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“Em razão do fato de os tchecos estarem ameaçando a capital vermelha nos montes Urais — Ecaterimburgo — e porque o carrasco coroado talvez escape da corte do povo, a diretoria do Soviete Regional, atendendo à vontade da Revolução, decretou que o ex-czar Nicolau Romanov, culpado de incontáveis crimes sangrentos contra o povo, deve ser morto”.
Essas foram as últimas palavras que o último czar da Rússia ouviu, na madrugada de 16 para 17 de julho de 1918. Foram declaradas pelo comandante bolchevique Yakov Yurovsky, que havia passado dias planejando o que, entre os comunistas, era chamado “aniquilação”.
Em documentos oficiais, outro termo era usado: “julgamento”. Fazia meses que as lideranças comunistas prometiam levar os Romanov para um tribunal em Moscou. Possivelmente nunca tiveram, de fato, essa intenção.
Yurovsky sacou um revólver Colt, deu um passo para a frente e atirou no peito de Nicolau II. “Por um momento”, descreve Helen Rappaport no livro Os últimos dias dos Romanov, “o corpo do czar ficou estrebuchando no chão, com os olhos fixos e arregalados, as cavidades torácicas, expostas pelos buracos das balas, espumando com sangue oxigenado, coração acelerado, tudo em uma vã tentativa de bombear sangue para o seu corpo repleto de traumas. Logo depois, ficou paralisado no chão”.
A seguir, seus homens avançaram e começaram a disparar contra os demais integrantes da família — a esposa Alexandra, o herdeiro ao trono Alexei, então com 13 anos, e as filhas Olga, Tatiana, Maria e Anastásia, respectivamente com 22, 21, 19 e 17 anos. Também foram massacrados os empregados que haviam sido autorizados a permanecer a serviço da família. Onze cadáveres ao todo.
“[Pyotr] Ermakov se virou e disparou sua Mauser contra a czarina, que estava a apenas dois metros dele, enquanto ela tentava fazer o sinal da cruz, atingindo-a no lado esquerdo do crânio, o que fez com que pedaços de seu cérebro voassem para todos os lados, ao mesmo tempo em que uma rajada de balas dos outros assassinos atingiam o torso dela”, prossegue Rappaport.
Realizado de madrugada, a fim de permitir o transporte de corpos com discrição, o massacre demorou em torno de 25 minutos, durante os quais alguns dos assassinos saíam para vomitar e voltavam do porão onde a família tinha sido colocada. Foram usados revólveres, no lugar de metralhadoras, para que a ação não fosse percebida pelos vizinhos — ainda assim, tiros e gritos ecoaram por toda a vizinhança. As garotas, que à exceção de Maria tinham costurado joias por dentro das roupas para o caso de serem transferidas às pressas, demoraram mais para morrer.
Encolheram-se contra a parede do aposento, até que os guardas terminassem o serviço de maneira caótica, dando tiros e golpes de baioneta. Alexei, que era hemofílico e não conseguia mais andar, tombou ao chão e tentou segurar no corpo do pai. Tomou um chute no rosto e dois tiros no ouvido. Quem ainda resistiu acabou sendo atacado com baionetas. O cachorrinho Jemmy, que estava no colo de Anastácia, teve a cabeça esmagada por coronhadas.
Um caminhão Fiat, escolhido em parte por ser barulhento, foi posicionado, ligado, perto do local, de forma a tentar abafar o som dos tiros. Os corpos foram colocados no veículo. Dali, levados a uma mata 14 quilômetros distante, onde os bolcheviques arrancaram roupas e joias, jogaram ácido e atearam fogo, para depois enterrar os cadáveres.
Encontrados apenas nos anos 1970, os ossos de parte da família seriam oficialmente recolhidos apenas em 1989, com o fim da União Soviética. Parte dos corpos, enterrada a 25 metros para despistar quem procurasse pelos restos mortais da família, só seria encontrado em 2007.
São os ossos de Maria e Alexei, que ainda hoje aguardam por um exame de DNA e, por isso, ainda não foram colocados junto com o restante da família, que hoje está enterrada em na catedral de São Petersburgo. O czar, a czarina e as crianças foram declarados santos pela Igreja Ortodoxa Russa.
Neblina constante
Nicolau II e a esposa chegaram a Ecaterimburgo, uma cidade de indústrias e atividade de mineração localizada na divisa entre a Rússia europeia e a asiática, em 30 de abril de 1918. Estavam com a filha Maria. Os demais filhos chegaram depois.
Viveram ali, ocupando cinco cômodos da casa Ipatiev, construída por um comerciante — o imóvel seria demolido nos anos 70 e, depois do fim da União Soviética, uma catedral seria construída no local, a chamada Igreja do Sangue. Para evitar que os curiosos tentassem ver a família real, as janelas foram cobertas com jornais, e depois cobertas com tinta branca.
