma essência, pois Ele é a razão de ser de todos os entes.
Quando pensamos assim em Deus, Ele deixa de ser a explicação última; mas é justamente dessa maneira que boa parte dos filósofos, desde o nominalismo de Guilherme de Ockham, o concebem - o que, seguindo a trilha de Heidegger, a filósofa Marilyn Adams chamou de erro ontoteológico.
É aqui que me lembrei da cena de Rambo III, quando o coronel Trautman, mentor de Rambo, é preso em uma fortaleza soviética no Afeganistão. Rambo acaba o resgatando, com a ajuda dos talibãs (que, nessa época, lutavam contra os invasores da URSS), mas, antes disso, tenta resolver seu problema sozinho; quando os soviéticos percebem, um deles exclama: "quem esse sujeito acha que é, Deus?" E então, em uma dessas frases icônicas que ocupam um papel central em um filme assim, o coronel responde: "não, Deus teria piedade".
O que Rambo tem a ver com a metafísica (oudén prós tón Diónyson, diriam os atenienses antigos)? É que o Deus dos filósofos modernos se parece com ele: é onipotente (Rambo explode um helicóptero de guerra soviético com uma flecha), onipresente (invade a fortaleza inimiga sem grandes problemas) e onisciente (sempre sabe qual a decisão certa a tomar); a Rambo, apenas lhe falta a piedade e é nisso somente que se diferencia de Deus.
O ateísmo filosófico contemporâneo é fruto do erro ontoteológico. Para dar o exemplo de um argumento popular em fóruns da internet, o argumento do monstro do espaguete voador: “não posso provar que Deus não existe, mas também não posso provar que o monstro do espaguete voador não existe”; ou, em suas variantes: “também não posso provar que papai Noel não existe” ou “por que tenho que acreditar na existência de Deus e não de Zeus?” Esses seriam argumentos válidos se Deus fosse um ente como são Zeus ou o monstro do espaguete voador.
Um outro exemplo: o problema do mal que, para antigos e medievais, nunca teve a força que tem para os modernos: “se Deus é bom e todo poderoso, por que o mal existe?” O pressuposto do argumento é que entendemos a bondade de Deus. O que estamos falando, no fundo, quando defendemos o raciocínio, é: “se Deus fosse bom como eu sou bom, não existiria esta realidade, seres humanos sujeitos ao sofrimento".
Mas a verdade é que para o teísmo clássico, não entendemos a bondade de Deus; ela é uma realidade que a inteligência humana não pode abarcar; por isso, não podemos especular a respeito do que Ele poderia ou não fazer; não temos a visão do todo, não sabemos, a não ser de modo vago e impreciso, o que Ele é. Nossas afirmações a respeito de sua bondade têm o seu sentido porque Ele é a causa do Ser e a razão última da perfeição de todos os entes; mas não sabemos no que ela consiste; temos apenas a experiência da bondade, sempre parcial, dos entes criados. Falar que Deus não pode existir porque no mundo existe mal é cair nos pressupostos do erro ontoteológico.
Qual é a visão dos antigos e medievais, de Plotino e Agostinho, do pseudo-Dionísio Areopagita e Tomás de Aquino? Deus é o Absoluto, o princípio último da realidade, o fundamento do ser. De acordo com São Tomás, é o ato de ser subsistente, não um ente. Para o pseudo-Dionísio Areopagita, como Ele é a causa de todas as coisas, não pode ser nenhuma delas (cf. a Teologia mística). Nossa inteligência humana não é capaz de conhecer o que é essa realidade que cria ex nihilo tudo o que há. Nenhum ente criado, por si mesmo, pode abarcar o Criador de todas as coisas; um Deus que caiba em minha mente não pode ser o Deus verdadeiro.
São Tomás escreve na Suma Teológica que de Deus só podemos saber o que Ele não é. Em contraste, na filosofia analítica contemporânea existem autores que pensam até mesmo que Ele deve estar sujeito ao tempo, já que não entendem a noção de eternidade. É que somos seres temporais e os analíticos, filósofos que se recusam a falar sobre aquilo que não podem compreender. Em contraste com a teologia negativa - o discurso que, nos limites da linguagem, busca falar sobre o que não pode ser dito -, a filosofia analítica tem a tendência de reduzir a teoria ao que pode ser nomeado (sobre o que não se deve falar, deve-se calar, escrevia Wittgenstein em seu Tratactus) e que se presta a se tornar um objeto de pensamento; até o Princípio Primeiro de todas as coisas é encarado assim - o que chamo de falácia objetualista. Atribuir existência apenas ao que podemos entender, eis o fundamento do erro ontoteológico.
A diferença entre o ser de Deus e os entes concretos pode ser captada a partir das críticas dos pressupostos do argumento do monstro do espaguete voador. Posso provar, por um raciocínio metafísico, que Deus existe, mas não que Thor ou Zeus existam. Eis o ponto: ainda que Zeus seja um deus, um ente poderoso e superior aos humanos, ele não é o princípio absoluto da realidade.
Para provarmos a existência de um ente concreto, mesmo de um deus, precisamos de uma evidência empírica, ao menos indireta. Sei que uma árvore existe porque a vejo; sei que meu tataravô existiu porque eu mesmo existo. Se Zeus aparecesse para alguém, provaríamos a sua existência. Mas o Princípio Primeiro é uma necessidade metafísica; é o necessário que explica o contingente, o absoluto que torna inteligível o relativo, o motor imóvel que evita a regressão infinita do movimento, o puro ato de ser que torna possível todo ente. Se Deus fosse um ente, ainda que todo poderoso, não seria o Absoluto; a realidade que explica todas as coisas deve estar para além de todas elas; deve ser absolutamente simples, como notavam Plotino e São Tomás, pois a multiplicidade pressupõe a unidade, e superior a toda essência, já que é o próprio fundamento da possibilidade de qualquer uma delas.
Em suma, Deus não é um universal, pois não é um objeto de pensamento, nem um ente concreto - um Rambo com piedade -, já que é a razão de ser de todo ente e todo objeto de pensamento. De Deus, só podemos, de modo preciso, falar o que Ele não é, pois nossa linguagem surgiu para nomear as coisas deste mundo. Mas, quando entendemos o mundo como um espelho imperfeito a refletir de modo múltiplo a unidade do Ser, então podemos redescobrir a linguagem analógica como a mais adequada forma de linguagem para a teologia.