A ação dos militares em Guadalupe, Rio de Janeiro, ocorrida na tarde do último domingo (07) e responsável por vitimar o músico Evaldo Rosa dos Santos, de 51 anos, reacendeu o debate acerca do despreparo das forças policiais brasileiras perante o dever de garantia da segurança pública. Em resposta ao episódio, foram presos dez oficiais do Exército envolvidos. Entretanto, a morte de Evaldo é apenas a ponta do iceberg no país em que mais de 5 mil pessoas são mortas anualmente por policiais, segundo o Monitor da Violência, do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo.
O Rio de Janeiro, local da tragédia, é justamente o estado com a maior concentração de mortes por policiais — e também de policiais: trata-se da polícia que mais morre, com em média um policial vindo a óbito a cada três dias. Outro dado que evidencia o caos da insegurança fluminense é que, segundo o Instituto Sou da Paz, a chance de um homicídio ficar impune no estado é nove vezes superior à de ser solucionado, evidenciando problemas de investigação e o ridículo investimento em inteligência policial — menos de 1% de todo o orçamento da pasta.
Esse cenário caótico clarifica a necessidade de mudanças na atuação dos agentes de segurança, seja para buscar a redução da criminalidade como evitar tragédias como a deste domingo. Nesse sentido, o que foi feito em Nova York nas últimas três décadas pode servir de inspiração, sobretudo em relação à reestruturação da polícia: entre as décadas de 1970 e início dos anos 1990, a cidade norte-americana era vista como uma das metrópoles mais perigosas do mundo, com uma polícia desacreditada. Ao comparar com a situação do passado, Nova York se transformou quase que por completo.
Violência sem freios
Não foi à toa que o escritor Bill Finger e o desenhista Bob Kane se inspiraram em Nova York para a criação da violenta e insegura Gotham, cidade natal de Batman: o número de assassinatos, roubos, tráfico de drogas e furtos de veículos na cidade norte-americana já ficavam bastante acima da média nacional na década de 1930. Para efeito de comparação, a taxa de homicídios até a década de 1990 era superior a 30 por 100 mil habitantes, semelhante ao número brasileiro de 2016, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Caminhar na rua, independentemente do local, ou simplesmente andar de metrô eram tarefas cercadas de insegurança. Ficou famoso o caso de uma família de Utah assaltada no metrô em 1990 que teve o filho adolescente assassinado ao tentar defender os pais.
Havia enorme insegurança entre a população quanto a caminhar na rua, independentemente do local, além de muita corrupção policial e locais visualmente sujos e desgastados. As ruas e transportes coletivos eram dominados por mendigos, traficantes, bêbados, ladrões, redutos de prostituição e viciados em drogas.
Janelas quebradas
Houve uma reviravolta, e Nova York tornou-se uma das cidades mais seguras do país — a taxa de homicídios em 2017 ficou em 3,7 por 100 mil habitantes. A lista de explicações para a redução do crime não só em Nova York como em todos os Estados Unidos é extensa. Um estudo de Steven Levitt, famoso por ser um dos autores do best-seller 'Freakonomics', apontou que, entre os fatores majoritariamente responsáveis por essa diminuição, constam o aumento do número de policiais e da população prisional, além do declínio da epidemia de crack.
Todavia, não obstante outras cidades norte-americanas também tenham registrado queda na criminalidade, nenhuma foi tão robusta quanto a verificada em Nova York. Se pudermos entender o que aconteceu na cidade, podemos tentar replicar em cidades brasileiras, além de evitar perda de recursos em políticas públicas.
Em resumo, houve um empenho protagonizado não apenas pelo poder público, mas em paralelo à atividade de diversas instituições do setor privado e sociedade civil.
Os primeiros esforços concentravam-se na política de tolerância zero, com abordagem baseada na Teoria das Janelas Quebradas. Em linhas gerais, ela defende que a incapacidade do governo de coibir pequenas infrações, como o vandalismo, indicava aos cidadãos que ele certamente não poderia lidar com crimes mais graves.
