Não gosto de gráficos, muito comumente são chatos e tendem a quantificar coisas que, por vezes, são inquantificáveis; a indefinição da vida humana me parece muito mais promissora que seus cálculos econométricos e curvas exatas. Mas até eu tenho que me render ao gráfico do Our World Data sobre o nível de extrema pobreza do mundo de 1820 até 2018.
Para termos uma noção de como o crescimento econômico no Ocidente foi gigantesco e arrebatador, o economista Angus Maddison calculou em seu livro The Rise and Fall of Americam Growth, que do ano 1 ao 1820 a economia mundial cresceu apenas 0,06%; Deirdre McCloskey, em Bourgeois Dignity, afirma que até o advento da Revolução Industrial, no século XVIII, quase todo mundo vivia com no máximo 3 dólares por dia. Mas algo assustador e magnífico ocorreu entre os séculos XVI e XVIII, gerando um boom de prosperidade que redesenhou as capacidades racionais, políticas e sociais, bem como as possibilidades materiais e científicas da humanidade como um todo.
Somente de 2001 a 2010, calcula Maddison, a indústria produziu – em bens e materiais – 25% de tudo o que a humanidade tinha produzido desde o primeiro ano da era cristã até o advento da indústria no século XVIII. O PIB global passou de estimados 182,74 bilhões de dólares, no ano 1 da era cristã, para 87,61 trilhões de dólares em 2019, segundo o Banco Mundial e o Human Progress. Para completar, a estimativa do Centro de Economia e Pesquisa Empresarial é que, em 2022, o PIB mundial ultrapasse 100 trilhões de dólares. Não seria necessário dizer, mas direi mesmo assim: não há absolutamente nada na história da humanidade que se compare a isso.
As ideias que germinaram no Ocidente do século XVII produziram esse impulso econômico e social que, quando olhado sob esse panorama histórico aqui desenhado, soa quase como um milagre. Mas seria muito superficial finalizar nossas impressões no caráter econômico desse crescimento, o milagre ocidental vai além da prosperidade material — ainda que eu tenda a concordar que seja ela a mais vistosa e impressionante.
Tal como Eric Voegelin dizia em O mundo da Pólis, em sua monumental coleção Ordem e História: as ideias conduzem à prática, tal como a beleza pressupõe seu arquétipo. Para entender como o Ocidente do boom de riqueza deu tão certo, é preciso compreender as ideias que possibilitaram tal empreendimento prosperar.
De que santo é o milagre?
Em O Suicídio do Ocidente, Jonah Goldberg afirma que o Ocidente moderno é de fato um “milagre” civilizacional. Goldberg defende que a origem desse milagre se encontra numa retórica de liberdade que abarcou argumentativamente o senso comum das massas no século XVI e XVII, fazendo com que a mentalidade servil desse lugar a um empreendimento de expansão cultural, a um espírito de liberdade individual que arrebatou paulatinamente a Europa toda, mudando tanto a práxis quanto as ideias comunitárias da população – especialmente da população inglesa.
Segundo a economista Deirdre McCloskey em sua outra obra, Bourgeois Equality, o discurso emplacado pelos burgueses favoreceu o advento do livre pensamento, da livre transação de bens, a defesa da propriedade e, consequentemente, de uma política democrática factível, baseada em instituições fortes não absolutistas, e não mais em castas ou monarcas abençoados. O discurso de liberdade e de desregulamentação teria gerado a modernidade.
Para o sociólogo americano Rodney Stark, em A vitória da razão, o sucesso do Ocidente já estava embrionariamente sendo preparado pelo cristianismo há séculos. Segundo o americano, a teologia cristã e os avanços filosóficos da Idade Média já tinham gestado a manta do progresso na Europa, o Iluminismo apenas organizou e propiciou o arranque potencializado de tais movimentos de progresso. Do capitalismo, da ética individualista à ciência experimental, o cristianismo seria então a chave para entender o porquê de o Ocidente ter sido o berço da prosperidade econômica e cultural.
Para finalizar as impressões de grandes pensadores contemporâneos sobre o motivo do sucesso do Ocidente, em Civilização: Ocidente x Oriente, o historiador britânico Niall Ferguson lista o que seria para ele o diferencial que fez da Europa Ocidental a potência vertical de avanço tão discrepante ante o Oriente: 1. A competição; 2. A ciência; 3. Os direitos de propriedade; 4. A medicina; 5. A sociedade de consumo; 6. A ética do trabalho. O desenvolvimento desses pontos específicos, segundo o historiador, foi o que fez o Ocidente se tornar essa potência descomunal de prosperidade.
