Mesmo para padrões brasileiros de corrupção, o valor é assombroso. O grupo J&F, que pertence aos irmãos Joesley e Wesley Batista, fechou na quarta-feira (31) o maior acordo de leniência da história. Vai pagar ao governo brasileiro R$ 10,3 bilhões de multa. Durante vários anos, a holding, que inclui a JBS Friboi, distribuiu propina para 1.829 candidatos eleitos. O esquema revelou algo gravíssimo sob qualquer ângulo: grandes empresas em conluio com políticos usurparam a democracia e o capitalismo brasileiros.
Nesse sistema, candidatos turbinados por caixa 2 e formas ilícitas de arrecadação são alçados ao poder e, em contrapartida, empresas financiadoras deste modus operandi obtêm vantagens indevidas, se sobrepondo à concorrência graças aos benefícios obtidos sob o guarda-chuva governamental.
Durante o processo eleitoral, quanto maior o volume de recursos financeiros disponíveis um candidato tiver, maiores são as chances de ele se eleger: o dinheiro é fator determinante para o sucesso de uma campanha.
Para os financiadores, o retorno para o dinheiro investido vem por meio do superfaturamento de obras ou contratos generosos com o poder público que incluem — como no caso da JBS — empréstimos a juros camaradas.
“Não é doação, é investimento. Existem estudos que indicam que a cada R$ 1 doado em campanha, as empresas conseguem outros R$ 8,5 em contratos públicos", afirma Gil Castello Branco, secretário-geral e fundador da ONG Contas Abertas.
Neste esquema espúrio, criou-se um sistema de ganha-ganha entre empresas escolhidas a dedo pelo governo para se tornarem campeãs nacionais, que depois financiariam a tomada permanente do estado por grupos políticos comprometidos até a medula. E um sistema de perde-perde para todos os eleitores e contribuintes, que na hora de votar não conheciam os bastidores corruptos das campanhas, e que tiveram o dinheiro de seus impostos usados para enfraquecer a livre concorrência..
Contrapartida óbvia
A partir do momento em que o político financiado está eleito, espera-se uma contrapartida; superfaturamento de obras e pagamento de propinas são as práticas mais comuns.
Arenas construídas ou reformadas para a Copa do Mundo de 2014 escancaram estes métodos: delações das construtoras Odebrecht e Andrade Gutierrez citam nove dos 12 estádios utilizados no Mundial como instrumentos de formação de cartel e viabilizadores de caixa 2. A Polícia Federal estima, a partir da delação premiada de executivos da própria Andrade Gutierrez, que o esquema de corrupção na reforma do Mané Garrincha, em Brasília, tenha sido superfaturado em cerca de R$ 900 milhões. O preço original, de R$ 600 milhões, saltou para R$ 1,575 bilhão.
Mineirão e Maracanã são outros maus exemplos dessa subversão: delações da JBS indicam que o estádio em Belo Horizonte foi usado para repassar R$ 30 milhões em propinas ao governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT) – Joesley Batista afirmou ainda que foi orientado pelo próprio Pimentel a adquirir, pela mesma quantia, 3% de participação da empresa que tem a concessão do estádio.
Já o palco da final do Mundial, segundo relatos de Benedito Barbosa Junior, ex-presidente da Odebrecht, ao Ministério Público Federal, teria rendido ao ex-governador do Rio de Janeiro, Sergio Cabral (PMDB), R$ 6,3 milhões em pagamentos ilegais relacionados às obras.
Estudo desenvolvido pelo cientista político Thiago do Nascimento Fonseca, da Universidade de São Paulo, mostra que empresas que doam para a coalizão governista tem maiores retornos em contratos durante o mandato do que aquelas que doam somente para a coalizão da oposição.
“Doar para partidos da coalizão governista significa ter obtido, em média, um retorno contratual mínimo de R$ 800 milhões a mais que os doadores da oposição”, diz.
