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Coliseu, em Roma: símbolo de uma próspera era  | PIxabay
Coliseu, em Roma: símbolo de uma próspera era | Foto: PIxabay

Em seu clássico tratado sobre economia "Human Action", Ludwig von Mises fez observações sobre as causas do declínio de civilizações antigas. Segundo o pensador, o declínio do Império Romano e a decadência de sua civilização foram causados por desintegração da interconexão da economia, e não por invasões bárbaras. Confira no trecho selecionado:

O conhecimento dos efeitos da intervenção governamental nos preços de mercado nos permite compreender as causas econômicas de um acontecimento histórico de consequências profundas, o declínio de uma civilização antiga. 

Se é correto ou não descrever a organização do Império Romano como capitalismo é algo que pode ser deixado indeciso. Seja como for, é certo que no século II, a era dos Antoninos, os chamados “imperadores bons”, o Império Romano alcançara um estágio elevado da divisão social do trabalho e do comércio inter-regional. 

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Uma civilização refinada estava presente em vários centros metropolitanos, um número considerável de cidades de tamanho médio e muitas cidades pequenas. Os habitantes desses centros urbanos eram supridos com alimentos e matérias-primas vindos não apenas dos distritos rurais próximos, mas também de províncias distantes. Parte desses suprimentos entrava nas cidades como receita de seus moradores ricos, proprietários de terras. 

Mas uma parte considerável era comprada em troca da aquisição pela população rural dos produtos das atividades de processamento realizadas pelos habitantes das cidades. Havia comércio extenso entre as diversas regiões do grande império. Não apenas nas indústrias de processamento, mas também na agricultura via-se uma tendência à especialização adicional. As diversas partes do império já não eram economicamente autossuficientes. Eram mutuamente interdependentes. 

O que causou o declínio do império e a decadência de sua civilização não foram as invasões bárbaras, mas a desintegração dessa interligação econômica. Os agressores forâneos apenas aproveitaram uma oportunidade oferecida pela debilidade interna do império. Do ponto de vista militar, as tribos que invadiram o império nos séculos IV e V não eram mais temíveis que os exércitos que as legiões romanas haviam derrotado sem dificuldade em tempos anteriores. Mas o império havia mudado. Sua estrutura econômica e social já era medieval. 

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A liberdade que Roma dava ao comércio sempre fora restrita. Com relação à venda de cereais e outros produtos de primeira necessidade, as restrições eram ainda maiores que as que se aplicavam a outras commodities. Era considerado injusto e imoral cobrar mais que os preços habituais por grãos, óleo e vinho, os produtos alimentícios básicos dessa época, e as autoridades municipais reprimiam o que considerassem ser a busca de lucros extorsivos. 

Desse modo foi bloqueada a evolução de um comércio atacadista eficiente nessas commodities. A política da annona, o equivalente à nacionalização ou municipalização do comércio de grãos, tinha por objetivo preencher as lacunas, mas seus efeitos eram pouco satisfatórios. Faltavam grãos nas aglomerações urbanas, e os agricultores se queixavam da pouca rentabilidade do cultivo de grãos. A intervenção das autoridades atrapalhou o ajuste da oferta ao crescimento da demanda.

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O confronto decisivo se deu quando, em meio aos problemas políticos dos séculos III e IV, os imperadores recorreram à desvalorização cambial. Com o sistema de preços máximos, a prática da desvalorizou paralisou completamente tanto a produção quanto a venda dos gêneros alimentícios vitais, desintegrando a organização econômica da sociedade. Quanto mais urgência as autoridades manifestavam em implementar os preços máximos, mais desesperadora tornava-se a situação das massas urbanas dependentes da aquisição de alimentos. O comércio de grãos e outros produtos de primeira necessidade desapareceu por completo. Fugindo da fome, as pessoas abandonaram as cidades, fixaram-se no campo e tentaram produzir grãos, óleo, vinho e outros gêneros de primeira necessidade para sua própria subsistência. Por outro lado, os donos das grandes propriedades rurais restringiram sua produção excedente de cereais e começaram a fabricar em suas casas de campo, as villae, os produtos de artesanato que necessitavam. Pois sua produção agrícola em grande escala, que já estava seriamente comprometida devido à ineficiência da mão-de-obra escrava, perdera sua razão de ser por completo quando desapareceu a oportunidade de vender a preços rentáveis. Como o dono da grande propriedade não podia mais vender nas cidades, ele tampouco podia continuar adquirindo os produtos dos artesãos urbanos. Ele foi forçado a procurar uma alternativa para suprir suas necessidades, empregando artesãos por conta própria em sua villa. Ele encerrou sua produção agrícola em grande escala e tornou-se locador, recebendo rendas de meeiros e arrendatários que pagavam pelo uso de suas terras. Esses chamados coloni ou eram escravos libertos ou proletários urbanos que se radicaram nos vilarejos rurais e começaram a trabalhar na terra. Surgiu uma tendência à criação de uma autarquia nas terras de cada grande proprietário. A função econômica das cidades, do comércio e da produção artesanal urbana encolheu. A Itália e as províncias do império retrocederam a um estado menos adiantado da divisão social do trabalho. Uma estrutura econômica altamente desenvolvida da civilização antiga retrocedeu para o que hoje é conhecido como a organização senhorial da Idade Média. 

Os imperadores ficaram alarmados com esse resultado, que solapava o poder financeiro e militar de seu governo. Mas sua reação foi em vão, pois não afetou a raiz do mal. A coerção à qual recorreram não pôde reverter a tendência à desintegração social, que, pelo contrário, foi causada precisamente por um excesso de coerção. Nenhum romano tinha consciência do fato de que o processo estava sendo induzido pela intervenção do governo nos preços e pela desvalorização cambial. Em vão os imperadores promulgavam leis contra o morador urbano que “relicta civitate rus habitare maluerit”. O sistema da leiturgia, os serviços públicos a serem prestados pelos cidadãos ricos, apenas acelerou a retrogressão da divisão do trabalho. As leis relativas às obrigações especiais dos armadores, os navicularii, tampouco conseguiram frear o declínio da navegação, assim como as leis sobre o comércio de grãos não conseguiram impedir o encolhimento da oferta de produtos agrícolas para as cidades. 

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A civilização maravilhosa da antiguidade morreu porque não reajustou seu código moral e seu sistema legal às exigências da economia de mercado. Uma ordem social está fadada a morrer se as ações exigidas para seu funcionamento normal são rejeitadas pelos padrões de moralidade, são declaradas ilegais pelas leis do país e são tratadas pelas cortes e a polícia como criminosas. O Império Romano desmoronou porque não possuía o espírito do liberalismo e da livre empresa. A política do intervencionismo e seu corolário, o princípio do Führer, decompuseram o poderoso império, do mesmo como como sempre irão desintegrar e destruir qualquer entidade social por necessidade. 

Trecho extraído de Human Action

Ludwig von Mises (1881-1973) lecionou em Viena e Nova York e foi assessor próximo da Foundation for Economic Education. Ele é visto como o maior teórico da Escola Austríaca do século 20.

©2018 Foundation for Economic Education. Publicado com permissão. Original em inglês

Tradução de Clara Allain

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