A Comissão de Assuntos Sociais do Senado aprovou no último dia 10 um projeto de lei que concede meia-entrada a doadores regulares de sangue. Por mais virtuosa que a medida possa parecer, é mais um aspecto da vida em que o Estado acha necessário intervir.
Esse tipo de legislação já existe em alguns estados, como no Espírito Santo e no Paraná. Mas há leis para incentivar as pessoas a serem “boazinhas” também em nível municipal. Um exemplo recente é o da prefeitura de Quinta do Sol, no centro-oeste do Paraná: a cidade chamou atenção ao oferecer desconto de 30% a 50% no valor do IPTU como incentivo para a adoção de animais de rua.
Além disso, quem faz doações para fundos de apoio a crianças e adolescentes, idosos, projetos culturais, desportivos, atividades audiovisuais, ações de combate ao câncer e apoio a deficientes, por exemplo, pode abater até 8% do valor doado na declaração do Imposto de Renda.
Outro exemplo da intervenção estatal é o projeto de lei de autoria da deputada federal Soraya Santos (PL/RJ) que concede incentivos fiscais a empresas que incentivem a prática de atividade física para empregados obesos. Isto é, o Estado propõe um incentivo financeiro para que as pessoas cuidem da própria saúde.
Os benefícios gerados por essas legislações têm impacto tanto nos municípios, que passam a arrecadar menos, quanto na iniciativa privada, que precisa se reorganizar para não sofrer prejuízos.
No caso específico da lei da meia-entrada, quem hoje não conta com incentivos acaba por pagar praticamente o dobro do ingresso. A fatia dos beneficiários da meia-entrada chega a beirar entre 70 e 80% do público total pagante em eventos, segundo estudo da FEA-USP. De acordo com o pesquisador Carlos Martinelli, isso aumenta o valor do ticket médio e provoca "desequilíbrio e inevitável falência de transferência de renda". Com a proposta para estender o benefício em troca de doação de sangue, o número pode aumentar.
Subsídios para estimular condutas virtuosas também representam um custo tributário. Afinal, quando um grupo contribui menos para a receita pública, os outros indivíduos ficam em desvantagem. Isso significa que, em média, paga-se mais impostos para que haja isenções, abatimentos e restituições.
Quando a caridade é motivada por uma isenção fiscal, ela deixa de ser feita apenas para promover o bem comum, ajudar a sociedade e desenvolver a responsabilidade social que cada indivíduo tem com o meio que vive. É uma espécie de estatização da caridade ou de condutas boazinhas e é preciso compreender os problemas morais disso.
Conforme escreve o professor de filosofia política em Harvard Michael Sandel no livro O que o dinheiro não compra, deve haver alguns limites morais no mercado. O autor alega que o estabelecimento de incentivos em determinadas condutas “corrompem o significado de cidadania”, já que os incentivos podem ser responsáveis por “descartar princípios que deveriam ser respeitados”. Nesse sentido, “direitos cívicos não devem ser encarados como propriedade privada, mas como responsabilidade pública”. Terceirizados, pois, representam a perda da honra ao cumprir seu propósito original e “tratá-los de maneira errada”.
Partido Comunista Chinês, o Grande Irmão
O primeiro episódio da terceira temporada da série Black Mirror conta a história de uma mulher que vive numa sociedade baseada nas redes sociais. Na distopia, as pessoas se avaliam a todo instante, ganhando ou perdendo pontos. As avaliações rendem uma nota que permitem à personagem ter acesso a serviços públicos e privados, e o drama se revela justamente na busca por popularidade.
O episódio da série de TV já virou realidade em algumas áreas da China. O Partido Comunista Chinês criou um sistema de monitoramento chamado “Sistema de Crédito Social”.
A pontuação é dada a partir de um algoritmo que combina informações de diversas fontes e analisa inúmeros dados pessoais dos chineses. Realizar trabalhos voluntários, manter a ficha criminal limpa, não receber multas de trânsito, utilizar o transporte público, cumprir os limites de planejamento familiar, ter um histórico acadêmico com boas notas — tudo conta pontos.
Pagar impostos, faturas de cartão de crédito e quitar empréstimos, pagar contas de água e energia elétrica e cumprir ordens judiciais também integram a avaliação. O controle abrange ainda a interação com amigos online: publicar algo que desagrade o governo pode render dores de cabeça. Ao tentar ligar para um cidadão chinês mal avaliado, por exemplo, pode-se receber uma gravação de que o contato implicará em perda de pontos.
