O Brasil começou a investir no uso de usinas de purificação de água imprópria para consumo em 1997, quando o presidente Fernando Henrique Cardoso lançou o programa Água Boa. Em 2003, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva rebatizou a iniciativa de Água Doce e aumentou os recursos disponíveis. Por que, então, em 2019, o presidente Jair Bolsonaro diz que pretende conhecer os projetos de Israel no setor? O Brasil já não tem know how e tecnologia para tratar água impura?
A verdade é que Israel tem, sim, muito a agregar ao programa nacional de reaproveitamento de água. Por um motivo muito simples: o país é pioneiro no barateamento da tecnologia. Suas usinas são maiores e melhores do que as de qualquer outro lugar do mundo, e as técnicas desenvolvidas pelos israelenses são adotadas por diferentes países no mundo todo.
Para poucos
Conduzido pelo Ministério do Meio Ambiente — e não pela Embrapa, como muitos jornalistas e blogueiros chegaram a afirmar —, o Programa Água Doce envolve 200 diferentes instituições, que desenvolveram e mantêm 540 sistemas de tratamento de água em funcionamento. Essas estruturas atendem a 216 mil pessoas de 170 cidades de nove estados do Nordeste, mais Minas Gerais. A meta é construir 1.200 sistemas de dessalinização, que alcançariam 500 mil pessoas.
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É muito pouco, quando se considera que o semiárido brasileiro alcança uma área de 969 mil quilômetros quadrados e atinge 1.133 municípios e 21 milhões de habitantes – ou seja, atualmente, o programa beneficia 0,1% do total de moradores da área. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas 79,7% dos domicílios do Nordeste são atendidos por rede de água.
Ainda assim, o projeto brasileiro conta com reconhecimento da comunidade internacional. “O Programa Água Doce é um exemplo para o mundo. É um caso de sucesso que merece ser conhecido por todos”, já afirmou, por exemplo, o presidente da Associação Internacional de Dessalinização, Emílio Gabbrielle, em vista a Brasília. O programa brasileiro, diz ele, usa uma técnica que permite extrair e purificar água salobra de fontes subterrâneas profundas, o que reduz ou até mesmo elimina a dependência de caminhões pipa.
As instalações brasileiras bombeiam água de poços e a enviam para reservatórios, onde passam por uma membrana que faz o processo conhecido como osmose inversa, mundialmente utilizado para remover o sal e as impurezas.
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A água limpa é adequada para consumo humano. O líquido que sobra é uma água com maior concentração de impurezas – esta é utilizada, aí sim pela Embrapa, para a criação de peixes e irrigação de plantas forrageiras, utilizadas para alimentar os rebanhos de cabras do sertão. O bombeamento utiliza muita energia elétrica. Para minimizar esse gasto, um projeto piloto instalado na comunidade Maria da Paz, na zona rural do município de João Câmara, no Rio Grande do Norte, utiliza energia de fonte solar.
A dessalinização por osmose reversa também funciona para purificar água do mar, a ponto de quase todo o fornecimento de água potável do arquipélago de Fernando de Noronha ser hoje fornecido por usinas de purificação. “A dessalinização está acontecendo, sim, no Brasil, com sistemas que alcançam comunidades pequenas em áreas remotas”, explica Shawn Meyer-Steele, diretor da Associação Internacional de Dessalinização e presidente da Associação de Dessalinização do Caribe.
Ou seja: funciona, e muito bem. Mas atende poucas pessoas. Enquanto isso, Israel, que deu um impulso a seu programa de dessalinização há apenas dez anos, hoje discute o que fazer com o excedente de água potável que vai ser gerado nos próximos anos. Como isso é possível?
