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Como o livro foi escrito em 2015, não dá para dizer que Pierre Manent escreveu a abertura de Beyond Radical Secularism [Para além do secularismo radical] tendo em mente a Covid-19, mas o que ele diz é relevante para o momento atual:
Os Estados são seres inchados e sobrecarregados, sempre lentos e adiando o momento de refletir e decidir. Eles têm a inércia como regra. (...) Só uma coisa parece realmente capaz de educar as nações, a experiência política, mas só quando essa experiência política é brutal, penetrante e avassaladora. No final das contas, como disse Maquiavel, algumas “acidentes extrínsecos” como guerras ou revoluções obrigam os membros de uma nação a “se reconhecerem” e assumirem de novo as rédeas da vida comum. Com medo ou esperançosos, cada pessoa hoje se confronta com o que elas têm em comum (...). As escolhas feitas durante horas ou semanas decisivas assombrará a vida dos indivíduos e da nação, que serão moldados por essas decisões por várias gerações.
Não importa se você considera a pandemia atual uma enorme ameaça ou apenas a reação do governo a uma histeria. O medo é vivenciado por muitos, e até pelo governo, e é semelhante ao “acidente extrínseco” mencionado por Maquiavel. Escolhas feitas durante essas “horas ou semanas decisivas” podem muito bem “assombrar” a vida do país durante algum tempo.
Não só o presidente Donald Trump invocou a Lei de Defesa da Produção como também se discute o uso de US$1 trilhão em ajudas e socorros, a imposição de toque de recolher, o fechamento de escolas e empresas e a restrição à venda de armas. Há cidades e regiões inteiras em quarentena — que talvez dure, de uma forma ou de outra, até dezoito meses. Essas são decisões tomadas com medo e esperança, e rapidamente tomadas por Estados não afeitos à reflexão, aprendizado ou sabedoria.
Já há medidas propostas que mudarão aspectos importantes da nossa sociedade e economia: a nacionalização das companhias aéreas, o New Deal Verde, o projeto que garante saúde a todos, o “novo caminho da coletivização”, que pretende tornar algumas dessas medidas “permanentes”, e mais. Levando em conta essa suposta “nova realidade”, algumas pessoas alertam para as ameaças à liberdade e outras celebram o fim do Estado mínimo, enquanto há aquelas que anseiam pelo fim da nova ordem mundial.
Boa parte dessas análises é prematura e exagerada, ainda que elas demonstrem que Manent tem razão ao observar que acidentes extrínsecos como uma pandemia obrigam os cidadãos a “se reconhecerem” e assumirem “as rédeas da vida comum”, uma vez que todas as pessoas são “confrontadas com aquilo que têm em comum”.
O que muitos deveriam reconhecer, contudo, é que há muito tempo elas deixaram de se ver como cidadãos.
A praga da irresponsabilidade e a soberania ilimitada do eu
Fica claro que, para Manent, a vida comum está “frouxa”. Já sabemos que jogamos boliche sozinhos, nos distanciando e nos alienando em nossa república fraturada. O capital social se erodiu e a confiança nas instituições é baixa, enquanto a polarização — etária, renda, racial, política, geográfica, educacional e jornalística — é alta. Muitos simplesmente não se veem como membros de um projeto em comum.
Por exemplo, várias matérias mostram como jovens correram para bares e praias, shows e cafés, apesar dos pedidos e alertas das autoridades de saúde. O dono de uma casa noturna resumiu o comportamento dizendo “E daí? Se você pegar a gripe não vai morrer”, ainda que essa atitude faça com que muitos outros, sobretudo os mais vulneráveis, corram riscos. Na verdade, o apelido da Covid-19 (para alguns) é “limpa-velho.” Afinal de contas, os velhos destruíram a economia e o clima. Diante disso, não é de se surpreender que alguns jovens reajam à quarentena com um enfático “Estão nos impedindo de viver” — sendo que “viver”, no caso, significa beber e dançar durante as férias de primavera. Educados para serem pessoas obcecadas com a própria identidade, os jovens são “uma geração que geralmente parece alheia à sociedade”.
Ao mesmo tempo, alguns jovens reclamam que seus pais antiquados se recusam — de novo — a levarem a vida a sério, ignorando as regras de distanciamento social e agindo como se nada de mau pudesse lhes acontecer. Um jovem disse a seus pais, que iam jogar golfe e participar dos eventos sociais de sempre, para que eles “deixassem de ser as crianças rebeldes dos anos 1960 e crescerem”.