A mentalidade do sucesso
Dos mais entusiasmados aos mais sérios e neutros, poucos podem, de fato, discordar do sucesso estrutural, intelectual, social e econômico do modelo civilizacional do Ocidente moderno. Aquilo que o Ocidente engendrou como modo de viver no século XVIII e XIX, o Oriente não foi plenamente capaz de absorver durante séculos a fio; e de todas as benesses que poderíamos aviltar como indispensáveis para tal sucesso, parece-me ser unânime a compreensão de que a recusa primeva aos modelos absolutistas e a negação da alienação das liberdades básicas do indivíduo são a chave para esse momento eureca. O sucesso econômico que tanto nos impressiona e que, como vimos antes, realmente é assombroso, não passa de um subproduto de uma mentalidade de liberdade, de uma disruptura da consciência humana que ocorreu naqueles primeiros séculos do Iluminismo. Para entender como o Ocidente se tornou grande, é preciso entender esse movimento rumo a uma ética individual.
Aquele filete de consciência que sempre fazia o peso do senso comum pender em prol da liberdade e dos valores estabelecidos, esse é um daqueles diferenciais sutis, pouco percebidos, que apareceu no Ocidente com uma força gigantesca, e não no Oriente. Ainda que o Ocidente da democracia liberal seja igualmente o Ocidente que gestou o nazismo e o fascismo, percebe-se também que, sem demora, o próprio Ocidente elaborou meios articulados para reagir a tais ideias, recolocando o tiranismo em seu lugar, criando sistemas, instituições e novas tradições que combatem, desde o embrião, ideologias como essas. Chesterton, em um de seus escritos mais negligenciados – ainda que dos mais brilhantes –, A Barbaria em Berlim, dizia que a Civilização e sua realidade sempre eram sustentadas por uma fina corda de sensatez e princípios que se estendia da montanha do passado à montanha do futuro. O gordo inglês captou assim o Espírito do Ocidente: a chave do “milagre” ocidental se trata de uma fina, sutil e frágil consciência de liberdade, advinda das experiências humanas antigas, estendendo-se até os vislumbres sociais dos filósofos modernos; essa corda – que também podemos identificar como “mentalidade ocidental” – foi quem nutriu e lubrificou o pragmatismo político e as ideias disruptivas dos ingleses do século XVII, o empreendedorismo capitalista do século XVIII e a democracia liberal moderna.
O sucesso do Ocidente, então, é fruto de uma fugidia e quase abstrata “mentalidade comum” que foi parida pela constante tirania absolutista dos séculos passados; em termos mais diretos, tal mentalidade corresponde ao despertar da consciência individual dos homens que recusa, de forma primeva, a tirania social e promove a ideia de liberdade em todos os campos de interação humana. Podemos ver isso de forma mais evidente na Revolução Gloriosa e na Revolução Americana e, em certos aspectos, apesar das muitas críticas a serem feitas, na Revolução Francesa.
A mentalidade do retrocesso
Segundo o Centro de Pesquisa Econômica e de Negócios, a economia chinesa deve assumir o protagonismo mundial ainda em 2028, ou seja, cinco anos antes do que era previsto pelos mais otimistas analistas pró-China. A crise da COVID-19 acabou potencializando o crescimento do país asiático, principalmente porque os EUA não tinha fôlego – como outrora – para suportar a crise sanitária que se abateu no mundo. Com a expectativa de crescimento de 5,7% de 2021 a 2025, a economia do país vermelho é um verdadeiro estrondo ante o estafado e ideologizado capitalismo Ocidental.
Independentemente de onde começa o crescimento e o desgaste do Ocidente, se é da mentalidade social ou da economia, – como sustentam alguns liberais –, é cada vez mais óbvio o enfraquecimento dos ideais que fizeram aquele gráfico incrível, dos princípios que gestaram as democracias liberais. Parece que aquele sopro de liberdade, que pudemos sentir de maneira mais intensa desde a Revolução Gloriosa, está cada vez mais rarefeito, doente; aquele frescor do arejamento intelectual e cultural do pós-Renascimento se encontra cada dia mais estafante, abafado. Helen Pluckrose e James Lindsay afirmam em Teorias Cínicas que: “Eles [os progressistas] também rejeitaram a crença de que o Ocidente experimentou um progresso significativo devido ao Iluminismo, e continuará a experimentar se preservar esses valores”. Passamos a acreditar nisso também, que o Ocidente não foi tão próspero como pintaram, que suas benesses econômicas e políticas não eram tão boas quanto nos fizeram crer, que há mais vergonhas do que glórias, que há mais demônios do que anjos no canto de cá; preservar os valores do Ocidente já não é a nossa prioridade, pois não sabemos mais se o Ocidente moderno de fato é algo bom a ser guardado.
