Falar sobre os pais do conservadorismo é o mesmo que falar de mentes complexas e heterogêneas, sejam em suas áreas de atuação, crenças ou autodefinições políticas. Tais mentes são universos de capacidades e profundidades filosóficas a serem explorados com o devido cuidado e sem generalizações, a fim de que tiremos de cada manancial aquilo que eles ofertam e não aquilo que nossas sanhas políticas querem que eles ofertem e reforcem.
Tudo isso se torna ainda mais complicado quando nos damos conta de que o conservadorismo político é algo mais diverso do que qualquer homogêneo complexo político-catequético moderno que normalmente denominamos de “lados” ou “ideologias” políticas. Quando o pensamento político tem como definição “não-ser-ideologia” e seus fundadores são universos de pensamentos multifários, definir “conservadorismo” se torna automaticamente árduo e perigoso pois, no próprio ato de conceituá-lo pode-se rapidamente cair na tentação de homogenializá-lo, transformando-o naquilo que ele justamente busca não ser: uma ideologia fechada e doutrinal de pensadores limitados, criadores de cartilhas.
Por tudo isso, para falar sobre os pais do pensamento conservador, devemos antes extrapolar o próprio conservadorismo entendido como pensamento político fechado ou grupo tribal de adeptos fidelizados. “O conservadorismo moderno é produto do Iluminismo. Mas invoca aspectos da condição humana que podem ser testemunhados em todas as civilizações e em todos os períodos da história. Além disso, é herdeiro de um legado filosófico ao menos tão antigo quanto os gregos”, escreve o filósofo Roger Scruton em Conservadorismo: um convite à grande tradição.
Nessa esteira, uma das leituras possíveis pode ser a de considerar Adam Smith (1723-1790) ― o conhecido pai fundador do liberalismo econômico ― o primeiro a dar diretrizes claras àquilo que hoje chamaríamos cotidianamente de conservadorismo político moderno. O próprio Scruton diz isso: “Mas foi um pensador do Iluminismo escocês. Adam Smith, quem forneceu o insigth filosófico que realmente deu início ao conservadorismo intelectual”.
A vida do liberal-conservador Adam Smith
Adam Smith nasceu em 1723, na cidade de Kirkcaldy, Escócia. Filho de Adam Smith ― sim, homônimo ―, talentoso jurista que trabalhou na Corte Suprema e, posteriormente, foi secretário do Conde de Londoun durante o tempo em que ele trabalhou como Secretário-chefe de Estado e Chanceler. Sua mãe, Margaret Douglas, ficou conhecida por ter sido uma mãe sempre solícita ao seu filho até a sua morte em 1784. Ela agia assim, afirma Dugald Stewart (1753 – 1828), por causa da fragilidade da saúde do filho nos primeiros anos de vida e porque Adam Smith, o pai, morreu deixando o pequeno Smith órfão poucos meses antes de seu nascimento.
Com apenas 14 anos, Adam Smith ingressou na Universidade Glasgow, onde permaneceu até 1740, quando foi para o Balliol College, instituição de ensino pertencente à Oxford. Lá, Smith permaneceu por 7 anos e saiu sem trabalhos expressivos e nem louros de seus mestres, o que nos faz crer que aqueles 7 anos não foram tão bem aproveitados como ele esperava.
Apesar de seu natural interesse pela filosofia moral, foi outro interesse que primeiro o destacou para a intelectualidade: a matemática. Unindo os dois mundos, a filosofia e a ciência dos números, em 1751 Adam Smith foi escolhido como professor de Lógica na Universidade de Glasgow. Mais tarde, porém, ele assumiria a cadeira de filosofia moral na mesma universidade, devolvendo-o à área de estudo que amava.
Dugald Stewart, que foi amigo pessoal de Adam Smith e se tornou o primeiro a escrever uma breve biografia do escocês, afirmou que, antes de 1952, Adam Smith e David Hume (1711 – 1776) já eram grandes amigos, tendo ambos trocado elogios públicos durante toda a vida. O mesmo ocorreu ― com menor intensidade, é verdade ― com o parlamentar e filósofo irlandês Edmund Burke (1729 – 1797). Burke ― considerado por muitos o pai do conservadorismo filosófico ― chegou, inclusive, a elogiar publicamente os escritos de Adam Smith, recomendando-o a seus amigos próximos.
Em 1776, Adam Smith abandonou a cadeira universitária para ser tutor do duque de Buccleuch e, em 1778, recebeu um posto oficial na alfândega da Escócia, vivendo com sua mãe na cidade de Edimburgo, onde também faleceu em 17 de julho de 1790 de uma doença desconhecida.
Por que Adam Smith?