Ter uma boa avaliação significa benefícios, como menos burocracia para embarcar num voo, taxas menores de empréstimos, ter opção de plano de saúde, serviços de internet e descontos em produtos e serviços públicos. Muitos chineses enxergam benefícios no sistema, mesmo sem saber o que pode ocorrer com os mal avaliados.
Mais de 28 milhões de pessoas já se cadastraram voluntariamente no sistema de ranking social chinês. Muitos deles são jovens atraídos pelas promessas de prioridade na seleção de vagas na universidade e emprego, além de empréstimos com juros mais baixos. Porém, mesmo que não se queira fazer parte do ranking, a utilização de alguns serviços privados só é permitida se houver cadastro no sistema de monitoramento, que ainda está em versão de testes.
O governo chinês pretende implementar o sistema de monitoramento a todos os quase 1,4 bilhão de habitantes até 2020. O desenvolvimento da inteligência artificial está sendo possibilitada a partir de um investimento de US$ 150 bilhões até 2030.
“Homem novo”
“Para construir o comunismo, tem de se fazer o homem novo”, escreveu Che Guevara. Desde o Iluminismo, acredita-se que a natureza humana é maleável, que indivíduos podem ser condicionados a determinados comportamentos a depender da educação, do espírito revolucionário e da influência da sociedade.
Os ideólogos socialistas puseram em prática a tarefa de criar um “homem novo”, altruísta, que segue o bem comum — definido pelos interesses do partido.
O resultado foi a perseguição, opressão e morte de milhões de indivíduos que não se encaixaram nas idealizações do governo central.
Dessa forma, o sistema de crédito social é justificado pelo governo chinês como uma forma de construir uma sociedade socialista harmoniosa, com confiança mútua e reduzir o que definem como “contradições sociais”. Em última análise, o sistema representa apenas mais uma tentativa de controle estatal e formatação do idealizado “homem novo”.
Solidariedade no Brasil
O World Giving Index, elaborado pela Charities Aid Foundation, mede o grau de solidariedade ao redor do mundo. A última edição foi divulgada em outubro de 2018 e o Brasil apareceu na 122º colocação entre 146 países, a pior colocação para um país latino-americano. O país ficou atrás até da Venezuela (107º lugar) que, sob o chavismo, vive uma crise econômica e humanitária.
A crise econômica, a alta do desemprego e os altos impostos são alguns dos possíveis fatores para a queda brasileira no ranking, registrada desde 2016. A situação da economia gera insegurança, o que faz com que as pessoas comecem a poupar seus recursos pensando no futuro próximo.
Em 2015, o Brasil estava na 68ª posição geral. Segundo o último levantamento, 43% dos entrevistados ajudaram um desconhecido (contra 54% em 2016), 14% doaram alguma quantia em dinheiro (21% em 2016) e 13% realizaram algum trabalho voluntário (20% em 2016), totalizando uma média de 23%.
Convicções da Gazeta do Povo
A Gazeta do Povo entende que o conjunto de ideias, virtudes e conhecimentos vividos em uma comunidade forma um caldo cultural com potencial transformador muito mais influente que a atuação estatal. Dessa forma, a caridade não deveria ser estatizada, nem a responsabilidade dos indivíduos para com sua comunidade terceirizada, como nos exemplos destacados no início desta matéria.
A construção de um ambiente moral e saudável tem de se dar nas mãos dos indivíduos, não do Estado. As virtudes são o que há de mais valioso na vida humana e representam o melhor alicerce para se construir uma sociedade promissora. E isso se dá pelas ações, exemplos e referências deixados por empreendedores, artistas, intelectuais, comunicadores, ativistas, cientistas, líderes comunitários, professores, inovadores, entre outros. Há, portanto, diversos atores responsáveis pela construção do capital material e social que constitui o bem comum.
O poder público pode ajudar na construção desse ambiente, especialmente garantindo as condições adequadas para que esses atores possam colocar em prática as suas capacidades. Mas é um papel subsidiário - ele não deve ser desprezado, mas os protagonistas desta tarefa são os cidadãos e as organizações da sociedade civil.
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