Um tapume de madeira de quase dois metros de altura passou a cercar a residência. Nicolau II escreveria em seu diário que parecia que a casa estava permanentemente coberta por neblina A família acordava à 8h. Às 9h, comia chá e pão preto, a mesma alimentação de qualquer cidadão da Rússia.
“Por volta das 13h”, descreve Helen Rappaport em seu livro, “um almoço simples, costelas ou sopa com carne, era entregue nos portões, vindo da cantina dirigida pelo Soviete de Ecaterimburgo no prédio da Assembleia Comercial, que ficava quase na esquina da Glavny Prospekt. O jantar era enviado para a casa ao redor das 20h”. Eventualmente, outros alimentos eram enviados, como carnes, ovos, leite e café, mas, diante do caos que os bolcheviques instauraram na cidade, faltava comida para os civis, e os guardas desviavam boa parte para si.
“As garotas criavam suas próprias diversões até o chá da tarde, entre as 16h e 17h. Um jantar modesto era servido às 20h, depois do qual o restante da noite era dedicado a novas orações e leituras da Bíblia, a mais partidas de bezique [um jogo de cartas] e às costuras, até chegar a hora de dormir”, descreve a autora. A família tinha acesso a um jardim, onde era possível passear às 11h e depois do almoço. As meninas passavam parte do dia costurando as roupas, que, depois de meses de exílio em diferentes locais, estavam se desfazendo.
O imóvel estava sempre cercado por guardas, que se revezavam em turnos. As portas eram protegidas por guardas que portavam metralhadoras nas mãos e granadas na cintura. Metralhadoras foram instaladas no telhado. O trabalho chegou a ocupar mais de 80 bolcheviques, cuja central de comando, na cidade, ficava instalada no hotel Amerikanskaya, instalado a 800 metros da casa Ipatiev.
A vida era monótona e as restrições eram maiores do que as impostas em outros locais onde os Romanov foram mantidos presos desde que o czar abdicou do poder, em fevereiro de 1917 — ainda que alguns guardas, jovens que viviam na região, tenham mantido uma relação amigável com a família, como o jovem Ivan Skorokhodov, detido tentando levar um bolo de aniversário para Maria.
Alguns bilhetes chegavam à família, pela mão de guardas amigos, prometendo que os Romanov seriam resgatados. Nenhuma operação de salvamento jamais foi colocada em prática, enquanto a imprensa ocidental anunciava, com frequência e incorretamente, que o czar teria sido assassinado.
Uma centena de cabeças
Por volta de 1h da manhã de 18 de julho, a família do czar foi acordada e orientada a se vestir às pressas, para descer ao porão. Ouviu que os soldados brancos, adversários dos comunistas e reforçados por soldados da Tchecoslováquia, estavam se aproximando da cidade, e era preciso descer ao porão — de fato, semanas depois, os bolcheviques perderiam o controle sobre Ecaterimburgo. Os Romanov não pareceram desconfiar de nada. Precisaram de 40 minutos para se arrumar e descer as escadas. O czar levou Alexei no colo.
Ao entrar no cômodo, notaram que ele estava vazio. A czarina então exigiu duas cadeiras, para si e o filho, no que foi atendida. Eles então foram orientados a se reunir diante da parede, para tirar uma foto — o pretexto era provar que eles estavam vivos. Não havia câmera alguma. Foi quando Yakov Yurovsky, de 30 anos, leu a declaração para o czar.
Tomado de surpresa pelo anúncio da pena de morte, Nicolau II pediu que a mensagem fosse repetida. Yurovsky, que havia passado nove anos de sua vida em prisões czaristas e se mostrava ansioso para finalmente executar a família real, releu a nota rapidamente e puxou sua arma.
Depois do incidente, os bolcheviques afirmariam apenas que o czar havia sido executado, sem mencionar a família, enquanto outros Romanov, detidos em outros locais do país, também eram caçados e assassinados.
Não há prova de que Vladimir Lênin, o líder supremo bolchevique naquele momento, tenha autorizado pessoalmente a morte. Mas, como informa Helen Rappaport em seu livro, “o mais provável é que a decisão tenha sido tomada verbalmente. Quando se tratava de ordenar qualquer medida draconiana, Lenin era um covarde”, escreveu.
“Lenin sempre viu a Casa Romanov como uma inimiga de um tipo muito particular, uma ‘imundície monarquista’”, prossegue a autora. “A revolução na Rússia, de acordo com Lenin, exigia que fossem cortadas ‘uma centena de cabeças Romanov’”. Afinal, “Lenin sempre era a favor de medidas draconianas; ele nunca pensava em termos individuais, só em termos mais amplos – classes inteiras e grupos”.