Na mesma esteira de John Locke (1632 – 1704) em Segundo tratado sobre o governo civil, Adam Smith fez um trabalho de antropólogo das causas sociais, mas no caso do escocês sua investigação tratava-se antes de uma escavação de ordem moral a partir do indivíduo. Para Smith, a afirmação do indivíduo como força propulsora da sociedade gerava credibilidade e habilitação para o próprio poder político, afastando de maneira natural qualquer tipo absolutismo político.
A sua tese moral, replicada também em sua asserção econômica, é a de que se o poder está esparso em várias cabeças, ele tende a ser menos opressivo do que quando está centralizado e administrado por poucos. Uma clara evolução filosófica advinda do episódio da Revolução Gloriosa (1688-1689), que lutou contra o absolutismo de James II (1633 -1701), e dos impulsos liberais e individualistas do movimento cultural denominado “Renascimento” ― movimento que perdurou do século XV ao XVII.
Sob tais asserções e princípios, Adam Smith parece ter encontrado em sua obra mais famosa: Uma investigação sobre a natureza e a causa da riqueza das nações, alguns sustentáculos que uniriam liberais e conservadores sob um consenso mais ou menos pacífico referente aos adequados tratos políticos nos séculos XIX, XX e XXI. Liberais e conservadores concordariam com a necessidade de um governo limitado que desse conta de administrar as relações humanas sem, todavia, determiná-las ao ponto de suas diretrizes se tornarem tiranas.
Smith pregou ainda ― ao que tudo indica sob a influência de Montesquieu (1689-1755) ― a separação dos poderes a fim de gerar uma autorregulamentação orgânica sem excessos de centralizações, além de afirmar a necessidade de instituições representativas ― religiosas ou não ― que fizessem o cidadão ganhar proeminência e ressonância frente a um poder central impositivo.
Por fim, mas não menos importante, Adam Smith, seguindo as ponderações clássicas dos estoicos, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino e David Hume, Smith afirmava que a ética era um filete robusto que perpassava a todos e que se renovava e promovia através das tradições e costumes populares. Tais posições político-filosóficas atualmente podem ser consideradas “conservadoras” sem que existam grandes discordâncias entre os próprios conservadores.
Os pilares do conservadorismo moderno
No entanto, foi a partir de uma obra pouco louvada ― Teoria dos sentimentos morais ― que Adam Smith se sagrou o fundador moderno do pensamento conservador. Smith é contrário à ideia de “contrato social”. E é justamente nessa posição que está o nascimento da teoria social do conservadorismo: a sociedade existe por causa dos indivíduos, das famílias e instituições, e não o contrário.
Para o escocês é completamente vago falar de uma sociedade fundamentada em leis abstratas e teses filosóficas produzidas em gabinetes. O indivíduo deve ser a primeira engrenagem da sociedade, assim como suas moralidades, o combustível. Como consta na História da filosofia política de Leo Strauss e Joseph Cropsley:“Assim, não apenas ensina Smith uma sociabilidade natural do homem, mas, também, o caráter natural da lei moral”.
Muitos intelectuais elaboravam suas sociedades de “faz de conta” e as ofertavam no altar do debate público a fim de ter suas diretrizes teóricas testadas no laboratório político da realidade. Um intelectual elaborava uma teoria social em seu gabinete, construía as diretrizes de como deveria ser uma sociedade ideal e depois inflamava as multidões a adotarem a sua cartilha e imporem-na através do Estado após a sua tomada. Eis o que chamamos de “espírito” ou “método” revolucionário. Tal trilha seria exaustivamente usada, posteriormente, do século XVIII ao XX.
O conservador tem em mente que o indivíduo já nasce num terreno de deveres e direitos, de adequações e iniquidades e que, ao se apresentar na história, o homem já está sob leis e obrigações que lhe são impostas. O homem geralmente nasce em uma família, sob jurisdições de instituições milenares e costumes sociais. Tais fundações naturais o alimenta material, espiritual e intelectualmente, educa suas vontades, oferta virtudes e ― por vezes ― também defeitos, socializa suas ideias e, enfim, lhe dá as ferramentas sociais e morais adequadas para expandir suas relações com o mundo fora de suas propriedades.
Dessa forma, encontramos uma formulação que dá conta de uma construção social por meio da afetividade mútua dos cidadãos: a livre-associação. Smith argumenta que o cimento moral que une os cidadãos em comunidades, grupos, instituições e até em família é a empatia, a capacidade de compartilhar experiências e o desejo de aceitação e o afastamento da renegação. E não a razão ou as imposições judiciais, como queria Rousseau e Hobbes.
Quando criou o homem para a sociedade, a natureza o dotou de um desejo original de agradar, e de uma aversão primária a ofender seus irmãos. Ensinou-o a sentir prazer com a opinião favorável destes, e a sofrer com sua opinião desfavorável. Tornou a aprovação dos semelhantes em si mesma muito lisonjeira e agradável a ele, e sua desaprovação muito mortificante e ofensiva.