Escala e preço
No Brasil, as usinas são pequenas e atendem a comunidades locais. Já os israelenses apostaram em grandes instalações, capazes de purificar água salobra e, principalmente, água do mar, e distribuir para todo o país. É um feito expressivo, mesmo para um país que tem apenas 20.770 quilômetros quadrados de área, o equivalente ao estado de Sergipe, e população de 8,7 milhões de pessoas, semelhante à soma dos habitantes das cidades de Curitiba e Rio de Janeiro. Apesar das proporções muito menores do que o Brasil, o desafio lá é enorme, porque a região é desértica.
Israel entrou nesse mercado depois do Brasil: foi apenas a partir de 2004, durante uma grave seca, que começou a buscar alternativas. Na época, o país sofria com um déficit de 500 milhões de metros cúbicos por ano e a dessalinização era considerada cara demais para gerar escala. Isso mudou rapidamente – a primeira grande usina de dessalinização, Ashkelon, foi inaugurada logo no ano seguinte, 2005. Hoje as usinas do país, somadas, respondem por metade da água potável consumida no país. Uma dessas instalações é também a maior do mundo.
Chamada Sorek, fica nos arredores de Tel Aviv, produz 20% de toda a água potável consumida nos domicílios do país. Ela usa a osmose reversa, o mesmo método encontrado no Brasil, mas sua estrutura é muito maior do que a das usinas locais. Ela começou a operar em 2013 e atualmente gera 627 metros cúbicos de água limpa por dia. O custo é tão baixo que hoje uma residência israelense paga, em média US$ 30 mensais de conta de água. Em Los Angeles, são US$ 58 mensais.
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“Israel, Arábia Saudita, Bahrain, Singapura e Namíbia, entre outros países, não existiriam como nações modernas, com as populações que têm hoje, sem bons programas de dessalinização da água do mar que garantem o consumo humano e a agropecuária. É o caso também dos estados americanos da Flórida e da Califórnia, que utilizam o sistema para alimentar uma das atividades humanas que mais consome água, a agricultura”, diz Shawn Meyer-Steele.
O mercado mundial de dessalinização de água alcançou os US$ 15 bilhões em 2017 e deverá crescer a uma média de 8% ao ano entre 2018 e 2025. Atualmente existem programas de purificação da água do mar em 150 países de todos os continentes, e muitos desses locais importaram a tecnologia desenvolvida em Israel.
“Existem tecnologias israelenses sendo utilizadas com sucesso no Chile, em Trinidade e Tobago e nos Estados Unidos, entre outros lugares”, afirma Greg Wetterau, presidente da companhia americana de engenharia CDM Smith, especializada em projetos de irrigação.
Os israelenses projetaram, por exemplo, bombas mais eficientes, que consomem menos eletricidade, e tubos duas vezes mais largos. Essa somatória de pequenas inovações ao longo da cadeia de produção de água permitiu aumentar a produção e baratear o preço, que até há uma década era altíssimo. “Atualmente, dependendo das condições do solo da região, a dessalinização pode ser a alternativa mais barata”, diz Greg Wetterau.
Parceria produtiva
Israel já fornece ao Brasil técnicas inteligentes de irrigação, como o gotejamento. Além disso, o país já recebeu em 2015, uma visita técnica de enviados do governo do Rio Grande do Norte, que está investindo em um projeto de fornecimento de água do mar dessalinizada para a população da capital, Natal. Na época, a secretaria estadual apresentou um projeto para construção de uma grande usina de dessalinização, ao custo de R$ 75 milhões, mas a iniciativa foi barrada por falta de investimento. É um valor relativamente baixo na comparação com a usina Sorek, que custou US$ 500 milhões.
Em novembro, o presidente eleito Jair Bolsonaro recebeu a visita do embaixador de Israel, Yossi Shelley, que tratou de uma possível parceria para ampliar o alcance dos programas de dessalinização brasileiros. Bolsonaro prometeu que o ministro da Ciência Marcos Pontes irá visitar o país do Oriente Médio ainda em janeiro. Se bem-sucedida, a visita pode representar o início de uma parceria que amplie o alcance dos projetos que já existem no Brasil.