O advento de ideologias cada dia mais intransigentes, o enfraquecimento dos princípios capitalistas e a retórica política cada dia mais centralizadora não deixam dúvidas sobre isto: estamos vivendo um momento autoritário em seu sentido mais profundo. Parece ser um tanto cíclico na história ocidental momentos em que passamos por uma espécie de desilusão ante os valores do Ocidente. Aí, então, aquelas ideias pré-assadas, fáceis de abarcar e proliferar sob trajes de altruísmo e abnegação humanitária começam a ganhar popularidade; entretanto, como são ideias profundamente irreais, falsas, elas acabam se apegando à força impositiva para prosperarem.
As doenças do Ocidente
Segundo os estudiosos do pós-modernismo Helen Pluckrose e James Lindsay, em Teorias Cínicas:
Portanto podemos pensar no pós-modernismo como uma espécie de vírus de rápida evolução. [...] Ele sofreu uma mutação em torno do cerne da Teoria, formando diversas nova linhagens, narrativas. Elas estão concentradas em um objetivo prático que estava ausente antes: reconstruir a sociedade à imagem de uma ideologia que passou a se referir a si mesma como “Justiça Social”
O Ocidente passou, em algum momento, a engolir retrocessos civilizacionais como sendo avanços sociais. Isso não é novidade, tais doenças do Espírito – como chamou Hegel – são recorrentes na história da humanidade, a diferença é que, nos dias atuais, esse vírus encontrou estadia, conforto e defesa entre os poderosos, os humildes, os acadêmicos e a opinião pública; aqueles anticorpos naturais que, ainda que débeis, sempre combateram os males ideológicos, começaram a lutar do lado da doença. O atual progressismo – filho bastardo do marxismo frankfurtiano –, além de desacreditar as virtudes ocidentais, plantou em nosso meio ideias que passaram a falsear a própria realidade; e, quando andamos e atuamos com um óculos de realidade virtual fincado em nossos olhos, podemos socar nossas mães, matar nossos parentes, acreditando estar matando monstros e extirpando males da humanidade.
O progressismo identitarista e o marxismo frankfurtiano relutante não estão atacando o Ocidente da forma como muitos conservadores afirmam. Não se trata de uma investida externa, mas sim de um suicídio conduzido; o que há no Ocidente, hoje, é a implosão dramática de todos os princípios que o fizeram prosperar como nenhuma outra Civilização em nenhuma outra Era.
Uma das formas mais eficientes de ser um reacionário caracteriza-se pela venda de ideias toscas como progresso social. Isso é o que faz a Teoria de Gênero, por exemplo. Sobre isso diz Jonah Goldberg, em O suicídio do Ocidente:
"Afirmo que todas as rebeliões contra a ordem liberal do Milagre são de natureza fundamentalmente romântica e reacionária. Elas buscam alguma concepção moderna e futurística da organização social. Em vez disso, retornam a alguma forma de solidariedade tribal na qual estamos todos unidos. O romantismo é a voz comum a qual nosso homem primitivo interior grita: “Tem de haver uma maneira melhor”."
Ideias que exigem a morte ou a supressão da empiricidade da biologia, que tentam na bicuda nocautear o bom senso planetário, que buscam normatizar conclusões ideológicas absurdas, que pedem o sacrifício da obviedade, o suicídio da razão mais elementar... O pós-modernismo e seus construtos da Teoria de Gênero, Teoria Racial, as teses da Justiça Social, etc., todas essas pseudoideias poderiam ser compiladas no montante de “atrasos civilizacionais”, um pote de excentricidades filosóficas que, se seriamente colocadas em prática, significariam um retrocesso humano em seu caráter mais sublime.
