É bastante comum ouvir a história de que o Times londrino certa vez enviou um questionário a vários escritores famosos, perguntando a eles “o que há de errado com o mundo de hoje?”. Quando G.K. Chesterton recebeu a pergunta, ele teve uma reação interessante, ainda que um tanto óbvia. Ele não pôs a culpa pelos problemas do mundo num fato externo qualquer, como um presidente, um programa econômico ou um partido político. Além disso, ele não aproveitou a oportunidade para expor suas opiniões políticas e econômicas nas páginas do Times. Ele sabia que os problemas do mundo eram mais profundos do que a questão política. Chesterton sabia que o problema do mundo é o pecado. Portanto, ele respondeu à pergunta de uma forma bem simples: “o que há de errado com o mundo de hoje sou eu”.
Lembrei-me recentemente da resposta de Chesterton ao ler certos contos de Flannery O’Connor. Assim como Chesterton, Flannery O’Connor entendia que o que há de errado com o mundo não é nossa incapacidade de nos filiarmos a certas correntes políticas e econômicas, por mais importante que isso seja. O que há de errado com o mundo é o pecado. Portanto, se pretendemos mudar a sociedade por meio da política, primeiro é essencial que provoquemos a mudança em nós mesmos. O’Connor expressa bem isso no conto “Tudo o Que Sobe Deve Convergir”. O progressista tem de entender que ele, e ninguém mais, é a única fonte de maldade num mundo que ele não pode controlar. Depois de perceber isso, ele deve começar sua jornada de mudança pessoal, o que tem de preceder a transformação no mundo ao seu redor.
O pecado e o coração humano
Católica, Flannery O’Connor não acreditava na doutrina calvinista da depravação total. Mas ela enfatizava o caráter pecaminoso do ser humano por meio de suas histórias. O homem é falho, acreditava O’Connor, e é capaz de grandes maldades. Qualquer escritor cristão sério, portanto, deve transformar o caráter pecaminoso do homem na base das suas histórias. Escreve O’Connor:
“O escritor sério sempre começa usando as falhas da natureza humana, e geralmente aponta falhas em personagens de outra forma admiráveis. Os dramas se baseiam no pecado original, quer o escritor pense em termos teológicos, quer não. Qualquer personagem num romance sério deve também carregar o fardo de uma vida com um sentido que vá além dele mesmo. O romancista não escreve sobre pessoas no vácuo; ele escreve sobre pessoas num mundo onde obviamente falta alguma coisa, onde há um mistério na incompletude e onde a tragédia específica do nosso tempo deve ser exposta, e o romance tenta dar ao leitor, na forma de um livro, a experiência da natureza humana completa em determinado tempo. Por isso os maiores dramas naturalmente envolvem a salvação ou perda da alma. Quando não se acredita na alma, não há espaço para o drama”.
A verdade fundamental sobre o homem, sobretudo o homem contemporâneo, é seu caráter pecaminoso. Essa falha na natureza humana, para O’Connor, é um tema comum a todos os seus contos. Como escreveu Jessica Hooten Wilson, os personagens de O’Connor se confrontam com as falhas da natureza humana ao perceberem, por mais sofrido que seja, aquilo que lhes falta. E o que falta a esses personagens é a sabedoria do próprio orgulho e hipocrisia; a consciência de que são pecadores. Quanto a isso, “O’Connor expressa algo de verdadeiro e eterno em suas histórias: o fato de que estamos contaminados pelo pecado e, por causa disso, acabamos por nos deparar com o conhecimento daquilo que nos falta”.
De acordo com O’Connor, o romancista cristão compreende o pecado como uma realidade da natureza humana. O pecado não é uma doença mental nem uma consequência do ambiente. Ao contrário, é uma escolha deliberada de ofender Deus, uma ofensa real e de consequências eternas. Como escreve a própria O’Connor:
“O romancista cristão é diferente de seus colegas pagãos porque reconhece o pecado como pecado. De acordo com sua herança cultural, ele não vê o pecado como doença ou fruto do acaso, e sim como uma escolha consciente de ofender Deus, o que envolve um futuro eterno. Ou o escritor fala sério sobre Salvação ou não”.
Esse reconhecimento quanto à natureza humana tem implicações para as reformas políticas. O que há de errado com o mundo não é, como muitos pressupõem hoje em dia, nossa incapacidade de sermos leais a um projeto político qualquer. Apesar das ideologias que dominam o Ocidente desde o Iluminismo, não é verdade que os problemas do mundo brotam dessa nossa infidelidade ideológica. Os utópicos do mundo contemporâneo querem mudar e aperfeiçoar a sociedade e a natureza humana, mas isso não é possível. Os políticos podem ser importantes, claro, mas nossos problemas são muito mais profundos. Os problemas do mundo não são algo que podemos resolver do dia para a noite, protestando, gritando slogans ou aprovando leis. O homem contemporâneo rejeitou Deus e, ao fazer isso, rejeitou a mais importante verdade sobre si mesmo: sobre a alma, o pecado, o julgamento e a redenção.
