Incomodado com as distorções presentes nas pautas dos movimentos antirracistas, o professor de História e Filosofia John McWhorter decidiu escrever um livro para mostrar como essa ideologia progressista se tornou uma religião ilógica e inalcançável.
Assim nasceu Racismo Woke, obra que acaba de ser lançada no Brasil pelo selo Avis Rara – e da qual você lê um trecho a seguir.
Verão de 2020. Estou aqui escrevendo este livro, e fico sabendo que Alison Roman, uma jornalista de gastronomia do New York Times, está cancelada.
É de se perguntar o que uma colunista gastronômica poderia fazer para acabar temporariamente afastada de suas funções.
O pecado de Roman foi ter criticado vagamente, numa entrevista, duas pessoas por comercialismo: a modelo e colunista gastronômica Chrissy Teigen e a coach de estilo de vida Marie Kondo. Roman foi atacada pela turba do Twitter por ter tido a audácia, como uma mulher branca, de criticar duas mulheres não brancas.
Teigen é meio branca e meio tailandesa, e Kondo, uma cidadã japonesa. Nenhuma das duas é o que tipicamente se considera pessoa não branca no que diz respeito à condição histórica e estruturalmente desprivilegiada.
Mesmo assim, em 2020, o simples fato de uma moça branca criticar não apenas uma, mas duas (pelo visto, a pluralidade fez pender a balança) pessoas não brancas justificava a humilhação nas redes sociais e a impedia de trabalhar.
Roman, como uma pessoa branca, estava supostamente depreciando pessoas “oprimidas” — leia-se duas mulheres muito ricas, bem-sucedidas e muitíssimo mais famosas do que ela. A branquitude dela sobrepujava tudo isso, foi o que nos disseram.
Roman, agora ciente desse tipo de acontecimento, engoliu em seco e, na declaração que emitiu, pediu desculpas e disse que havia refletido e percebido seu erro. Teigen chegou até a afirmar que achava que Roman não merecia as represálias.
Mas não faz diferença — esse tipo de fúria, que assume um tom “antirracista”, agora tem um poder supremo na moral pública, e por isso Roman merecia ser linchada diante de todos.
Sua página na Wikipédia sempre incluirá um alerta do tamanho de um outdoor avisando que ela foi considerada racista, mesmo que a maior parte do país provavelmente nem ache que esse tratamento fosse merecido, e apesar de algo assim jamais ter chance de acontecer até bem poucos anos atrás. Depois, ela acabou saindo permanentemente do Times.
Que tipo de gente faz coisas assim? Por que essas pessoas não sofrem consequência alguma? Vamos deixar que continuem com isso?
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No mesmo ano, Leslie Neal-Boylan permaneceu por apenas alguns meses como diretora do departamento de enfermagem da University of Massachussetts Lowell.
O problema foi que, após pronunciamentos que varreram o país em decorrência do assassinato de George Floyd por policiais, a diretora Neal-Boylan teve a petulância de escrever este texto extremista e preconceituoso para seus colegas e funcionários:
Escrevo para expressar minha preocupação e meu repúdio aos recentes (e antigos) atos de violência contra pessoas não brancas. O que aconteceu evoca uma história trágica de racismo e ódio que continua a prosperar neste país. Temo por nosso futuro como nação caso não nos posicionemos contra a violência a qualquer um. VIDAS NEGRAS IMPORTAM, mas, além disso, TODAS AS VIDAS IMPORTAM. Ninguém deveria viver com medo de se tornar alvo por sua aparência ou suas crenças.
Certo grupo decidiu interpretar que, ao dizer que “todas as vidas importam”, Neal-Boylan concordava com aqueles contrários ao slogan “Vidas Negras Importam”, como se o movimento BLM (Black Lives Matter) de certa forma afirmasse que vidas negras importam mais.
No entanto, apenas alguém que não sabe ler muito bem extrairia essa interpretação. Ela começou a declaração lamentando a “história trágica de racismo e ódio”, e não, não no sentido de que isso é algo que ficou no passado e que os negros precisam deixar para lá; porque ela também escreveu que o racismo e o ódio “continuam a prosperar neste país”.
