O princípio básico de um sistema democrático é a participação popular efetiva na tomada de decisões políticas. Por isso, governos ao redor do globo buscam legitimar questões complexas, capazes de dividir a opinião pública, levando-as à consulta geral e inserindo toda a população no processo decisório.
A visão reducionista de que cada cidadão poderá escolher entre ‘sim’ ou ‘não’ leva a acreditar que tal modelo seria o ponto alto de qualquer sistema democrático. Mas a verdade é que experiências recentes ajudam a expor a fragilidade deste método: em 2016, Reino Unido e países como Colômbia, Hungria e Itália viveram processos desgastantes que polarizaram discussões e, invariavelmente, acabaram sendo questionados por diversos setores da sociedade internacional.
O último desses sinais veio da Turquia, onde a população votou favoravelmente à concessão de mais poderes a Recep Tayyip Erdogan.
Falha democrática?
O fato é que referendos sobre temas complexos estão sujeitos à mensagem política que subverte ou esconde suas consequências. “Não se pode resumir decisões públicas levando em consideração apenas a vontade da maioria que pode ser movida por julgamentos precoces”, analisa Leonardo Mèrcher, Doutor em Ciências Políticas pela UFPR e professor de Relações Internacionais da Universidade Positivo (UP).
Para ele, quando se tratam questões mais técnicas, o referendo pode ser tendencioso a um resultado, confundindo o debate e a votação da maioria: na prática, os eleitores tomam decisões baseados em pouca informação, o que acaba colocando o poder nas mãos dos arquitetos dos referendos, como aconteceu com Erdogan.
“Uma democracia não pode ser a ditadura da maioria. Os referendos refletem a maioria da população, mas que nem sempre está disposta a fazer cumprir os direitos fundamentais das minorias ou compreendem as estratégias políticas essenciais de um Estado”, completa Mèrcher.
Parece que as pessoas gostam da ideia de democracia, mas odeiam a realidade
Já o historiador David Van Reybrouck, autor de “Against Elections: The Case for Democracy” (“Contra as eleições: um caso para a democracia”, em tradução livre), em artigo publicado no Guardian, afirma que a democracia funcionou por décadas, mas agora sofreu uma ruptura: “O Brexit é um ponto de virada na história da democracia ocidental. Nunca uma decisão tão drástica foi tomada através de um procedimento tão primitivo: um referendo baseado em maioria simples. Nunca o destino de um país, de um continente inteiro, foi alterado por cidadãos desiludidos e mal informados”.
David cita um estudo do World Values Survey que questionou mais de 70 mil pessoas em 57 países se elas acreditavam que a democracia era o melhor sistema para governar um Estado. 92% dos entrevistados responderam afirmativamente. Por outro lado, o levantamento também apontou que na última década houve um clamor popular por lideranças fortes, “que não precisem se preocupar com parlamento ou eleições” e que a confiança em partidos políticos está no nível mais baixo da história.
“Parece que as pessoas gostam da ideia de democracia, mas odeiam a realidade”, diz Van Reybrouck, que completa: “a síndrome da fadiga democrática não é causada apenas pelo povo, pelos políticos ou pelos partidos - é causada pelo procedimento. A democracia não é o problema. A votação é o problema”.
Já Ian Shapiro, professor de Ciências Políticas da Universidade de Yale, vai além: referendos são uma má ideia. “O que a experiência nos mostra é que a maioria dos instrumentos de democracia participativa são imaginados por uma esquerda ingênua, mas é uma direita cínica que se apropria deles, então o que tendemos a encontrar ali são pessoas com visões extremistas, ativistas dispostos a gastar mais tempo, esforço e dinheiro”, disse em entrevista ao jornal português DN.
Legitimando ditaduras
O método já foi usado por líderes como Napoleão III, Hitler e Stalin para legitimar decisões ditatoriais. Hitler, por exemplo, usou plebiscitos para consolidar o Terceiro Reich. E depois dele Joseph Stalin usou referendos para incorporar a Europa Oriental ao bloco soviético.
