(Antes de correr para as redes sociais a fim de apontar o erro crasso de ortografia e acabar provando de antemão meu argumento, aconselho ao leitor apressado, ele próprio vítima e algoz do facismo, que leia ao menos o primeiro parágrafo [fora esse, digo]).
Aconteceu mais um massacre numa escola. Dois homens barbados, um de 17 e outro de 25 (!) anos, entraram na escola e saíram atirando. Até agora as notícias dão conta de dez mortos, incluindo os dois covardes que, evidentemente, se mataram. E, como sempre acontece nessas situações, nas redes sociais ou nas conversas entre amigos pululam explicações fáceis para a tragédia.
O vice-presidente da República, Hamilton Mourão, por exemplo, culpou os vídeo-games violentos. Aquele pessoal que grita anauê! correu para culpar o imperialismo cultural estadunidense – ou coisa que o valha. Tenho certeza de que neste exato momento alguém está escrevendo por aí que a culpa é das armas. Outras explicações fáceis são o pai ausente, a decadência da Civilização Ocidental, a falta de disciplina, o excesso de disciplina, o desemprego, a glamourização da violência e a falta de amor no coração.
São (quase) todas explicações plausíveis e reconfortantes, mas essencialmente fáceis. São explicações até naturais para uma tragédia que desafia nosso senso de justiça, que nos obriga a nos ajoelharmos diante do Acaso. Mas são também explicações que refletem um fenômeno antigo e que, em outra escala, é extremamente nocivo: o facismo.
O facismo é o bisavô, avô, pai e provavelmente filho de todas as tragédias recentes da Humanidade: regimes totalitários e genocidas, holomodores, guerras e, nos últimos anos, a incapacidade de convívio respeitoso e minimamente harmônico entre os diferentes dentro de uma comunidade. A crise espiritual pela qual a Humanidade inegavelmente passa não tem outra gênese que não ele, o facismo.
Que nasceu como uma necessidade muito clara de tornar a vida uma experiência mais agradável. Ou menos desagradável, o que é bem diferente. Vale a pena mergulhar num livro interessantíssimo como A Casa, de Bill Bryson, para descobrir como o cotidiano pré-Revolução Industrial era um suplício para a maioria absoluta da população. Com as máquinas e o gradual aprendizado do funcionamento da natureza (da evolução ao átomo), o homem passou a acreditar na própria capacidade de resolver todos os problemas da Humanidade por meio da tecnologia ou do planejamento social. Está dando no que está dando.
Uma “simples” locomotiva é expressão do facismo. Afinal, ela permitiu deslocamentos maiores, contribuindo para que o homem ocupasse lugares remotos, ampliando horizontes, como diz o lugar-comum. Mas o marxismo também foi (e infelizmente é) expressão do facismo, ao propor a abolição das classes sociais como forma de resolver uma mazela que acompanha o ser humano desde o início dos tempos: a escassez. Antes disso, as guilhotinas da Revolução Francesa foram o lado sangrento do facismo. E o que é a ideia de colonizar Marte senão um delírio facista?
À medida que problemas muito práticos começaram a ser resolvidos por meio da tecnologia e da ciência, o homem ganhou confiança e o facismo, força. Era (e é) como se não houvesse problema impossível de ser solucionado. Daí nasceram os regimes totalitários, genocidas e eugenistas do início do século XX. Na Alemanha nazista e na União Soviética stalinista o facismo alcançou seu patamar mais violento e radical quando as pessoas passaram a acreditar que os problemas podiam ser resolvidos com a eliminação dos judeus e dos inimigos do regime.
Era de se esperar que, depois de tais experiências traumáticas, o facismo fosse cair em desgraça e as pessoas perceberiam que a vida é deliciosamente complicada. Mas aconteceu justamente o contrário. Por algum acaso que não me julgo capaz de apontar, diante do horror causado pela busca por soluções fáceis o homem não se rendeu, como seria de se esperar, à complexidade incontornável da condição humana; o homem buscou soluções mais facistas ainda para seus problemas cotidianos.
E nada mais facista do que usar o esquecimento como forma de alimentar e justificar o facismo.
Curioso é que o facismo tenta refutar a própria Natureza ao negar dois axiomas: o de que não há soluções fáceis para problemas complexos e o de que absolutamente toda decisão que se tome tem em si consequências imprevisíveis, efeitos colaterais que o intelecto humano não é capaz de prever.
O facismo, portanto, na ânsia por resolver todos os problemas da sociedade e do indivíduo, sempre acaba por causar mais problemas que, por sua vez, são resolvidos por meio de soluções facistas, que geram outros problemas e… Bom, acho que você entendeu.
Hoje o facismo está entranhado na sociedade ocidental e é desavergonhadamente apregoado tanto por fascistas quanto por antifascistas. Todo mundo acredita ter uma solução fácil, facinha, facista para absolutamente todos os problemas contemporâneos. A teoria do “bandido bom é bandido morto” é facista. As leis municipais que pretendem eliminar os canudinhos plásticos como forma de diminuir a poluição dos oceanos é facista. O menino que decide virar menina só porque não se encaixa num padrão completamente subjetivo de masculinidade é facista; pior, autofacista.
As redes sociais, sem as quais a vida hoje parece impossível (o que, ironicamente, só complica minha argumentação) são facistas por excelência. É na timeline, post após post, que se vê o ideário facista se manifestar da forma mais abjeta, por meio de lugares-comuns, memes, frases atribuídas a Clarice Lispector e, claro, xingamentos que explicam tudo e encerram qualquer tipo de discussão.
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O facista confia tanto em si, na sua capacidade de interpretar, compreender e salvar o mundo que, diante de um texto algo mais elaborado, com parágrafos e conjunções, com metáforas mais ou menos coloridas e meia-dúzia de trocadilhos para dar certo sabor à argumentação, se municia de meia-dúzia de impropérios para dar o veredito insuportavelmente facista: que bobagem!
Pior: há certo orgulho em ser facista. Vejo meninos e meninas que batem no peito, orgulhosos por jamais terem lido um livro na vida e mesmo assim saberem tudo. O que revela um dos aspectos mais interessantes do facismo: por mais que se fantasie de intelectualismo/cientificismo e que ostente meia-dúzia de diplomas na parede, o facismo é essencialmente intuitivo.
E termino aqui o texto assim, de uma forma um tanto quanto abrupta, porque, a despeito da atmosfera facista ao meu redor, de repente reconheço ser impossível encerrar este meu raciocínio sobre o facismo da forma que seria mais fácil: com uma frase de efeito arrebatadora que causasse no leitor o efeito por mim anteriormente planejado, sem a consequência indesejável de me ver refutado por uma injúria facista qualquer.