“Impressiona também a diferença de valores obtidos por empresas que doaram para ambos os lados. Essas empresas receberam em média R$ 7 bilhões a mais em relação aos doadores exclusivos da oposição”
Financiando quem financia
O Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) foi outro importante instrumento utilizado para alavancar os maiores financiadores de campanhas.
As empreiteiras envolvidas na Operação Lava Jato, por exemplo, foram contempladas com mais de R$13 bilhões para a execução de obras em países da África e América Latina durante as gestões petistas — um total de 93% do financiamento do banco para exportação de bens e serviços.
Um estudo publicado em 2011, antes de os escândalos envolvendo os maiores grupos empresariais do país ganharem o noticiário, analisou 321 empresas e constatou que 43 delas doaram à campanha para a primeira eleição de Dilma um montante que totalizava R$ 57.375.023,71 (57 bilhões de reais), chegando a 41% da arrecadação nacional do partido. Já a soma dos empréstimos do banco a essas mesmas empresas correspondeu a 60,5% do total dos gastos do BNDES no período analisado.
“Isso indica uma tendência nos dados de os maiores beneficiados pelos aportes do banco serem também grandes doadores à campanha eleitoral do Partido dos Trabalhadores. Dos 32 maiores financiados pelo BNDES, 19 contribuíram para o partido. Em contrapartida, das 64 empresas que tomaram empréstimos de menor valor, apenas duas fizeram doações à campanha situacionista”, aponta o estudo.
O mesmo estudo evidencia o peso das doações eleitorais das empresas mais beneficiadas pelos aportes do BNDES e mostra ainda que as contribuições ao PT diminuem à medida que os valores recebidos também ficam menores.
Grandes empresas, grandes negócios
De acordo com as declarações enviadas à Justiça Eleitoral, o investimento nas eleições de 2010 ultrapassou a casa dos R$ 2 bilhões.
Apesar de mais de 19 mil empresas terem registrado doações naquele pleito eleitoral, representando quase 75% dos recursos arrecadados, o maior montante está concentrado em apenas 70 empresas ou grupos.
Já os 15 doadores mais generosos foram responsáveis, sozinhos, por 32,5% desse investimento. Destaque para seis construtoras (Camargo Corrêa, Queiroz Galvão, Andrade Gutierrez, OAS, Galvão Engenharia e UTC Engenharia); três grupos financeiros (Bradesco, BMG e Itaú Unibanco); duas siderúrgicas (Gerdau e CSN); uma mineradora (Vale); uma indústria de alimentos (JBS) e uma empresa de comunicação (Contax, do grupo Oi).
Teto de doações
Um fator determinante para a manutenção e perpetuação deste sistema é a fragmentação partidária: quanto mais frágeis os partidos, maior o peso do poder econômico na política.
Neste cenário, como as legendas são mediadoras entre organizações civis e as decisões, elas se tornam os principais corretores da barganha política junto ao público.
Para Bruno Reis, um dos autores da pesquisa “Dinheiro e política: a influência do poder econômico no Congresso Nacional”, o problema não está no financiamento em si: se não houver doações privadas, o sistema ficará muito engessado e favorecerá o status quo. O desafio, portanto, é encontrar uma boa forma de regular as doações:
“Isso quase sempre inclui a fixação de tetos nominais para as doações, iguais para todos os doadores. O Brasil, por exemplo, é o único país do mundo onde esse teto é um percentual da renda do doador. É uma norma absurda”, afirma.
Essa posição também é defendida pelo cientista político Bruno Wilhelm Speck, professor doutor do Departamento de Ciência Política da USP. Autor de diversos estudos na área, Speck afirma que a forma mais direta e impactante para igualar os doadores é estabelecer tetos absolutos para as contribuições que estes podem fazer para a competição política durante certo período.
“Ao fazer uma doação para um candidato ou partido o doador influencia inevitavelmente o processo eleitoral e estabelece uma relação com o candidato financiado”.
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