No entanto, já que o texto incluía as quatro palavras “todas as vidas importam”, reportaram-na para os chefes, e sem demora ela foi demitida sem nem chance de se defender.
Por que o e-mail de Leslie Neal-Boylan a transformava em alguém incapaz de supervisionar uma equipe dedicada a curar e confortar pessoas? Eis uma pergunta que qualquer criança se faria — assim como um viajante do tempo vindo de uma época tão recente quanto 2015.
Mas, de alguma forma, os críticos de Neal-Boylan tinham essa autoridade.
Que tipo de gente faz coisas assim? Por que essas pessoas não sofrem consequência alguma? Vamos deixar que continuem com isso?
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Também no mesmo ano, 2020, David Shor, analista de dados de uma progressista empresa de consultoria, perdeu o emprego.
Ele havia publicado no Twitter um estudo feito por Omar Wasow, um professor negro de ciências políticas de uma prestigiosa universidade, que mostrava como os violentos protestos do movimento negro durante os longos e quentes verões do fim dos anos 1960 tinham mais propensão do que os não violentos de fazer os moradores locais votarem em candidatos de direita.
A intenção de Shor não foi celebrar essa informação, mas disseminar os fatos como uma notícia nada agradável, uma realidade avidamente escondida pela imprensa libertária pouco antes.
Certos grupos do Twitter, porém, não gostaram de ver um homem branco postando algo que poderia ser considerado uma crítica aos protestos motivados pelo assassinato de George Floyd. A empresa não deixou passar batido e expulsou Shor.
Que tipo de gente faz coisas assim? Por que essas pessoas não sofrem consequência alguma? Vamos deixar que continuem com isso?
Que tipo de gente faz coisas assim?
Todos esses casos aconteceram por influência de um modo de pensar que podemos denominar como Terceira Onda Antirracista, um movimento cujos adeptos são mais comumente chamados de “guerreiros da justiça social” ou “lacradores”.
É possível dividir o antirracismo em três ondas, mais ou menos como acontece com o feminismo. Nos Estados Unidos, por exemplo, a Primeira Onda Antirracista batalhou contra a escravidão e legalizou a segregação.
A Segunda Onda Antirracista, nos anos 1970 e 1980, batalhou contra atitudes racistas e ensinou que ser racista é uma falha moral.
A Terceira Onda Antirracista, que se popularizou nos anos 2010, ensina que, já que o racismo é uma parte intrínseca da sociedade, a “cumplicidade” das pessoas brancas é, por si só, racismo, ao passo que para pessoas negras tudo o que há para se fazer é lutar contra o racismo que as cerca e lidar com o preconceito de forma extremamente sensível, o que inclui uma suspensão no critério de conquistas pessoais e conduta.
Sob esse paradigma, todo aquele considerado insuficientemente consciente de que existir como pessoa branca carrega uma culpa eterna deve receber o ostracismo e a mais amarga das condenações.
Isso chega a um nível tão obsessivo e abstrato que deixa a maior parte de quem vê tudo de fora tentando entender, pessoas mais à esquerda se perguntando quando e por que começaram a ser classificadas como retrógradas, e milhões de inocentes morrendo de medo de acabar na mira de uma inquisição zelosa que parece pairar sobre praticamente qualquer fala, ambição ou conquista na sociedade moderna.
Sim, pode ser que alguém se pergunte o motivo de eu considerar um problema tão grande que alguma colunista de gastronomia, diretora de faculdade ou analista de dados tenha a vida arruinada por esse movimento.
Mas estou escrevendo a respeito de algo que não acontece apenas com alguns poucos azarados, mas que opera nos alicerces e no tecido da sociedade. Ninguém sabe quando ou como o proselitismo da Terceira Onda Antirracista poderá atingi-lo de repente.
É algo que está fazendo pessoas inocentes perderem o emprego. Que está afetando a pesquisa acadêmica, atrapalhando-a e, às vezes, até mesmo sufocando-a como uma erva daninha.