Em outras palavras, não é uma questão de idade. Sejam eles velhos ou millennials, isso não vem ao caso, já que muitos não se veem como cidadãos — como participantes e seres parcialmente responsáveis pelo bem comum. Mesmo considerando o dever moral de evitar causas problemas à saúde e ao bem-estar dos outros, que é um dever real, o senso cívico de amizade, de “estamos juntos nisso” enquanto membros de um projeto conjunto, parece faltar a muitos. (Mas não de todos. Ainda bem). A famosa “Oração Fúnebre” de Péricles, na qual ele conta como os soldados atenienses “lutaram e morreram” pelo bem de Atenas, enquanto os sobreviventes continuarem “preparados para sofrer pela causa”, é lida como algo de uma cultura e tempo distantes, nos quais se supõe que a glória e o bem da cidade se sobrepõem aos interesses privados. No momento atual, muitos parecer ter concluído que o país nada mais é do que “um fornecedor burocrático de bens e serviços que está sempre disposto (ainda que jamais concretize isso) a conferir valor a seus clientes em troca de dinheiro”. O convite a “paralisar a vida de alguém em nome disso (...) está sendo feito como se pedissem para morrer pela empresa de telefonia”. E, sejamos honestos, ninguém vai se sacrificar por sua provedora de celular.
Se alguém entende o projeto cívico como algo não muito diferente de uma força burocrática — e ineficiente — de prover bens e serviços, a cidadania é vista como algo irrelevante ou até mesmo uma inconveniência. Em outras palavras, a cidadania é uma visita ocasional ao departamento de trânsito.
A irresponsabilidade de algumas pessoas diante do coronavírus não é simplesmente uma questão de caráter, e sim algo sintomático de uma doença política anterior. De acordo com Manent, a culta é principalmente da forma equivocada como compreendemos nossos direitos: “Nosso regime político aos poucos causou sua própria paralisia. (...) Os direitos dos homens foram radicalmente separados dos direitos dos cidadãos e, em vez de libertarem os membros da sociedade para capacitá-los a tomarem decisões e participarem do que é comum a todos, transformaram os indivíduos em pessoas das quais se espera autossuficiência e as instituições em nada além de instrumentos dóceis. Somos provavelmente o único povo na história a subjugarmos todos os elementos da vida social e tudo o que se refere à vida humana à soberania ilimitada do indivíduo”.
Direitos vazios e indivíduos nus
Ao argumentar que se espera que os indivíduos “se bastem”, Manent não está falando de caubóis contemporâneos autossuficientes. Ao contrário, como argumenta Manent, quando a lei natural e os direitos naturais são substituídos por direitos humanos, o indivíduos deixa de ser visto como um agente que existe sob a lei (divina ou natural), e sim como um ente em si. Além disso, o indivíduo é visto como um ser fundamentalmente desprovido de relações que compõem as identidades — como ser filha ou filho, pai ou mãe, cristão ou judeu, cidadão ou súdito — e apenas como um indivíduo sem qualidades. É um indivíduo nu, sem nada do que define e molda os seres humanos de verdade — afinal, todos somos filhos ou filhas, cidadãos ou súditos, fiéis ou não. O detentor de direitos, pois, “é o indivíduo considerado um ente distinto, pela própria natureza, dos demais”. Só por ser um indivíduo vivo, uma “unidade de vida” sem qualidades ou relações específicas – homem, filho, pai, marido, norte-americano, cristão e filho de seu pai, marido da sua mulher — é que ele tem direitos humanos.
Essa ideia “simplória e pobre” da natureza humana — desprovida das relações verdadeiras que compõem a vida humana, em contraposição ao dato de se estar apenas vivo; uma natureza humana que “não tem sexo ou idade, nem talentos distintos” — “é considerada a base dos direitos humanos”. Consequentemente, tudo o mais, todas as outras coisas humanas nas quais as pessoas se reconhecem, são vistas como meras “construções”, acidentes e, como são apenas construções, é “possível e até urgente que elas sejam desconstruídas”.
Nossa sociedade e suas escolas e faculdades se dedicam a revelar, expor e desconstruir as coisas realmente humanas para mostrar como elas são artificiais: nada além de poder, privilégio e ressaca religiosa, coisas que precisam ser destruídas para que o indivíduo enquanto indivíduo possa se definir como bem entender. Direitos são conferidos aos indivíduos nus não totalmente humanos; eles são desprovidos de conteúdo. E, assim, não há nada de sensato a dizer ou pensar sobre esses direitos, já que eles expressam o que e como o indivíduo quer o mundo para si mesmo — não como ser humano vivendo de acordo com a lei, e sim como um sem com vontade própria.
Vistos assim, os indivíduos dificilmente se verão como cidadãos, uma vez que todo mundo é um reino anárquico em si. É mais improvável ainda que esses tiranetes serão capazes de antever o bem comum, muito menos de se sacrificar por ele, por mais inofensivo e inconsequente que ele seja.
Há quem diga que a Covid-19 mudará tudo. Ao contrário, ela apenas revela como muitos de nossos compatriotas há muito deixaram de ser cidadãos. Como eles não se veem como entes vivendo de acordo com a lei, a perda da liberdade ordenada que (provavelmente) há de resultar da pandemia era inevitável numa nação composta por consumidores que dizem ter direitos, e não cidadãos que dizem ter responsabilidades.
R.J. Snell é editor do Public Discourse e diretor do programa acadêmico do Witherspoon Institute.