Implicações para o progressismo
Esse insight quanto ao caráter pecaminoso da natureza humana e suas implicações para o progressismo ficam claros no conto “Tudo o que Sobe tem de Convergir”. Neste conto, o leitor fica conhecendo Julian, universitário recém-formado que quer ser escritor. Ele mora com a mãe, uma viúva que trabalhou muito para alimentar, vestir e pagar a educação do filho. Por vários motivos, Julian odeia a mãe. Ele é egoísta, irascível, rancoroso e orgulhoso. E ele tem raiva sobretudo do fato de sua mãe exemplificar o racismo do sul dos Estados Unidos naquele tempo antes do movimento pelos direitos civis. A mãe é uma personagem complicada e Julian não vê nada de bom nela. Ele tem nojo da mãe e quer “lhe dar uma lição”. Nós, leitores contemporâneos, consideramos a luta de Julian contra o racismo algo digo de louvor e uma causa nobre. Ele é intelectualmente vaidoso e odeia a mãe e essas duas coisas são os motivos por trás da sua luta antirracismo.
Julian percebe que a mãe não percebe seu erro. Ela é uma mulher racista e esnobe que vive numa época de intensa transformação cultural. Apegada a velhas ideias de decoro social e comportamento aristocrático sulista, ela não percebe que está apegada a noções antigas de sociedade e igualdade racial. Ao mesmo tempo, Julian se vê como alguém melhor do que os que o cercam, sobretudo sua mãe. Ele não percebe que é como todos os outros na sociedade – imperfeito e caído.
Julian e a mãe estão num ônibus, juntamente com uma negra e seu filho. Os quatro personagens descem na mesma parada, quando a mãe de Julian, sem perceber, faz um gesto ofensivo. Isto é, a mãe de Julian dá ao filho da negra uma moeda. Ofendida, a mulher derruba a mãe de Julian. Sem perceber que a mãe está sofrendo um derrame por causa da violência do golpe, Julian diz que a mãe fez por merecer aquilo.
De repente, contudo, Julian percebe que algo está errado e que a mãe está sofrendo um derrame. Neste instante, pela primeira vez na história, Julian demonstra compaixão pela mãe. Mas é tarde demais. A mãe de Julian não consegue entender e está prestes a morrer. Escreve O’Connor:
“‘Mãe!’, gritou ele. ‘Querida, meu amor, espere!’ Cambaleando, ela caiu na calçada. Ele correu e se abaixou ao lado dela, gritando ‘Mamãe, mamãe!’. Ele a virou de barriga para cima. Ela tinha o rosto todo desfigurado. Um dos olhos se abria fixo para a esquerda enquanto ela permanecia confusa. O outro se grudava nele, analisando-o e, sem encontrar nada, fechando-se.
‘Espere, espere um pouco!”, gritou ele, levantando-se e saindo para buscar ajuda rumo a umas luzes acesas que ele via à frente. ‘Socorro! Socorro!’, gritou, mas sua voz não saía. As luzes se afastavam e Julian sentiu que seus passos não o levavam a lugar algum. A escuridão pareceu chamá-lo de volta para perto da mãe, adiando um pouco a entrada dele no mundo da culpa e do sofrimento”.
Julian percebe pela primeira vez o que há de errado com o mundo. O problema do mundo, percebe ele, não tem a ver com a política ou os preconceitos da mãe. Ao contrário, o problema do mundo é ele e seus pecados, e um problema desses não pode ser resolvido facilmente pela política. Depois desse acontecimento trágico, Julian caminha para a redenção pessoal que se deve alcançar antes do ativismo político.
Novamente, vemos a ideia de que o progressista tem de perceber nele, e não no outro, a fonte do mal no mundo que ele não pode controlar. A reforma de si mesmo deve acontecer qualquer forma de ativismo político. Se o progressista não buscar a virtude, ele não será capaz de ter um impacto positivo na sociedade como um todo. Essa ideia é defendida por Henry Edmonson na coletânea A Political Companion to Flannery O’Connor [Uma leitura política de Flannery O’Connor]. Escreves Edmonson:
“Esperar, pois, que o indivíduo melhore a si mesmo antes de tentar transformar as pessoas ao seu redor é a ordem natural das coisas e também uma garantia. Isso acrescenta humildade e autoquestionamento na mentalidade do progressista, o que necessariamente ameniza o impacto da busca pela pureza ideológica, sem prejudicar a energia moral do progressista”.
Como certa vez escreveu O’Connor numa resenha de “Ordem e História”, de Eric Voegelin, Platão tem razão quando diz que “os males da alma contaminam a sociedade”. Como o próprio Eric Voegelin disse, nós que habitamos o mundo moderno erramos ao pressupor, às vezes sem nem pensar direito, que o ativismo político pode anteceder a transformação pessoal. A visão tradicional defende que “a sociedade é uma extensão do homem”. Essa era a sabedoria de pensadores como Platão e Aristóteles, na Antiguidade, e Santo Agostinho e São Tomás de Aquino na Idade Média. Esta é, na verdade, uma das principais ideias na grande tradição da política ocidental. A visão progressista, porém, diz que “o homem é uma versão reduzida da sociedade”. Com sabedoria, O’Connor defendia a visão tradicional. Ela entendia que, sem a alma intimamente ordenada, não pode haver sociedade ordenada, e expressa essa verdade eterna em seus contos.
Darrell Falconburg é professor de humanidades e doutorando na Faulkner University.
©2022 The Imaginative Conservative. Publicado com permissão. Original em inglês
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