Tudo isso gerava um ambiente de desordem pública, influenciando positivamente na prática de delitos mais sérios. Como estudos demonstraram no futuro, havia uma correlação entre ambientes com pequenos delitos e maior incidência em assaltos e no roubo de veículos motorizados. Dessa forma, reprimir contravenções foi utilizado como uma medida de policiamento.
De fato, o Departamento de Polícia de Nova York, influenciado por formuladores de políticas públicas, como o vice-prefeito da gestão Ed Koch, Herb Sturz, percebeu que o clima de desordem ameaçava inclusive a economia da Times Square. Assim, começaram-se a desenvolver operações policiais concentrando-se em delitos menores.
Embora a efetividade desse tipo de política tenha sido bastante contestada por alguns estudos feitos anos depois, a grande repercussão das chamadas Operation Crossroads pode ter funcionado como um ponto de inflexão para outras ações que, efetivamente, corroboraram para a redução de insegurança pública na cidade.
Isso porque, com o tempo, porém, ficou claro que programas policiais esporádicos não eram suficientes. Houve uma ampla gama de instituições que iniciaram trabalhos voltados para a restauração da ordem pública.
Com o apoio de diversas associações de moradores, foram implementadas dezenas de iniciativas de restauração de espaços públicos. Entre as ferramentas utilizadas, havia segurança privada, a contratação de sem-tetos para limpeza e arborização. O o ambiente de desordem reduziu-se gradativamente em dezenas de quarteirões, e o processo cresceu com o tempo: enquanto em 1989 havia 33 iniciativas mapeadas, elas chegaram a 61 em 2008.
Em 1984, o responsável pelo trânsito da cidade de Nova York, David Gunn, passou a atuar buscando maior ordem e segurança no transporte público da cidade. Trabalhou para erradicar o grafite no metrô, além de ter elevado a fiscalização na cobrança de tarifas do transporte. Aos poucos, a medida inibiu a presença de infratores no local.
Já quando o democrata David Dinkins assumiu o comando da prefeitura em 1990, propôs investimento em um programa de U$ 1.8 bilhão para “combater o medo” e contratou cerca de 8.000 novos oficiais de polícia. Também nomeou Lee Brown, um comissário de polícia que apoiava o “policiamento comunitário”: a prática da patrulha policial em bairros, apostando na aproximação dos moradores com os agentes, que deveriam solucionar conflitos quando necessário e não somente quando respondessem a chamadas de emergência. Após atingir um pico de mortes violentas no início de seu mandato, a taxa de homicídios do município caiu 30% nos 4 anos seguintes.
Embora tenha havido resistências de algumas autoridades e mesmo de movimentos sociais (que denunciavam possíveis violações de direitos civis, ou mesmo conotações racistas nas abordagens policiais), os primeiros casos de sucesso atraíram visibilidade e incentivaram um maior endosso político para o aprimoramento das ações. A candidatura do republicano Rudy Giuliani em 1993, dessa forma, foi baseada na busca por maior qualidade de vida para a cidade, focando esforços na segurança pública.
As inovações se estenderam até o Poder Judiciário local, com a abertura, a partir de 1993, de tribunais que julgavam de forma mais célere quem cometia delitos menores.
Nessa toada, o Departamento de Polícia de Nova York contou também com inovações como o Compstat, seu sistema de planejamento tático e responsabilização, que identificava onde os crimes estavam ocorrendo e responsabilizava os comandantes locais por suas áreas. Isso criou um sistema de incentivos que, a partir de melhores diagnósticos, contribuiu para ações policiais mais efetivas, corroborando para a redução da criminalidade.
Em suma, um conjunto diversificado de organizações na cidade, buscando seus próprios interesses e fazendo uso de várias táticas e programas, começou o processo de restauração da ordem em seus domínios. Além disso, em contraste com os primeiros esforços esporádicos, como o Operation Crossroads, essas tentativas foram implementadas de forma mais persistente.
Tolerância zero
Durante a década de 1990, portanto, as taxas de criminalidade na cidade de Nova York caíram drasticamente, até mais do que nos Estados Unidos como um todo.