O momento autoritário
O Ocidente que outrora se orgulhava de sua racionalidade vigorosa, de seus sistemas de aferição e métodos científicos; que criou instituições políticas e normas jurídicas que praticamente impossibilitaram novas eras de absolutismo; que extirpou o escravagismo e libertou as mulheres dos grilhões tradicionalistas, tornou-se, em poucas décadas, o Ocidente que coloca homens biológicos para socarem mulheres em octógonos chamando isso de “inclusão”; estamos criando tribunais raciais nas universidades a fim de identificar o grau de “negrice” das pessoas que reivindicam cotas, chamamos isso de “justiça social” e “correção histórica” para minorar o fedor de racismo autorizado. Recentemente, em Nova Jersey, detentas engravidaram de transgêneros – homens biológicos, obviamente – em uma prisão exclusiva para mulheres daquele estado; é a biologia frustrando o discurso, é a retórica cedendo à obviedade, é o retrocesso cuspindo seus resultados nos hologramas sociais dos acadêmicos, mas não importa, os fatos não importam mais para os ocidentais.
Os ideólogos de nossos dias estão pedindo que matemos a nossa racionalidade em troca de um mundo de faz de conta fabricado em universidades e promovida por empresas engajadas; novamente propagandeiam que o Estado pode gerir uma sociedade justa e fofa se todos, abnegadamente, aceitarem ser tolhidos em suas liberdades fundamentais. E por algum motivo bizarro, parece que muitos realmente acreditam que alienar suas consciências é uma proposta melhor do que continuar pensando de forma livre.
“O livre-pensador afasta o que lhe parece falso, mas guarda o que lhe parece verdadeiro, muito longe de ser um cético, sustenta-se pela força eficaz da razão, que funde a verdade e a justiça”, dizia o historiador Paul Hazard em seu maravilhoso livro A crise da consciência europeia: 1680-1715, comentando o papel do livre pensador no século XVII e XVIII na Europa. O Ocidente contemporâneo, por sua vez, está numa cruzada ferrenha contra os livres pensadores, há uma guerra total contra aqueles que não aceitam os dogmas das seitas ideológicas de nossos dias. Livre pensadores esses que não são exatamente filósofos, historiadores e críticos profissionais, mas sim todos aqueles que se dedicam a compreender a realidade livremente e não se enlaçam em clausuras ideológicas; Chesterton, inclusive, chamaria esses de “Homens Comuns”, pessoas que, no livre exercício de viver, recusam propostas fantásticas de utopistas ociosos.
Aquela corda estendida que Chesterton fez memória está cada dia mais rala, está a ponto de ceder. Temo que não acreditemos mais que a liberdade seja o fator mais necessário na interação social; e, por isso, estamos realmente prontos para ceder, sem lutar, a cada exigência de controle estatal, a cada pressão empresarial dos “wokes”.
Ben Shapiro, em O Momento autoritário, alerta-nos para essa guinada estúpida do Ocidente. Estamos caindo na velha sedução de controlar o incontrolável, de massificação das vontades alheias, da padronização artificial do destino do homem. Segundo o crítico americano, a única solução e resistir de forma ordenada e heroica.
A resistência
O problema principal está no campo das ideias, e, como Mises disse em As seis lições: “somente ideias [corretas] podem iluminar a escuridão”. É um problema econômico sim, é claro, mas o é à medida que passamos a desacreditar das ideias de livre mercado; é um problema político, é claro que sim, mas sua origem está no descrédito dos princípios básicos do liberalismo. Não tenho dúvidas de que o fracasso do Ocidente começa pelo enfraquecimento dos valores que o fizeram próspero; quando os indivíduos começam a pensar que o controle, que as ilusões e propostas fantásticas de ideólogos são mais importantes que a sua própria liberdade. Fica então evidente que se trata de uma doença do Espírito.
Só existe uma forma de reverter esse processo de mutilação dos valores ocidentais: conhecendo e praticando os princípios de liberdade que fundaram o Ocidente, na mesma medida que negamos categoricamente as investidas das pautas autoritárias. Parece óbvio demais, mas o óbvio também pode ser a solução. James II só compreendeu o quão sério era a revolta popular em seu reino quando, além dos intelectuais e homens públicos, o Homem Comum começou a dizer não às suas vontades e posturas. Não se trata de instigar revoluções, não acredito que esse seja o caminho; trata-se antes da recusa esclarecida e heroica, do contraponto argumentado e da exposição pública dos erros do progressismo. Restaurar a mentalidade de liberdade é um processo que levará décadas, talvez séculos; o que nos resta agora é a resistência aos avanços do novo absolutismo cultural e político do identitarismo. Tem solução sim, a solução é, simplesmente, não ceder!
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