É algo que nos obriga a transformar grande parte de nossas discussões públicas urgentes em discursos vazios que qualquer criança de dez anos consegue identificar como papo-furado.
A esse respeito, Ibram X. Kendi, o guru da Terceira Onda Antirracista, escreveu um livro sobre como educar crianças antirracistas intitulado ‘Antiracist Baby’.
Isso e várias outras coisas são um sinal de que a Terceira Onda Antirracista nos obriga a fingir que qualquer teatrinho é política, a passar incontáveis horas ouvindo baboseiras apresentadas como conhecimento, e a fingir que estamos gostando.
Muitos universitários e professores escrevem para mim e para meu parceiro de podcast, o economista Glenn Loury, com medo de que essa nova ideologia arruíne suas carreiras, seus departamentos ou campos de atuação, assim como para outras organizações também, e quase sempre usando e-mails particulares para evitar uma possível exposição por alguém das instituições para as quais trabalham.
Pessoas em posições de poder estão constantemente sendo removidas de seus cargos por acusações e petições afirmando que elas não são antirracistas o suficiente.
Conselhos de escolas por todo o país vêm forçando professores e administradores a perderem tempo incutindo antirracismo nos currículos, uma prática que faz tanto sentido quanto qualquer coisa proposta durante a Revolução Cultural Chinesa.
Você sabia que ser objetivo, não se atrasar e a palavra escrita são coisas de “branco”? E sabia que se isso lhe parecer esquisito, então você faz parte da mesma laia de George Wallace, Bull Connor e David Duke [políticos americanos conhecidos por suas convicções segregacionistas]?
Em 2008, Christian Lander escreveu em Stuff White People Like [‘Coisas que as Pessoas Brancas Gostam’], com seu humor ácido, que “ficar ofendidinho” é algo que certo tipo de “branco” gosta, junto com festivais de cinema e camisetas vintage.
Pouco mais de uma década depois, lê-se esse mesmo capítulo com medo de que o tipo de pessoa a quem Lander se referia dê uma espiadinha, veja o que está escrito e comece uma palestra irritadíssima a respeito de como não há nada de engraçado nas tentativas de desmantelar a supremacia branca e a “cumplicidade” de todos os brancos com essa questão.
Se Lander escrevesse aquele livro hoje, provavelmente não incluiria a tal piada, o que já é um indício da gravidade do que existe por aí e que só percebemos há pouco tempo.
Uma enorme parte do público a que ele se dirigia já não se orgulha mais discretamente de como é esclarecida por saber que certas coisas são ofensivas, mas agora enxerga como um dever escorraçar e excluir aqueles que não compartilham desse mesmo nível de sensibilidade.
Para alguns, tudo isso pode parecer algo tão simples quanto uma questão de boas maneiras e educação. Mas a Terceira Onda Antirracista também prejudica diretamente os negros em nome de seus impulsos norteadores.
A Terceira Onda Antirracista insiste que é “racista” o fato de que os garotos negros são maioria nos dados de jovens suspensos ou expulsos de escolas por violência, o que, analisando de um ponto de vista político, está documentado como o motivo pelo qual a violência persiste nos colégios e reduz as notas dos alunos.
A Terceira Onda Antirracista insiste que é “racista” o fato de que há poucos jovens negros nas escolas de Nova York que exigem boa performance em testes padronizados de admissão, e pedem para que essas provas sejam erradicadas, e não para que direcionemos os alunos negros para alternativas (muitas delas gratuitas) em que é possível praticar o questionário e restabeleçamos programas que enviaram alunos negros superdotados para essas mesmas escolas pouco tempo atrás.
Que isso resultará numa educação inferior nas escolas e em alunos negros menos preparados para exercitar a capacidade mental exigida pelos testes que encontrarão mais para a frente é irrelevante.
A Terceira Onda Antirracista, imersa nessa hipersimplificação do que o racismo é e do que deve ser feito a respeito dele, não se importa de prejudicar pessoas negras em nome de algo que só podemos chamar de dogma.