Em parte, o aumento significativo das taxas de detenção ajudam a explicar isso: quando as prisões de assaltantes aumentaram em 10%, o número de assaltos cometidos caiu 0,5%. Já a taxa de detenção de ladrões aumentou 10%, contribuindo para a queda no número de roubos em 5,9%. O crime violento diminuiu mais de 56% na cidade, o dobro do verificado no país. Os crimes contra a propriedade caíram cerca de 65%, enquanto recuaram em 26% no cenário nacional.
Os pesquisadores Hope Corman e H. Naci Mocan se tornaram referência em estudos sobre Nova York desde os anos 1980. Suas pesquisas identificam vários fatores que podem ter afetado as taxas de criminalidade na cidade. A força policial, por exemplo, cresceu 35% nos anos 90, o número de presos cresceu 24% e houve mudanças demográficas, incluindo um declínio no número de jovens, que é a faixa etária que mais comete crimes. Questões macroeconômicas também exerceram influência na queda da criminalidade. A taxa de desemprego dos Estados Unidos caiu 25% entre 1990 e 1999, enquanto na cidade reduziu-se 39% no mesmo período.
As taxas de detenção de crimes aumentaram em até 70% nos anos 1990. Entre 1990 e 1999, os homicídios caíram 73%; os arrombamentos, 66%; os assaltos 40%; os roubos, 67%; e os roubos de veículos, 73%. O modelo dos autores consegue explicar entre 33% a 86% da redução da criminalidade verificada.
Políticas de longo prazo
Embora haja quem conteste a efetividade da política de “tolerância zero”, é pacífico que as operações policiais nos mercados de drogas ao ar livre, além das apreensões de armas, foram determinantes. Ademais, operações para conter a corrupção de oficiais da própria polícia, com a prisão de integrantes ligados ao tráfico de drogas, resultou na saída de centenas de oficiais da corporação no início dos anos 1990.
Tudo isso foi possível apenas com a melhoria dos quadros policiais. Além de sua valorização, entre 1990 e 2000, houve significativo aumento do efetivo policial. A atribuição da redução da criminalidade se deu, segundo os pesquisadores Bernard Harcount e Jens Ludwig, sobretudo, pela contratação de mais policiamento.
Com o auxílio de sistema de dados, que identificava as áreas com maior criminalidade, houve policiamento mais inteligente. Assim, não foi apenas o aumento de policiais, mas o direcionamento deles para os lugares onde se registravam maior criminalidade. O próprio combate à corrupção interna da polícia, antes percebida pela população como altamente corrupta, favoreceu em melhor estima e confiança na instituição.
A consequência foi uma melhoria no combate ao tráfico de drogas, mas houve a adoção de tecnologia para maior controle da atividade policial, com o sistema computadorizado denominado de CompStat. Também passou a ser usado, mais recentemente, um equipamento que funciona como sensor: ele detecta tiros, facilitando a abordagem policial e funcionando como um alerta sobre riscos eminentes. Tudo isso evita reações desproporcionais.
Foi adotada uma estratégia para acabar com mercados públicos de venda de drogas, onde havia conflitos entre diferentes facções para controlá-los.
Vale ressaltar que novas administrações na cidade mantiveram essas inovações, em vez de interromperem as políticas adotadas, como é costumeiro de autoridades. Assim, houve política de longo prazo.
Enquanto isso, no Brasil, no entanto, exemplos bem sucedidos, como São Paulo — onde houve redução da criminalidade de 78% neste século, são pormenorizados por falsas narrativas de conotação política, como a de que houve um suposto acordo entre o governo e o PCC. No período, houve uma reestruturação da corporação, e o estado investiu sobretudo em tecnologia, inteligência e pessoal, tornando-se o ente federativo com os melhores resultados do país.
Enquanto isso, o Rio de Janeiro faz o exato oposto. Mesmo na era da tecnologia, o valor do desembolso anual da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro apenas com selos para cartas, por exemplo, é de R$ 3,6 milhões. O montante é setecentas vezes superior aos valores destinados à inteligência policial no estado. Em um cenário em que investimentos preventivos e de aprimoramento das ações policiais não são prioridades, pode-se dizer que a insegurança pública sofrida pela população fluminense, e que vitima tanto civis quanto agentes da polícia, é apenas previsível.
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