“Após o surgimento do fascismo e durante a Guerra Fria, as democracias do mundo pareciam reconhecer que os referendos e plebiscitos são as donzelas dos autocratas que procuram concentrar o poder”, escreveu Nina Khrushcheva, professora de Relações Internacionais da The New Scholl, no site Project Syndicate.
Da mesma forma que utilizam o artifício para validar decisões questionáveis, regimes ditatoriais também se aproveitam do controle das instituições para retardar consultas ou mesmo para suspendê-las, como ocorreu recentemente na Venezuela; o presidente Nicolas Maduro recusou-se categoricamente a permitir um referendo revogatório contra ele, como a oposição exigia e a Constituição permite – sua comissão eleitoral, aliás, desautorizou mais de 1 milhão de assinaturas de eleitores apoiando o referendo, alegando uma suposta fraude.
Por outro lado, após meses de protestos que exigiam sua saída do poder com eleições gerais, Maduro convocou na última segunda-feira (1) uma Constituinte "popular": 500 integrantes da assembleia, no entanto, não serão eleitos pelo voto universal, mas sim por setores sociais e por comunidades.
"É uma medida desesperada de um governo que sabe que não pode convocar eleições porque vai perder e recorre à polarização", afirmou à AFP o analista Diego Moya-Ocampos, do IHS Markit Country Risk.
O exemplo turco
Em linhas gerais, a mudança constitucional aprovado pelo eleitorado turco transforma o sistema parlamentar do país em um regime presidencial, expandindo os poderes de um presidente que já conseguiu, mesmo com capacidade limitada, prender opositores políticos e praticamente acabar com a liberdade de a imprensa.
“O fato é que muitos turcos não sabiam no que estavam votando. Para eles, se resumia a criação de um regime presidencial executivo. Mas para começar, quase não há plataformas de mídia livres na Turquia. Qualquer jornalista que escreva contra o Erdogan enfrenta represálias”, diz Ahmet S. Yayla, professor adjunto de Criminologia, Direito e Sociedade na Universidade George Mason e ex-professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Harran, na Turquia.
“Centenas de jornalistas já estão sentados em prisões. Vários meios de comunicação e agências de notícias foram fechados, confiscados ou forçados a publicar favoravelmente. Fundamentalmente, a Turquia foi para o referendo sem debate crítico.”
O exemplo turco traz uma reflexão sobre o estado atual da democracia não apenas na Turquia, mas também ao redor do globo. Larry Diamond, professor de Sociologia e Ciência Política na Universidade de Stanford, em “Facing Up to the Democratic Recession” (“Enfrentando a recessão democrática”, em tradução literal), afirma que a democracia está em declínio em todo o mundo.
Dessa forma, o autoritarismo está se tornando mais presente em regimes não-democráticos, enquanto muitas democracias também estão se tornando menos democráticas: “Muitas vezes [a democracia] se desintegra gradualmente - não através de golpes de Estado, mas através de degradações sutis e incrementais de direitos e procedimentos democráticos que ocorrem dentro de uma estrutura democrática”, conclui.
Exemplos recentes
Em consulta popular, a população colombiana rejeitou um acordo de paz com as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), o que encerraria uma guerra civil de mais de cinco décadas. 50,2% dos eleitores foram contrários a proposta que, na visão da oposição, fazia muitas concessões aos guerrilheiros.
98% dos húngaros votaram ao lado do primeiro-ministro Viktor Orbán: o país estaria apto a barrar a entrada de refugiados em solo húngaro – a decisão, porém, não foi ratificada, já que o comparecimento às urnas foi inferior a 50%.
Com 59,1% dos votos, os italianos recusaram a proposta de reforma constitucional que propunha a redução dos poderes do Senado e a extinção de privilégios políticos. O primeiro-ministro Matteo Renzi, que havia proposto o referendo em um momento de alta popularidade, deixou o cargo após o resultado contrário.
52% dos britânicos optaram por deixar a União Europeia. O primeiro-ministro David Cameron, que teria idealizado o referendo, deixou o cargo. Os argumentos favoráveis à ruptura pregavam a retomada da independência das políticas econômicas e migratórias em relação a UE.
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