Joseph Cropsey comenta ainda: “O homem que percebe, ou simplesmente imagina, o terror, o ódio a benevolência, ou a gratidão de outro deve, em certa medida, entrar nesta paixão e vivenciá-la ele mesmo, pois deve imaginar-se na situação do outro, e daí tudo se segue”.
Dessa forma, para Adam Smith os sentimentos morais são as bases estruturais que fazem os indivíduos extrapolarem seus egos e buscarem diálogo. O medo do desprezo os fazem ser suaves, o medo do ridículo ou da exclusão do grupo os fazem ser sociáveis e agradáveis. E, da mesma maneira que o medo da exclusão (virtude negativa) me faz ser agradável, a virtude positiva passa a ser praticada e ensinada às gerações posteriores como atalhos para o bem comunitário.
Segundo Roger Scruton, os sentimentos morais partem de um pressuposto individualista, porém, interrelacional, o indivíduo observa e participa da conduta alheia e, a partir dela, adequa, repudia, melhora ou abandona a sua própria forma de agir, atuando como um juiz imparcial de suas próprias ações. Ou seja, no princípio de uma sociedade conservadora está a capacidade individual de aprender com os sábios, corrigir-se com maturidade e prestar contas de suas condutas aos demais da comunidade. Onde os intelectuais franceses viam direitos sem fim, os ingleses viam deveres e freios morais. Para a moralidade inglesa é muito fácil falar de freios políticos ou institucionais, pois antes se exige o mesmo de cada cabeça inglesa. O conservadorismo nasce, pois, da percepção de que não somos bons e nem maus selvagens, mas que somos indivíduos capazes de bondades e maldades caso observemos - ou não - as condutas e regras que a experiência social nos legou.
Individualidade e necessidades do grupo
E aqui jaz a genialidade das observações morais e sociais de Adam Smith. A individualidade, apesar de se apresentar como engrenagem da realidade, não está isolada das necessidades do grupo, seja pela recepção das tradições e costumes que são elas mesmas fontes de moralidades, seja porque a virtude alcançada pelo esforço de autocorreção só pode ser percebida a partir dos indivíduos que com ele vivem.
Se fosse possível que uma criatura humana vivesse em algum lugar solitário até alcançar a idade madura, sem qualquer comunicação com sua própria espécie, não poderia pensar em seu próprio caráter, a conveniência ou demérito de seus próprios sentimentos e conduta, a beleza ou deformidade de seu próprio rosto. Todos esses são objetos que não pode facilmente ver, para os quais carece espelho que sirva para apresenta-los à sua vista. Tragam-no para a sociedade, e será imediatamente provido do espelho de que antes carecia.
A percepção da virtude, para Smith, não está suspensa em uma nuvem de abstrações ou citada em livros empeirados nas estantes de Sorbonne, mas na própria interação entre os indivíduos e nas éticas inerentes às suas essências.
Adam Smith acredita, também, que as instituições jurídicas do Estado só existem porque previamente há um senso de moralidade e justiça entranhados nos indivíduos, costumes, famílias e instituições não governamentais. A sociedade só existe porque há um prévio consenso ético e moral que regulamenta o mínimo necessário para uma convivência social saudável.
Em suma, foi Adam Smith ― bebendo de várias outras fontes, é verdade ― quem primeiro trabalhou as ideias do “direito natural”, uma ética intrínseca arraigada em cada indivíduo que o impele a fazer o bem e recusar o mal, e os “sentimentos morais”, a percepção de que os indivíduos são homens naturalmente sociáveis e dependentes dos outros indivíduos.
Por fim, o filósofo conclui dessas premissas que a sociedade e sua governança são frutos dos indivíduos e de suas instituições ― inclua-se aqui as crenças religiosas e costumes específicos ― e não o contrário. O Estado existe por causa dos indivíduos e suas instituições basilares e, justamente por antecedê-la, os indivíduos e as instituições definem, gerenciam e determinam suas ações. Para Smith, uma sociedade real é uma sociedade natural, que parte dos indivíduos para o aglomerado.
O indivíduo e a condução moral do homem alimentaram sua visão econômica ― o que seria a “mão invisível” se não uma ética coercitiva pré-determinada? ―, mas também alimentaram sua visão política e social, e foi Smith quem primeiro colocou juntas essas estacas filosóficas de forma a parecerem uma construção real, uma ideia política coerente e sensata.
Hoje os conservadores, de maneira geral, abraçam essas diretrizes para as formulações de suas opiniões e propostas políticas; ainda que haja diversidades no pensamento conservador, poucos seriam aqueles que dispensariam o direito natural, a proeminência do indivíduo frente a massa, os costumes frente às ideologias e a representatividade política baseada no poder político esparso. Gostemos ou não, Adam Smith colocou os alicerces filosóficos mais básicos do que hoje denominamos de “conservadorismo político”.